terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Aquemênida

Em 29 de setembro de 522 a.C., um golpe de Estado da Pérsia Aquemênida resulta na morte de Smerdis e na coroação de Dario como Rei dos Reis. Todo o processo é até hoje motivo de discussão, visto ter sido registrado a mando do próprio Dario, e repassado gerações depois por Heródoto e outros cronistas gregos, sem preocupação nem recursos para conferir suas fontes.

A Pérsia, sob o governo do clã Aquemênida, emergiu como um poder dominante no Oriente Médio por volta de 550 a.C., quando Ciro II conquistou o reino rival dos medas (tribo irmã dos persas que dominou o Irã por algumas décadas) e avançou para construir o maior império já visto então, incorporando o modo de vida, os costumes, as leis, a escrita, e as tradições religiosas das antiquíssimas civilizações do Oriente Médio e da Anatólia (friso "antiquíssimas", porque, no tempo de Ciro, a tradição civilizatória da Mesopotâmia já era mais antiga para ele do que seu império é para nós hoje). Seu filho Cambises II contribuiu para expandi-lo conquistando o Egito. Este Cambises morreu em 522 a.C., aparentemente de causas naturais (supõe-se que ele fosse epiléptico), três anos após ser coroado faraó. E é aí que a história fica confusa.

Cambises tinha um irmão mais novo, Smerdis (ou Bardiya, ou Gaumata, dependendo da fonte e da versão aceita dos acontecimentos). Em algumas versões, este Smerdis era "protegido" (ou seja, vivia em clausura no palácio real em Persépolis, ou em Susa), ou então teria sido nomeado sátrapa de alguma satrapia no oriente. As fontes parecem concordar que Smerdis, de qualquer maneira, não era um rosto muito conhecido pelo seu povo, nem pela própria corte (alguns familiares de Cambises mesmo talvez não o conhecessem). Fosse como fosse, quando Cambises morreu no Egito, uma conspiração palaciana de magos (tribo ou casta de sacerdotes zoroastrista) prontamente anunciou Smerdis como sucessor. O reinado de Cambises foi particularmente cruel, não apenas nos seus atos pessoais (boatos sobre seu comportamento mais à frente), mas também quanto aos altos impostos para custear sua expedição ao Egito e sua incorporação ao sistema administrativo persa. Quando Smerdis subiu ao trono, sua primeira promessa foi de abolir os impostos pelos próximos três anos.

A versão de Dario desta história está registrada na magnífica inscrição de Behistum, encontrada na escarpa rochosa de uma montanha no oeste do Irã. Ali Dario acusa Smerdis de ser um impostor, um mago chamado Gaumata, que governou ilegitimamente por sete meses antes de ser assassinado por uma conspiração de aquemênidas, da qual fazia parte. Um ano depois, um segundo impostor, outro mago chamado Vahyazdata sob a identidade de Smerdis, também teria sido assassinado. Já segundo Heródoto (que reuniu e avaliou tudo que ele "ouviu falar" sobre os persas na Babilônia no Egito cerca de um século depois), após o assassinato do falso Smerdis, Dario teria sido escolhido entre os conspiradores como novo rei, adquirindo automaticamente a legitimidade da casa reinante.

Há alguns problemas com a tese de um falso Smerdis (principalmente, de dois falsos Smerdis). A favor da tese tem o fato de Dario e seus comparsas serem aquemênidas, ligados em maior ou menor grau à família de Ciro e Cambises (Dario era um primo de terceiro grau do último rei, e, portanto, do verdadeiro Smerdis), e deveriam ter alguma familiaridade que tornasse possível reconhecer o verdadeiro Smerdis de um impostor. Se um artesão qualquer gritasse contra o novo rei acusando-o de não ser quem dizia que era, ninguém lhe daria crédito, e ele seria provavelmente morto onde estivesse. Mas se um aquemênida como Dario, ou seu colega Otanes (a quem se atribui a acusação contra Smerdis) levassem esta denúncia a público, seriam vozes mais confiáveis. A oposição a Dario nas ricas satrapias da Babilônia e do Elão (e a coroação de um segundo Smerdis) que se seguiu podem ter sido reflexos da promessa de Smerdis de não recolher impostos. As duas rebeliões foram debeladas em poucos meses após a captura e execução de seus líderes, o que mostraria um caráter oportunista mais do que legalista de ambas. Na corte, a própria família de Smerdis nunca contestou a posição de Dario. De fato, ele se casou logo em seguida com sua irmã, Atossa, que em algum momento poderia ter se manifestado a respeito.

Como as fontes mais prolíficas sobre Dario vêm da Grécia (escritas exclusivamente depois que os persas, considerados "bárbaros", invadiram e foram expulsos de lá), as evidências da ilegalidade do seu movimento são mais numerosas. Eles levantam a dúvida sobre a conspiração dos magos. Entre os Aquemênidas, era costume as pessoas comuns não olharem diretamente para o rosto dos seus soberanos, fossem eles o rei, um príncipe, ou um sátrapa, de maneira que não eram todos os que conviviam com Smerdis que saberiam inequivocadamente reconhecê-lo de vista. Um homem de porte semelhante e ostentando as regalias imperiais poderia se passar por um príncipe, com a colaboração dos poucos que pudessem reconhecer entre o verdadeiro e o impostor. O Smerdis coroado rei poderia ter sido o verdadeiro, e Dario teria se aproveitado do momento político turbulento provocado pela ausência prolongada de Cambises no Egito para tomar o poder, deixando em dúvida a real identidade do Smerdis assassinado. Esse tumulto político, Heródoto dá a entender baseado no que ouviu falar no Egito, acentuado pela personalidade problemática de Cambises, afeito a explosões de violência, como quando teria espancado a esposa grávida até a morte, e decisões equivocadas, como uma expedição à Núbia que nunca chegou ao seu destino. Há quem sugira que o verdadeiro Smerdis tenha sido realmente assassinado antes a mando do próprio Cambises em um acesso de loucura, ou depois. Dario teria até trapaceado para ser escolhido entre os sete conspiradores para assumir o trono (com a ajuda de um escravo, ele teria "criado" um presságio divino apontando para a sua indicação no momento decisivo). Ele teria apaziguado revoltas generalizadas nas províncias apenas com a ajuda do exército, liderado pelos seus comparsas e seus parentes (o próprio Dario se vangloriava de ter matado "oito reis mentirosos" que se levantaram naquele momento). Dario ainda executou um dos seus comparsas, Intarfenes, junto com a maior parte da sua família, por ele ter desafiado uma instrução específica do novo rei quanto a visitas ao seu palácio.

Legitimamente ou não, a ascensão de Dario proporcionou vida longa ao regime aquemênida. Um homem astuto, domou possíveis rivais com regalias, cargos acima das suas aspirações ou cargos tão próximos que uma falha não passaria despercebida, ou pelo o sequestro de seus bens ou parentes (o palácio de Ecbátana era povoado de filhos e filhas de nobres persas). Também cercou-se de pessoas capazes nomeando-as para cargos administrativos importantes. Reorganizou o sistema administrativo, monetário e tributário, padronizando pesos, medidas e valores (usando as moedas inventadas na Lídia duas ou três gerações antes) a serem arrecadados, de maneira que ele tinha o controle sobre a economia do império e sobre possíveis atividades ilícitas de seus sátrapas, e estes do seus respectivos governadores. Adotou a política inaugurada por Ciro de preservar os aspectos culturais e religiosos dos povos sob seu poder para garantir seu apoio, com uma exceção na Babilônia, onde ele depôs o rebelde Nabucodonozor III, que seria seu rei legítimo, e declarou que o país não teria mais um rei (Ciro havia coroado a si mesmo Rei da Babilônia quando conquistou a cidade, e Dario aboliu este título). Para controlar melhor um território tão vasto, que no final do seu governo ia do Vale do Indo, no Paquistão, até o leste da Europa, ele desenvolveu e consolidou as antigas estradas que ligavam as principais cidades do império, estabelecendo também pontos de pouso, onde cavalos eram permanentemente cuidados para serem usados por mensageiros em viagem, permitindo a rápida comunicação dentro do império persa (um sistema tão eficiente que seria emulado várias vezes no futuro, inclusive nos Estados Unidos, antes do advento das locomotivas a vapor). As mensagens também eram distribuídas em aramaico, língua franca usada pelos comerciantes do Oriente Médio, e em escrita cuneiforme adotada universalmente naquela parte da Ásia. Além disso, o império tinha várias capitais com chancelarias que respondiam diretamente a Dario (Persépolis, Ecbátana e Susa, além de capitais regionais como Sardes, Babilônia e Mênfis). Também construiu palácios, jardins, templos dedicados a deuses locais, e um canal navegável ligando o rio Nilo ao Mar Vermelho.

Dario expandiu o poder persa para a Europa, após uma campanha para subjugar os nômades citas que habitavam o norte do Mar Negro. Construindo uma ponte provisória sobre o Estreito de Bósforo com barcaças amarradas com cordas, tomou a Trácia, atual parte européia da Turquia e a Bulgária, como base de operações. Na Anatólia, atual Turquia asiática, ele consolidou o controle sobre as cidades gregas no litoral, e, incentivado por conselheiros vindos dessas cidades e da Grécia continental, começou a cobiçar a própria Grécia. Tumultos na parte final do seu reinado nas cidades helênicas (o incêndio de Sardes, capital da rica satrapia da Lídia, foi atribuído a rebeldes gregos) foram a desculpa para sua tentativa de invasão da Grécia, repelida de maneira dramática na Batalha de Maratona em 490 a.C.. Seu filho Xerxes daria seguimento ao seu plano de conquista da Grécia dez anos mais tarde.

O reinado de Dario, como já foi dito, foi recontado sob diversos ângulos principalmente por cronistas gregos, que não nutriam muita simpatia pelos persas (embora pelo menos um deles, Xenofonte, tenha lutado como mercenário no exército persa). Por mais que muitos tenham tentado dar um tom histórico ao personagem, a maior parte do que se conhece sobre Dario parte de conjecturas e indícios obtidos dessas fontes, porque nelas mesmas, ele e seus antecessores aparecem em cores fantásticas. Uma versão fictícia moderna, mas deliciosamente florida de Dario está no romance do escritor americano Gore Vidal, "Criação".

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O Açougueiro de Lyon

Em 25 de setembro de 1991, faleceu de leucemia Nikolaus "Klaus" Barbie, ex-agente da Gestapo e ex-colaborador da CIA, enquanto servia uma sentença de prisão perpétua em Lyon, na França.

Klaus Barbie era filho de um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, também chamado Nikolaus. Aparentemente, os combates na França, os ferimentos e a prisão do velho Nikolaus o deixaram transtornado, tornando-o violento e abusivo. Ele também era professor da escola onde estudava o jovem Klaus, submetendo-o a constrangimentos em público. Isso não está documentado, mas é possível que, inconscientemente, a imagem do pai transformado pela guerra na França tenha conduzido Klaus pelo caminho que o levou à chefia de inteligência da Gestapo em Lyon, e seus atos contra a resistência francesa (os Barbie aparentemente descendem de imigrantes franceses fugidos da Revolução).

Antes da guerra, depois de abandonar os estudos e desempregado, Klaus Barbie foi recrutado para trabalhar para o Partido Nazista, numa espécie de serviço civil compulsório (o Reichsarbeitsdienst), de onde, devidamente treinados na doutrina nazista, os jovens eram então enviados para servir nas forças armadas, até então um reduto tradicionalmente conservador e apartidário. Barbie acabaria se alistando no serviço de inteligência do partido vinculado à Gestapo, a SD, onde receberia treinamento de interrogatório, e, finalmente filiando-se ao Partido Nazista.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Barbie atuou na Holanda, localizando e prendendo judeus, maçons e emigrantes alemães (a maior parte procurada por crimes políticos). Um incidente entre um nazista holandês e um trabalhador do porto levou a SD a fazer uma operação de busca e apreensão no setor judeu de Amsterdam, resultando na prisão de 425 judeus. Barbie ficou encarregado da operação e dos interrogatórios conduzidos à base de torturas físicas. 389 deles foram enviados ao campo de concentração de Buchenwald (o destino dos restantes é nebuloso, podem ter sido soltos, ou podem nunca ter saído com vida de suas celas). Após um ataque da resistência holandesa a um clube de oficiais, Barbie jurou que os judeus pagariam por aquilo: ele foi ao Concelho Judaico de Amsterdam e convenceu os diretores a lhe fornecerem uma lista de 300 nomes de jovens judeus, com o pretexto de reuni-los e encaminhá-los para completar sua formação profissional. Todos os 300 foram presos e enviados ao campo de Concentração de Mauthausen, onde morreram meses depois. Um preso levou um tiro na cabeça ao pedir para ouvir música americana.

A Holanda e a França foram conquistadas por braços de uma operação conjunta, que se enraizavam num núcleo administrativo comum. Assim, Barbie foi realocado para o front francês em 1942. O norte da França acabara de cair sob domínio alemão, e a SD montou uma base de operações em Lyon, com o objetivo novamente de localizar e prender judeus, comunistas, e pessoas envolvidas na Resistência Francesa, guerrilha que impedia o avanço nazista mais ao sul. Em Lyon, operando no Hotel Terminus e na École de Sante Militaire, Barbie, aos 29 anos, chefiava um núcleo com 25 oficiais sob suas ordens.

Seu primeiro troféu foi a captura de Jean Moulin, um dos principais líderes da Resistência, em 1943. Barbie o espancou até cansar, colocou agulhas incandescentes sob suas unhas e fechou uma porta em seus dedos até se quebrarem todos. Seus punhos foram amarrados com correntes que eram apertadas até penetrarem na sua carne e quebrarem seus ossos. Quando o barbeiro da prisão foi cortar o seu cabelo, encontrou Moulin estirado num banco, semi-morto, com o rosto transformado em uma massa ensanguentada (perturbado, o barbeiro tomou o maior cuidado possível para fazer seu serviço sem tocar nas suas feridas). Morreu dias depois. Pela prisão de Jean Moulin, Barbie recebeu uma condecoração de Hitler.

Raymond Aubrac foi preso com outros sete membros da Resistência, mas sobreviveu às sessões de tortura de Barbie. O que o deixava mais confuso é que Barbie não fazia perguntas, nem sequer perguntara seu nome ou se era judeu, apenas o surrava incansavelmente com uma variedade de métodos e instrumentos. Aubrac foi salvo por uma operação de resgate liderada por Lucile, sua esposa grávida de seis meses. Alegando que a justiça francesa dava direito a um condenado à morte de contrair matrimônio na prisão com uma mulher que estivesse esperando filho seu, ela conseguiu entrar na prisão e alertar Raymond do ataque que seria feito ao caminhão que o transportaria para fora dali. Ela mesma conduziu a emboscada, que matou 5 oficiais e libertou 13 presos.

Outra vítima foi Lisa Lesevre, presa por supostamente conhecer um certo "Didier", membro da Resistência expecialista em cartas-bomba. Por dezenove dias ela foi torturada com castigos físicos enquanto estava acorrentada ao teto pelos pulsos por Barbie e quatro assistentes, inclusive um certo Gueule Tordue ("Boca Torta"), um homem corpulento e com a cabeça deformada por um acidente de carro digno de um filme de terror. Toda vez que ela desfalecia, um médico a reanimava, e ela encontrava seus torturadores bebendo e rindo, como se nada tivesse acontecido. E as torturas recomeçavam. Em certo momento, foi despida, acorrentada pelas pernas e mergulhada numa banheira de água gelada, e enquanto não falasse, a corrente era puxada e ela ficava presa debaixo d'água apenas tempo suficiente para não morrer afogada. Quando era deixada de lado, era forçada a assistir à tortura de outros presos, ou ver seus cadáveres (Barbie virava seus rostos para talvez tentar reconhecer algum judeu, e depois os esmagava com o salto de sua bota). Nos últimos dias, Lasevere foi amarrada no chão de bruços, enquanto Gueule Tordue (ou, segundo ela mesma dava a entender, o próprio Barbie) a golpeava com um mangual (uma bola de metal com espinhos preso a um bastão por uma corrente) até quebrar a sua espinha. Quando ela despertou mais uma vez, Barbie a felicitou por ter resistido tanto, "... mas no final, todo mundo fala.". Como ela resistia, a mandou para a execução em outra localidade. Ela acabou sendo levada por engano ao campo de concentração de Ravensbruck, de onde foi resgatada com vida no fim da guerra. Seu marido e seu filho adolescente, que não eram judeus ou comunistas, foram mortos em campos de concentração. Lasevere nunca denunciou a identidade de "Didier".

Simone LaGrange foi capturada com seus pais exatamente no dia D e trazida à presença de Barbie. Ele acariciava um gato em seu colo, e cumprimentou cada um dos LaGrange educadamente, dando um puxão carinhoso na bochecha de Simone. Sua mãe contou a Barbie que ela ainda tinha dois outros filhos, mas não sabia onde estavam. Então, ainda segurando o gato, ele golpeou a menina na frente dos pais, e ordenou a prisão dos três em celas separadas. Ele pessoalmente torturava cada um deles. Simone foi jogada no chão, esmurrada e chutada repetidamente (e nos sete dias seguintes, chutada nos lugares onde haviam feridas abertas), até entregar a identidade dos irmãos. Depois foi devolvida à mãe ("Isto é o que a senhora fez à sua filha"). A família LaGrange foi enviada a campos de concentração. Simone foi a única a sobreviver após um ano de trabalhos forçados - sua mãe foi morta numa câmara de gás, e o pai morto por um soldado com um tiro na cabeça bem à sua frente.

Outra vítima fatal, porém não confirmada por documentos oficiais, teria sido a de um líder da Resistência em Lyon, surrado, esfolado vivo e a cabeça descarnada mergulhada num balde de amônia. Morreu minutos depois.

Antes do desembarque aliado na Normandia e do abandono das bases nazistas na França, Klaus Barbie localizou um orfanato em Izieu que abrigava 44 crianças judias de 3 a 14 anos. Em carta ao quartel-general da Gestapo em Paris, Barbie escreveu que todas as crianças e os funcionários do orfanato (dez no total) foram presos, depois deportados para Auschwitz. Com a evacuação de Lyon, Barbie foi realocado para o front ocidental, mas fugiu dos combates de volta para a Alemanha. Escondido, ocultou sua identidade e se tornou um mendigo errante pelas estradas até ser preso e identificado por uma patrulha americana perto de Hohenlimburg.

Neste momento, o leitor mais otimista, acostumado com o destino dos vilões dos filmes, esperaria que Klaus Barbie fosse finalmente conduzido a julgamento e recebido punição condizente por seus crimes. Mas a História às vezes segue por caminhos sinistros.

Com o fim da Guerra e o avanço soviético sobre a Europa Oriental e parte da Alemanha, os Estados Unidos e o Reino Unido temiam que o comunismo se propagasse pela Europa Ocidental, especialmente na França, então sob controle da Resistência. Decididos a sabotar a ação de células comunistas, os americanos constituíram uma agência de contrainteligência (o CIC) para identificar seus membros. Um dos agentes contratados pela sua experiência em espionar comunistas na França, e que vinha trabalhando desde 1946 a serviço dos britânicos nessa função, foi ninguém menos que Klaus Barbie.

Não é o caso de Barbie estar usando uma identidade falsa, ou não ser suficientemente conhecido e contratado oportunamente sob disfarce, ou não se soubesse do que havia feito a serviço dos nazistas. Ele era bem conhecido, e os antigos Aliados sabiam de quem se tratava, da sua capacidade de trabalho e dos seus métodos. Outros nazistas que espionavam atividades comunistas, como Alois Brunner e Reinhard Gehlen, também trabalharam para o CIC. Tanto que a justiça francesa já o havia condenado à morte por uma série de crimes já confirmados in absentia. Quando os franceses o descobriram em 1950, a CIA providenciou a sua fuga para a Bolívia, possivelmente com a colaboração da mesma rede de ex-nazistas que ajudou nazistas notórios a fugirem no anonimato, como o próprio Brunner (foragido e possivelmente morto na Síria), Josef Mengele, Gustav Wagner e Aribert Heim (também foragido). Tendo permanecido oculto no país sob proteção da CIA (usava o nome de "Klaus Altmann"), foi contratado sob o codinome "Adler" pelo próprio serviço secreto da Alemanha Ocidental nos anos 1960 para espionar comunistas no exterior. Mesmo enquanto não estava em serviço, a identidade de Barbie era protegida para evitar o constrangimento para os Estados Unidos de tê-lo recrutado em algum momento, e Barbie capitalizou sobre esta situação.

Em 1964 um golpe militar apoiado pela CIA colocou no poder alguns nomes com quem Barbie havia estabelecido boas relações. A Bolívia havia passado por uma década de grandes reformas de tendência socialista (uma ampla reforma agrária e a nacionalização de minas de estanho), e o novo regime conservador as paralisou completamente. A aura "imperialista" sobre a Bolívia atraiu a atenção do guerrilheiro Ernesto "Che" Guevara. Che já havia se afastado da Revolução Cubana, e falhou em organizar uma milícia socialista no Congo. Na Bolívia, sob o pseudônimo de Adolfo Mena González, conseguiu arregimentar 69 guerrilheiros para iniciar um movimento para a derrubada do atual regime. A CIA realizou operações conjuntas com o governo boliviano para eliminar a guerrilha, mas Che continuava evasivo. Klaus Barbie, com sua experiência de inteligência contra-guerrilha, então entrou em ação para localizá-lo e organizar a caçada que resultou na sua morte, em 1967. "Este pobre homem", teria dito, "não teria sobrevivido se tivesse lutado na Segunda Guerra Mundial."

Enquanto isso, judeus sobreviventes da Guerra e filhos de vítimas do nazismo se organizavam em diferentes grupos de "caçadores de nazistas", levantando informações que levavam à localização de oficiais nazistas foragidos pelo mundo. Em 1971 surgiram indícios de que Barbie estava na Bolívia, e em 1973 ele escapou de uma tentativa de sequestro por antigos companheiros de Che, que pretendiam entregá-lo às autoridades chilenas, e de lá para a França (o grupo foi localizado e morto antes por forças bolivianas). Em 1980 ele teria tomado parte no golpe militar que levou o general Garcia Meza ao poder (num golpe apelidado posteriormente de "Golpe da Cocaína", porque teria sido financiado com dinheiro do tráfico de drogas). Barbie teria recrutado companheiros da Gestapo como mercenários a serviço da junta militar. Com o fracasso do golpe e o enfraquecimento do poder dos militares bolivianos, Siles Suazo, cujo partido havia obtido maioria antes do golpe de 1980 e esperava-se que assumisse a presidência então, foi efetivado em 1983. Sabendo das atividades de Barbie, mandou prendê-lo e extraditá-lo para a França.

Barbie (apresentando-se como Altmann) foi levado a julgamento em Lyon, certo de que, como Klaus Altmann, não haveria como provar as acusações de crimes de guerra. Mas as acareações com suas vítimas, como LaGrange, Aubrac, Lesevre (que obteve licença da côrte para testemunhar sentada devido à lesão na coluna, mas, aos 86 anos, fez questão de fazê-lo de pé), e outros, confirmaram sua identidade. Em 1987, aos 74 anos, foi considerado culpado em 341 acusações, e condenado à prisão perpétua. Estima-se que, pelas suas mãos ou por ordens diretas suas, algo entre 4 mil a 14 mil pessoas tenham sido mortas.

Se não fossem os caçadores de nazistas franceses desencadeando o processo, é possível que Klaus Barbie tivesse tido uma velhice tranquila, e talvez fosse lembrado (como Klaus Altmann) como um herói da civilização ocidental. Não como o "Açougueiro de Lyon".

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A semente da maçã

Em 24 de setembro de 1664, a colônia holandesa de Nova Amsterdam, na ilha de Manhattan, foi entregue à Inglaterra sob a presença em seu porto de quatro fragatas inglesas. Em homenagem ao Duque de York, organizador da expedição, a colônia foi rebatizada como New York (peço licença para aportuguesar o nome todo, Nova Iorque). Todo o processo foi uma consequência de conflitos na Europa envolvendo os dois países, ora do mesmo lado, ora de lados opostos.

A baía de Nova Iorque, formada pela desembocadura do rio Hudson, e a ilha que se projeta na sua saída foram mapeadas pelo navegador italiano Giovanni da Verrazzano, a serviço do rei Francisco I da França, em 1524.  A partir de 1609, navios holandeses começaram a sondar a região. A Holanda reivindicava uma parte do nordeste dos atuais Estados Unidos como seu território na América do Norte (a Nova Holanda), e Manhattan estava incluída. O navegador Adriaen Block, em 1614, elaborou um mapa detalhado da região, e com isso conseguiu o monopólio para a sua exploração comercial. João Rodriguez *, mulato português nascido na colônia espanhola de Santo Domingo, na atual República Dominicana, e a serviço dos holandeses, foi em 1613 morar com a tribo Mahanatta, da nação Lenape (cujo nome batizaria a ilha de Manhattan), onde se estabeleceu como trapista, comercializando as valiosas peles de castor e seu almíscar (substância conhecida como castoreum, usada em perfumaria) com os navios de Block. Através do navegável rio Hudson, Rodriguez atraía o interesse de diversas tribos do do continente dispostas a trocar seus produtos por bugigangas holandesas, tornando a proto-colônia altamente lucrativa.

Por volta de 1620, os holandeses estavam no controle do comércio internacional, com uma marinha mercante maior do que a de todos os outros países europeus combinados, feitorias em todos os continentes conhecidos, inclusive uma nova colônia no que antes era território português assegurado pelo Tratado de Tordesilhas, bem no atual Nordeste do Brasil. A Inglaterra, por outro lado, suplantara o poderio naval da Armada Espanhola (numa época em que a própria Holanda era regida pelo rei espanhol Filipe II, rebeldes holandeses apoiaram os ingleses durante sua campanha), e crescia para se tornar um competidor internacional da corrida por novas terras e rotas de comércio além mar, tendo a Holanda como rival a ser superado. Um acordo de paz da Inglaterra com a Espanha em 1603 fez deteriorar as relações com os holandeses, que almejavam sua independência dos espanhóis e esperavam ter a Inglaterra como aliado. Em 1620, um grupo de colonos calvinistas financiados por empresários ingleses pretendiam penetrar a Nova Holanda pelo rio Hudson, mas acabaram desviando para o Cabo Cod, em Massachusetts, onde formaram a colônia de Plymouth (esses colonos ficariam conhecidos como Peregrinos). Outro incidente em 1623, quando 10 britânicos foram mortos numa colônia holandesa nas Molucas, repercutiu negativamente na disposição entre as duas nações.

Em 1624, um grupo de colonos arregimentados pela recém criada Companhia Holandesa das Índias Ocidentais foram enviados a Nova Holanda para tomar posse e ocupar o território. Alguns deles foram removidos para a ponta sul da ilha de Manhattan no ano seguinte, para proteger a desembocadura do Hudson - uma das principais vias de acesso ao interior do continente - de invasores europeus. Em 1625, a colônia de Nova Amsterdam nascia dentro de um forte. Uma guerra entre nativos rio acima forçou o deslocamento de outros colonos holandeses para a ilha. Para garantir a segurança dos colonos e suas propriedades e lavouras na ilha, o novo diretor da Companhia, Peter Minuit, negociou com os Mahanattas a aquisição daquela terra em troca de mercadorias no valor de 60 florins. Aparentemente, os Mahanattas não tinham o controle de fato da ilha, frequentada por outra tribo, os Weckquaesgeeks (alguns dos quais foram viver em Nova Amsterdam). O chefe Mahanatta, que aceitou a oferta de bom grado, deve ter achado Minuit um tolo. A memória coletiva da colônia se encarregaria de transformar essa negociata em algo menos embaraçoso: a lenda popular conta que Minuit teria comprado a ilha de nativos ingênuos em troca de quinquilharias e colares de conta (os holandeses aprenderam que esse produto específico, que para eles não tinha valor, era usado como moeda de troca entre as tribos locais) no valor de 24 dólares. De qualquer forma, a transação garantia a legalidade do assentamento holandês e impedia a sua contestação por qualquer outra nação europeia. O forte, cercado por um muro de madeira e barro, prosperou nos anos seguintes, recebendo o título de cidade em 1653.

Enquanto a Companhia se encarregava das colônias na América, a Holanda mergulhava em uma guerra com a Inglaterra. Como foi dito mais acima, a Inglaterra terminou por selar a paz com a Espanha, mas o poderio espanhol ficou comprometido. A violenta Guerra dos Trinta Anos, entre 1618 e 1648, devastou a Europa e enfraqueceu o controle espanhol sobre seu vizinho Portugal, declarado independente desde 1640, e sobre suas próprias colônias. Portugal também estava mais preocupado em reestruturar-se internamente do que em cuidar de suas colônias, de maneira que Inglaterra e Holanda entraram numa corrida para tomar posse daquelas terras, definitivamente anulando os efeitos do Tratado de Tordesilhas. A Holanda levava vantagem pela enorme quantidade de navios circulando com mercadorias, posições estratégicas nas ilhas Molucas (de onde vinham as cobiçadas pimenta-do-reino e noz-moscada, cuja carga de um único navio poderia fazer seu proprietário rico pelo resto da sua vida), Caribe, África e América do Sul. Seu comércio competitivo era baseado no livre mercado, desprovido de taxas (ou com taxação insignificante), em contraste com o regime de taxações, comissões e permissões necessárias para a operação dos negócios na Inglaterra. E, por fim, a Holanda prosperava enquanto a Inglaterra estava em guerra civil, em parte, alimentada pela Holanda, que apoiava monarquistas. Contudo, com a vitória próxima, os republicanos começaram a acusar os holandeses de tomar proveito do conflito para lesar o comércio inglês nos seus mercados tradicionais. Quando o rei Carlos I foi executado em 1649, o comandante-em-chefe da República Holandesa, seu parente, manifestou sua indignação, e o comandante-em-chefe da nova república inglesa, Oliver Cromwell, declarou o país inimigo. Novas leis limitando o comércio das colônias com navios holandeses criaram atritos que levariam à Primeira Guerra Anglo-Holandesa.

Esta guerra, que durou de 1652 a 1654, resultou em uma discreta vitória inglesa (Cromwell pretendia incorporar a Holanda à Comunidade da Inglaterra, sob seu comando, e firmar uma aliança contra a Espanha para tomar suas colônias na América; nada disso foi aceito). Contudo, a paz selada no Tratado de Westminster não deu fim aos conflitos, pois as companhias comerciais dos dois países, operando com alto grau de autonomia e armadas com navios de guerra e soldados, continuavam se enfrentando pelo controle das rotas comerciais e pelo acesso aos recursos naturais das colônias. Cromwell se preocupava em evitar que essas animosidades tomassem caráter oficial, provocando nova guerra, porque um estado continuado de beligerância entre os dois países seria extremamente prejudicial (na paz os holandeses mantinham sua vantagem, mas em guerra os dois estavam militarmente em pé de igualdade, então uma guerra prolongada levaria à exaustão a marinha inglesa sem afetar decisivamente a Holanda). De fato, a Inglaterra entrou em guerra com a Espanha, e a Holanda, deixada em paz, viveu o seu apogeu nesse período.

O regime republicano não durou muito, e a Inglaterra restaurou seu rei, Carlos II, parente da casa de Orange e guardião do seu herdeiro, Guilherme III, em 1660. Porém, a volatilidade das alianças e animosidades na Europa levaram Carlos a adotar a posição de uma facção anti-orangista na côrte. Lorde Arlington, seu amigo mais próximo, argumentava que o domínio comercial holandês era mais perigoso do que as peripécias continentais da França, o seu mais tradicional rival. O Duque de York, Jaime, irmão de Carlos, era um entusiasta da ideia de tomar as possessões holandesas na América. Ele financiou uma expedição contra os postos holandeses na costa Africana em 1663, ao mesmo tempo em que arregimentava 4 fragatas com 450 homens para tomar controle do rio Hudson. O rei lhe garantiu a posse dos novos territórios na América.

Em 1664, Nova Amsterdam era administrada por Peter Stuyvesant, experiente capitão que usava uma perna de pau desde que perdera o membro numa batalha pelo controle da colônia espanhola de San Martin, no Caribe. Apesar de estar no cargo havia 17 anos, a influência de Stuyvesant dentro da colônia estava tragicamente abalada por causa de uma série de decisões desastradas. A começar pela sua inabilidade em mediar conflitos na colônia próxima de Albany (atual capital do estado de Nova Iorque), e na negociação sobre a posição das fronteiras entre Nova Amsterdam e a colônia inglesa de New Haven, em Connecticut (os seus compatriotas acusavam Stuyvesant de entregar terras holandesas aos vizinhos "suficientes para fundar cinquenta colônias"). Quando sua colônia foi reconhecida oficialmente como cidade, Stuyvesant havia acabado de tentar um golpe para assumir controle total sobre Nova Amsterdam dissolvendo seu conselho e declarando sua liderança "incontestável". Durante um conflito entre Holanda e Suécia na Europa, Stuyvesant comandou a conquista de uma colônia sueca no rio Delaware (onde se situa a maior cidade do estado do Delaware, Wilmington). Essa colônia, a Nova Suécia, era parceira comercial e protegida pela nação Susquehannock, que comandou uma campanha à colônia holandesa de Pavonia, em retaliação. Stuyvesant, que era protestante da Igreja Reformada Holandesa (de orientação calvinista), tinha suas diferenças com os colonos luteranos e judeus ("imundos", a quem "convidou" a deixarem a colônia para que não atraíssem outras minorias indesejáveis, como os católicos). Porém um afluxo de judeus vindos de Recife, recém reconquistada pelos portugueses, e as ordens da Companhia Holandesa, o persuadiram a deixá-los ficar. Quakers também eram perseguidos, assim como os que oferecessem abrigo a eles.

As fragatas inglesas chegaram a Manhattan em agosto. Elas aportaram perto da cidade, e um dos capitães entregou a Peter Stuyvesant uma carta de rendição, garantindo a vida, a segurança e as propriedades de todos na colônia sob a proteção do rei da Inglaterra. Passaram-se nove dias, em que Stuyvesant tentou articular algum movimento de resistência, esperando também que a Companhia ou o próprio governo holandês viesse a seu socorro, mas como não viesse ninguém, com sua popularidade tão prejudicada, ficou de mãos vazias, até que finalmente ratificou os termos (ele, contudo, conseguiu incluir artigos garantindo a liberdade religiosa para os reformados holandeses sob jugo anglicano). Em 24 de setembro o governo da cidade foi entregue a Richard Nicholls, comandante da expedição, e a colônia rebatizada em homenagem ao Duque de York..

No ano seguinte, as tensões entre Inglaterra e Holanda explodiriam finalmente na Segunda Guerra Anglo-Holandesa, e depois em uma terceira, quando a Holanda tentaria retomar Nova Iorque, apenas para perdê-la novamente meses depois. Nova Iorque, situada na desembocadura do rio Hudson, se tornou a porta de entrada para a colonização do nordeste dos atuais Estados Unidos. Também estava numa posição favorável a receber, ao longo dos séculos, seguidas levas de imigrantes de todos os continentes (inclusive de ex-escravos libertos ou fugidos do sul do país) em busca de oportunidades e melhores condições de vida, transformando-a numa cidade multicultural. Durante o século XX e começo do século XXI cresceu para se tornar a mais populosa cidade do mundo, centro nervoso financeiro e cultural dos Estados Unidos, visível e influente em todo o planeta - visibilidade que a tornou alvo de atentados terroristas espetaculares, e também modelo mundial de gestão em segurança e turismo, e símbolo maior de várias coisas, da opressão do capital à liberdade do indivíduo.

*P.S.: Sobre João Rodriguez, é icônico que tenha sido o primeiro morador do que hoje é Nova Iorque, sendo filho de pai português e mãe africana, e nascido num país hoje considerado "hispânico", refletindo prematuramente a atual natureza multiétnica e cosmopolita da cidade.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Rapidinhas, ou "Somos todos Plutarco"

Dia 23 de setembro é data de nascimento de dois formadores de impérios, Otaviano Augusto, de Roma (63 a.C.) e Kublai Khan, da China (1215).

Eu não sou Plutarco e não vou me atrever a escrever algo na linha de seu Vidas Paralelas. A ascenção de Otaviano ao poder tomou vias incrivelmente convolutas, que envolveu casamentos feitos e desfeitos, conquistas e assassinatos de seu patrono e "pai adotivo" Júlio César (possivelmente, alguma adulteração do seu testamento também), uma guerra civil que começou com uma aliança com seu maior rival, e terminou com a morte deste, e, uma vez no poder, a transformação gradual do seu status para se tornar o primeiro imperador de Roma. Kublai Khan, por outro lado, era neto de Genghis Khan, conquistador que espalhou o domínio mongol por toda a Eurásia. Após a sua morte, seus herdeiros mais capazes foram eleitos para o seu lugar, e Kublai, educado por chineses, foi o último Grande Khan reconhecido universalmente por 1/5 de todas as terras do planeta - às quais ele adicionaria o norte e o sul da China, fundando a dinastia Yuan. O império de Augusto durou mais tempo do que a dinastia Yuan.

Qualquer um dos dois personagens oferece uma vastíssima gama de assuntos que poderiam ser tratados, e eu realmente não tenho tido muito tempo para me dedicar com profundidade a temas tão abertos. Por essa razão, eu evitei escrever sobre Marco Polo em duas oportunidades nas últimas semanas, quando chegaram as datas em que ele ditou suas aventuras na prisão, e a de sua morte - as vidas de Marco Polo e de Kublai Khan se cruzaram de maneira indelével na sua estada na China, trazendo para o Ocidente as primeiras notícias detalhadas do extremo oriente. É muita história para ser escrita durante um dia, nos intervalos do trabalho.

Mas isso não é desculpa para inatividade! Então aí vão outras rapidinhas... no irresistível estilo de Plutarco:

Por coincidência, 23 de setembro também é a data em que Noruega e Suécia se tornaram países independentes de maneira pacífica em 1905 (anteriormente unidos sob a coroa sueca), e a data oficial de incorporação dos reinos árabes de Nejd e Hijaz (conquistado na década anterior) em 1932, sob o sultão Abdulaziz ibn Saud, de Nejd, formando a Arábia Saudita.

É o dia em que um negro americano é condenado vai a julgamento (e será o único condenado dos oito acusados) por atos de vandalismo e incitação à violência em um protesto contra a Guerra do Vietnã em Chicago (Bobby Seale, em 1969), e o dia em que um branco se torna o primeiro boxeador africano a se tornar campeão mundial dos pesos pesados (Gerrie Coetzee, em 1983, vencendo Michael Dokes).

É a data em que falecem o criador da psicanálise Sigmund Freud (1939), o poeta chileno Pablo Neruda (1973).

Edward Lee Howard, agente da CIA, é preso como espião na União Soviética em 1985, enquanto, durante a Revolução Americana, foi o militar britânico John André que os revolucionários prenderam por espionagem em 1779.

Em 1911, o americano Earle Ovington, pilotando um Blériot XI, conseguiu entregar a primeira encomenda aérea da História, e em 1999, a NASA perdeu contato com a sonda Mars Climate Orbiter, projetada para se tornar um satélite meteorológico no planeta vermelho e destruída durante uma entrada acidental em sua atmosfera.

De acordo com alguns teoristas, o dia 23 de setembro também é o dia em que o mundo será destruído por um evento cataclísmico global. Ou ao menos é em que acredita o ministro do exterior da França, monsieur Laurent Fabius.

Então, até amanhã.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Salamina

Em 22 de setembro de 480 a.C., grande parte da armada persa empregada na campanha do rei Xerxes contra a Grécia foi destruída por navios gregos na batalha naval de Salamina, ilha próxima ao porto ateniense de Pireu.

Xerxes herdara o trono persa de seu pai, Dario. Também herdara dele o plano de invadir a Grécia e neutralizar a resistência das cidades-estado gregas contra o domínio persa no Mediterrâneo e na Anatólia, onde a sua influência causava tumultos nas cidades helênicas sob controle persa. Depois fincar os pés na Europa tomando o controle sobre a Trácia (uma região periférica da Grécia, que corresponde às atuais porção européia da Turquia e Bulgária), Dario lançou um ataque anfíbio em 490 a.C. tendo Atenas como alvo, mas foi derrotado pelos atenienses na Batalha de Maratona. Ele morreu três anos mais tarde preparando uma nova campanha, deixando para Xerxes a tarefa de trazer o coração do mundo grego para dentro do Império Aquemênida.

Nos sete anos que se seguiram, enquanto consolidava o poder abafando revoltas no Egito e na Babilônia, Xerxes e seus generais construíram a maior máquina de guerra da Antiguidade. Arregimentando soldados em todas as províncias e reinos aliados da Índia até a Líbia, de mercenários citas a aventureiros etíopes e sudaneses, com uma elite de dez mil guerreiros persas especialmente treinados e disciplinados (os Imortais), e mais os operadores de logística - ferreiros, médicos, sacerdotes, batedores, espiões, carregadores, escudeiros, cozinheiros, artífices, cuidadores de animais, construtores de carroças, pontes, armas de cerco e navios - Xerxes reuniu uma força de possivelmente mais de 2,5 milhões de pessoas, mais de 1200 trirremes prontas para combate, e outras 3000 embarcações de transporte. Para se ter uma dimensão desse número, no ano 400, 80 anos depois, a Grécia continental, as ilhas do Egeu, e as cidades helênicas da Anatólia somavam todas 3,5 milhões de habitantes. Heródoto, o historiador que se tornou a principal fonte primária para os eventos da Segunda Invasão Persa à Grécia, dizia que o contingente persa demorava três dias marchando para passar por um lugar, e que eles secavam rios, arrasavam florestas, e arruinavam os víveres das cidades que lhes ofereciam "terra e água" (eufemismo persa que significava sua rendição).

Os gregos, por outro lado, estavam tipicamente divididos entre si quanto à estratégia a ser tomada. A começar pela Beócia, liderada pela cidade-estado de Tebas, que resolveu pragmaticamente se unir aos persas com vistas à aniquilação conjunta de suas principais rivais, Atenas e Esparta. Já os atenienses pregavam uma ação conjunta por mar e por terra com Esparta e seus aliados (apostando na lendária ferocidade dos hoplitas espartanos), mas os espartanos apostavam na construção de um muro no Istmo de Corinto, acreditando que, forçando uma invasão do Peloponeso pelo mar, eles seriam capazes de repelir qualquer ataque. Isso, claro, deixaria Atenas, situada na Ática, vulnerável. A única segurança que os atenienses tinham em relação a Esparta era o fato dos espartanos terem recusado uma oferta anterior de aliança com os persas. Dentro de Atenas mesmo havia discordância quanto ao emprego de resistência em terra ou quanto à construção de uma frota que pudesse parar os persas pelo mar. Um oráculo obtido em Delfos obtido (provavelmente mediante suborno) pelo notável general ateniense Temístocles, de interpretação naturalmente dúbia, falava de uma "muralha de madeira" que salvaria a cidade. Alguns acreditavam ser referência às lanças de freixo dos hoplitas, ou mesmo a confirmação do muro perto de Corinto. Temístocles advogava que as muralha de madeira seriam os navios, e, a despeito das indecisões, começou a empregar seus próprios recursos e obter empréstimos para a construção dos mesmos (o que, apesar de tudo, o levou à ruína mais tarde).

Os persas avançavam praticamente sem oposição. Temístocles e o espartano Euenerus levaram 10 mil gregos para tentar deter os persas no passo do Vale de Tempe, na Tessália. A intenção não era, obviamente, derrotar os milhões de inimigos em batalha, mas atrasá-los tempo suficiente para que seus suprimentos se esgotassem - em virtude da enorme demanda de recursos, tamanho exército precisava se manter em movimento para ter acesso a novas fontes de água e alimento - mas foram alertados pelo volúvel Alexandre I, rei da Macedônia, de que o passo podia ser evitado por pelo menos dois desvios, e os gregos recuaram, entregando a Tessália aos persas. A ideia de tentar bloquear o avanço persa inspirou outros dois movimentos dos aliados gregos: o bloqueio da passagem das Termópilas (os espartanos foram convencidos a muito custo por Temístocles de adiantarem suas forças para além do istmo naquela altura, e mesmo assim, foi praticamente uma iniciativa individual do rei Leônidas), e pelo mar, no estreito de Artemísion. Embora a força espartana tenha detido os persas em Termópilas por uma semana (quase obtendo sucesso em provocar as dissenções desejadas no exército invasor), o bloqueio em Artemísion foi praticamente inútil, pois os navios persas, depois de uma breve batalha, contornaram a ilha da Eubéia pela sua costa oceânica, ignorando os defensores no estreito.

Antes mesmo desses dois últimos reveses, os peloponesos já estavam levantando seu muro, e Atenas havia iniciado a evacuação da cidade pelo porto de Pireu, conduzindo todos os cidadãos com o que pudessem carregar para a ilha próxima de Salamina. Temístocles retornou a tempo com as naus sobreviventes de Artemísion para auxiliar no transporte e tentar organizar alguma resistência. Embora os aliados espartanos tivessem o receio de talvez desperdiçar recursos protegendo Atenas - abandonada e entregue aos invasores - os atenienses conseguiram arregimentar cerca de 370 trirremes, incluindo suas 180 naus. Após o fim da evacuação, as trirremes ficaram estacionadas numa praia de águas calmas protegida por um braço de rochedos que se estende da extremidade sul da ilha em direção ao continente, perfazendo um estreito dividido pela ilha rochosa de Psitaléia no meio do caminho. Ali eles esperaram.

Os persas avançavam com a marinha apoiando as operações em terra e garantindo a segurança das barcaças que transportavam suprimentos e faziam uma linha de abastecimento entre a Ásia e a Grécia. Além disso, a única rota de comunicação e fuga para a Ásia por terra realmente segura era uma ponte provisória montada sobre o Estreito de Bósforo (a alternativa seria contornar pelo norte do Mar Negro passando pelas terras dos indômitos citas). Apesar do poder massivo do exército, a sua permanência na Europa só era viável com o apoio naval. Então o avanço das duas forças precisava ser coordenado. Mesmo com caminho livre, e Atenas desguarnecida e entregue aos saques, os persas avançaram diligentemente acompanhados da marinha, que fazia o longo contorno da Eubéia e finalmente chegava à Ática, pelo menos duas semanas depois de passarem por Termópilas, mais ou menos 200 quilômetros ao norte. De fato, os persas tomaram Atenas, destruíram e saquearam o que fora deixado para trás. Eles sabiam que os atenienses haviam se refugiado em Salamina, e esperaram talvez alguns dias até que a marinha estivesse em posição para um ataque. Xerxes montou um palanque num morro próximo ao Pireu, de onde assistiria a vitória da sua poderosa armada.

Porém, o que os persas não haviam se dado conta era da vantagem que a posição grega oferecia. De onde Xerxes tinha visão, e do ponto de vista dos capitães que vinham do leste e do sul, era impossível ver o que se passava além dos rochedos do estreito de Salamina, como a posição, a disposição, e o número de naus defensoras. Estavam tão confiantes nos seus números (apesar de perdas consideráveis em Artemísion, Xerxes colocara possivelmente mais de mil naus em posição de combate em Salamina), e na habilidade dos capitães fenícios, que constituíam o principal corpo da marinha persa. Os persas acreditavam que a intrusão massiva de navios em Salamina provocaria um movimento de fuga, que seria bloqueada do outro lado da ilha pelos navios egípcios, esmagando a frota ateniense completamente. Essa disposição era algo quase pessoal para Xerxes, pois foram os atenienses que comandaram a embaraçosa derrota em Maratona anos atrás, e eram a força política que comandava a resistência grega. Mais do que destruir colunas e paredes de pedra, era preciso aniquilar sua força militar e colocar seu povo sob jugo. Não era realmente necessário, do ponto de vista da conquista da Grécia, enfrentar os atenienses encurralados em Salamina . A rainha Artemísia de Halicarnassos, cidade grega asiática aliada aos persas, tentou persuadir Xerxes a seguir em direção ao Peloponeso, mas foi voto vencido.

Heródoto não presenciou o que aconteceu em Salamina. Ele era uma criança pequena em Halicarnasso quando aconteceu, e procurou recontar da forma mais coerente possível as diferentes versões de que ouviu falar. O célebre poeta Ésquilo era um dos remadores das 180 naus atenienses envolvidas na batalha, mas mesmo ele tinha a visão limitada pela própria estrutura do navio (os remadores eram protegidos pela amurada das trirremes e não viam quase nada). Talvez apenas Xerxes, vendo do alto a entrada do estreito, tenha conseguido uma visão mais clara de como a batalha se desenrolou.

A primeira coisa que deve ter chamado a atenção do rei ao nascer do sol do dia 22 foi o movimento das naus coríntias para o norte, em direção ao estreito de saída do canal do outro lado da ilha. Provavelmente imaginando que os gregos estavam tentando uma fuga, ordenou o avanço da vanguarda fenícia e da retaguarda egípcia. Mas ao entrar pelo estreito, os fenícios, desfazendo sua formação para navegar praticamente em fila pelo estreito, devem ter ouvido o peã, ou hino de guerra, cantado a plenos pulmões, vindo da praia à sua esquerda e possivelmente puxado por Temístocles:

"Oh, filhos dos gregos, adiante
Libertem seu país, libertem
Seus filhos, suas mulheres, o lar dos deuses dos seus pais,
E as tumbas de seus antepassados: agora lutem por todas essas coisas!"

As batalhas navais no Mediterrâneo daquele período constituíam basicamente de navios com aríetes em suas proas tentando abalroar navios inimigos para levá-los a pique, ou destruindo seus remos para imobilizá-los, sendo a abordagem e a luta corpo a corpo utilizadas apenas como último recurso. As naus gregas estavam alinhadas em perfeita ordem ao longo da enseada, de maneira que quando os navios inimigos vinham pelo estreito, surgiam oferecendo seu flanco aos defensores. Além da posição inicial de combate extremamente vantajosa, o estreito permitia a passagem de poucas trirremes de cada vez, neutralizando a vantagem numérica dos persas. Atenienses avançando pela esquerda, espartanos e demais lacedemônios pela esquerda, e demais aliados pelo centro, fulminavam os navios inimigos com seus esporões. Os capitães fenícios reagiram rapidamente, e manobraram seus ágeis navios de volta para o estreito.

Contudo, como fora do estreito era impossível ver o que se passava, as fileiras persas continuavam em movimento. Em alguns momentos, aliados abalroaram aliados, ora confundindo-os com inimigos, ora falhando em evitar uma colisão, ora tentando abrir caminho para sua própria fuga. Um irmão de Xerxes, o almirante Ariabignes, foi morto. Artemísia, comandando pessoalmente a frota grega da Cária, atacou naus persas para fugir da perseguição de uma trirreme ateniense (possivelmente para confundir os defensores sobre a sua lealdade em combate). Xerxes, observando Artemísia, teria pensado que ela afundava navios inimigos, afirmando "Meus homens se tornaram mulheres, e minhas mulheres, homens." Quando os persas conseguiram viabilizar uma rota de fuga, navios da cidade de Egina partiram em perseguição e afundaram tantos quantos puderam alcançar, enquanto Aristides, general ateniense, desembarcou uma tropa em Psitaléia para aniquilar uma guarnição persa na ilha. Entre 300 e 600 navios persas foram afundados (e a perda de vidas por afogamento foi imensa, pois os persas eram cavaleiros das estepes, não marinheiros), enquanto apenas 40 navios gregos se perderam. Os persas recuaram para o outro porto ateniense de Faleron. Os egípcios, que esperavam as naus em fuga na outra ponta da ilha, desses não se tem certeza do que aconteceu (é possível que os coríntios os tenham afundado, ou que tenham debandado com a notícia da derrota)

Ao final do dia, vendo tudo do seu palanque sobre a rocha, Xerxes, enfurecido, teria ordenado a decapitação dos capitães fenícios (causando a deserção da marinha fenícia de volta à Ásia) e punições condizentes aos demais. No primeiro momento ele teria ordenado a construção de uma ponte ligando o continente a Salamina, mas isso seria impossível agora que Atenas tinha o controle sobre o mar. À noite, conferenciando com seus generais, Mardônio, um dos seus principais comandantes, sugeriu que Xerxes regressasse à Ásia com o grosso do exército, onde ele poderia reagrupar e se preparar para a próxima campanha quando o inverno passasse, enquanto ele mesmo ficaria no comando de um destacamento para consolidar a presença persa nos novos territórios conquistados. Na verdade, havia receio de permanecer com o exército na Grécia durante o inverno correndo o risco de desabastecimento, e medo de que os atenienses, agora em vantagem no mar (os navios em Salamina totalizavam agora cerca de 330, contra cerca de 300 remanescentes persas), pudessem cortar as linhas de abastecimento pelo Egeu e destruíssem a ponte no Bósforo. Assim, Xerxes foi embora o mais rápido possível para nunca mais voltar, e Mardônio recuou para a segurança da colaboracionista Eubéia.

A vitória grega em Salamina seguramente mudou a História. Uma guerra virtualmente impossível de ser vencida havia virado agora a seu favor. A Grécia, ou ao menos a parte sul, estava segura e com a moral em alta. Menos de um ano depois, vitórias simultâneas nas batalhas de Platéia e Micale eliminaram a presença militar persa na Grécia continental e no Mar Egeu. A importância do resultado em Salamina para o mundo como nós conhecemos é incalculável, porque o desenvolvimento do mundo ocidental, cuja rocha-matriz cultural é o helenismo - e suas noções de organização política, cidadania, sociedade, liberdade - cujos principais centros de influência, Atenas e Esparta, estavam marcadas para serem obliteradas pelos persas, teria sofrido uma influência enorme do modelo civilizatório persa, e tomado direções muito distintas. Talvez o cristianismo, sem o arcabouço filosófico do platonismo e sem o substrato religioso "pagão" relativamente volúvel às novas crenças, tivesse ficado restrito à Palestina, e hoje estivéssemos celebrando nossos atuais reis divinos usando o persa, não o inglês ou o latim, como língua franca?

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Fidel Castro nos Estados Unidos

Em 18 de setembro de 1960, Fidel Castro desembarcou em Nova Iorque à frente de uma delegação cubana para a Assembléia Geral da ONU.

Ao longo dos anos 50, Fidel esteve envolvido em movimentos guerrilheiros de orientação socialista contra o ditador cubano Fulgêncio Batista. Entocado em Sierra Maestra em 1956 com apenas 19 guerrilheiros, seu grupo angariou gradativamente apoio de vários setores da sociedade cubana, inclusive da classe média e de sua insipiente burguesia, que viam a administração Batista como nociva e personalista (de fato, Batista lucrava diretamente com o turismo da ilha, com redes de hotéis, cassinos, e bordéis, usados também para a lavagem de dinheiro da máfia americana, sem reverter os lucros em benefícios públicos). Com a ajuda mais ou menos sutil da sociedade como um todo (em 1958 houve uma greve geral coordenada pela oposição), e o apoio declarado de personalidades conhecidas internacionalmente (como o piloto argentino Juan Manuel Fangio), logo os próprios soldados de Batista começaram a desertar para o lado dos rebeldes. No fim de 1958 Batista foi deposto por um dos seus generais, e fugiu para a República Dominicana com mais de 300 milhões de dólares dos cofres cubanos.

O Movimento 26 de Julho, agora, compunha o governo do país. Normalmente, o momento mais difícil de uma revolução é quando ela se torna tão bem sucedida a ponto de assumir o poder local, porque muitos ideais revolucionários precisam dar espaço para o pragmatismo necessário para conduzir políticas públicas, administrar orçamentos de maneira responsável, estabelecer relações diplomáticas e comerciais saudáveis com os parceiros certos. E esse era o problema do grupo de Fidel, Che Guevara, Raúl Castro, Camilo Cienfuegos, Almeida Bosque e outros revolucionários: fazer o país funcionar.

Ainda em 1958, os Estados Unidos decidiram tomar uma posição em relação ao que estava acontecendo em Cuba. Temendo que os revolucionários fossem comunistas (isso ainda não estava claro nem para eles), os americanos residentes ou de passagem pela ilha foram evacuados às pressas. Os contatos comerciais foram cortados, o comércio foi fechado, e foi uma sugestão de Washington a deposição de Batista antes que Fidel pusesse suas mãos nele: o general responsável pela manobra, Eulogio Cantillo, foi orientado a negociar um cessar fogo com Castro para estabelecer um novo governo, na esperança de que este governo tivesse tempo, força e legitimidade para impedir a ascensão dos revolucionários ao poder (ele seria preso logo depois por simpatizantes no exército, ao não entregar o poder aos revolucionários). A retórica anti-capitalista e anti-americana de Castro, que incluía planos declarados de nacionalização de negócios estrangeiros, também assustava. Sua reforma agrária foi direta e radical, limitando a área máxima de propriedade para cada família, para isso, expropriando grandes propriedades e minando o poder da elite agrária e investidores estrangeiros; as famílias reassentadas nos novos loteamentos eram de classe mais baixa, o que causou surpresa e descontentamento na classe média urbana e em seus próprios familiares (as célebres discordâncias dos familiares dos Castro que emigraram para os Estados Unidos tem sua origem aí). Mesmo assim, Fidel declarava publicamente que o novo regime não era comunista, embora nomeasse companheiros comunistas para cargos do alto escalão.

De qualquer maneira, durante o primeiro ano de governo ainda como Primeiro Ministro, Fidel Castro ainda podia contar com um influxo de capital proveniente da venda de açúcar e tabaco para os Estados Unidos. Cuba não podia negar a importância dos Estados Unidos como seu principal parceiro comercial, ainda mais depois de Batista fugir do país com grande parte do tesouro nacional. A primeira viagem de Fidel ao exterior como comandante cubano foi para lá, a convite da Associação Americana dos Editores de Jornais. A despeito do tumulto causado aos interesses americanos em Cuba, Fidel foi recebido com entusiasmo pela juventude americana, em universidades, no estádio de baseball dos New York Yankees, até num zoológico, e pela imprensa com interesse (suas histórias de luta em Sierra Maestra, sua eloquência e desenvoltura em público, e seu rosto barbado eram um sucesso entre os leitores).

O mesmo não pode ser dito do seu encontro com o então vice-presidente Richard Nixon. Ele esperava "orientar" Castro a não adotar políticas "radicais", o que foi recebido com ouvidos moucos. Conta uma anedota que, enquanto esperava ser chamado para a reunião, um oficial americano entrou na sala para falar com a delegação cubana, apresentando-se como "encarregado dos assuntos cubanos", ao que Fidel murmurou: "Achei que eu era encarregado dos assuntos cubanos". Tampouco foi feliz em uma reunião com empresários e jornalistas, onde as insinuações de que Cuba precisaria pedir ajuda econômica internacional o fizeram deixar a conferência irritado, algo raro de ser visto em público. O novo ministro das finanças também não obteve sucesso em assegurar linhas de crédito junto aos bancos. O ressentimento dos Estados Unidos quanto ao seu novo status na política cubana foi enorme. Em depoimento ao senado em 1960, o ex-embaixador em Cuba, Earl T. Smith, avaliou que "até Castro, os Estados Unidos tinham tanta influência em Cuba que o embaixador americano era a segundo homem mais importante no país, algumas vezes mais do que o presidente cubano".

Seu tour à procura de investidores incluiu Canadá, Trinidad e Tobago, Brasil, Uruguai e Argentina. Em Buenos Aires, numa conferência, propôs aos Estados Unidos um "Plano Marshall" (o plano de recuperação econômica da Europa pós-guerra) para a América Latina de 30 bilhões de dólares. Não foi atendido. Fidel retornou a Cuba de mãos vazias. Acontece que, apesar do otimismo do discurso cubano, Cuba realmente precisava substituir uma das suas principais fontes de receitas, uma vez que o dinheiro do turismo americano deixou de ser despejado no país (houve até uma campanha fracassada do governo cubano de promover o turismo especificamente aos negros nos Estados Unidos, no alto da era das lutas contra a segregação racial, prometendo um paraíso tropical sem racismo), e os planos internos priorizavam o desenvolvimento social em detrimento do desenvolvimento econômico (razão pela qual, até hoje, a educação e a saúde em Cuba são modelos para países em desenvolvimento, enquanto há escassez e racionamento de produtos básicos do dia a dia).

Entre 1959 e 1960 entra em cena, então, a União Soviética. Mesmo que não se declarasse comunista, a afinidade ideológica de Castro com o leninismo-marxismo era óbvia, e essa convergência o colocou em contato com comunistas importantes da comunidade internacional. Ao saber das negociações infrutíferas com os Estados Unidos, os soviéticos ofereceram comprar toda a produção cubana de açúcar, frutas, fibras têxteis e couro, mais um empréstimo de 100 milhões de dólares, em troca do compromisso de Cuba comprar petróleo, fertilizantes e manufaturados soviéticos. Um excelente negócio num momento crucial para o sucesso do novo regime. Cuba compraria petróleo cru soviético e precisaria de refinarias para transformá-lo em combustíveis, gás, plástico e outros produtos. As refinarias que funcionavam no país pertenciam a empresas estrangeiras, como as americanas Esso e Standard Oil, e sob pressão do governo americano, elas se recusaram a participar do negócio. Fidel confiscou e nacionalizou as refinarias. Os Estados Unidos cancelaram todas as importações de açúcar cubano. Cuba respondeu nacionalizando todos os outros negócios geridos por empresas americanas na ilha, inclusive bancos. A temperatura começou a subir.

Em meio à tensão entre os dois países, Fidel Castro viajou aos Estados Unidos pela segunda vez à frente de uma delegação diplomática, para proferir um discurso na abertura da Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. Sua recepção foi menos calorosa do que da última vez. Setores da imprensa, menos entusiasmada com o ex-guerrilheiro romântico, agora parceiro dos comunistas, consideraram a visita uma provocação. O gerente do Hotel Shelburne, em Manhattan, exigiu que os cubanos pagassem a estadia adiantado e em dinheiro, e, insultada, a delegação se hospedou no modesto Hotel Theresa, no centro da comunidade negra do Haarlen. Foi ali que os cubanos viram as principais manifestações a seu favor, recebendo, inclusive, a visita do ativista Malcolm X e o escritor Langston Hughes, e de autoridades internacionais, como o premier soviético Nikita Krushschev, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, e o primeiro ministro indiano Jawaharlal Nehru. Seu discurso, proferido dez dias depois, começou com "Devemos ser breves", seguido de uma fala de quatro horas e meia, o mais longo feito na sede das Nações Unidas (ele foi transcrito em um documento de 30 páginas). Nele, Fidel denunciava a política agressiva e imperialista americana em Cuba, na América Latina, na África e na Ásia, e que os Estados Unidos já haviam declarado o fim da revolução cubana (de fato, o presidente Eisenhower, meses antes, ordenara à CIA o treinamento de cubanos exilados para operações na ilha, mais sobre isso adiante). Krushschev declarou que Fidel Castro era o "farol do socialismo na América Latina". A delegação ainda promoveu um encontro festivo no hotel com líderes comunistas do Pacto de Varsóvia, intelectuais e lideranças de esquerda.

A relação Cuba-Estados Unidos se deteriorou completamente nos meses seguintes. Eisenhower cancelou todos os acordos comerciais com Cuba (o tabaco cubano, então seu principal produto de exportação, passou a ser contrabandeado para os Estados Unidos), e no começo de 1961 a embaixada americana em Havana foi fechada. Fidel Castro se consolidou no poder (e confirmou o caráter socialista da sua revolução) após a vitória sobre uma brigada de 1400 soldados dissidentes treinados pela CIA na invasão à Baía dos Porcos. A vitória final, seguida um ano mais tarde pela tensa crise dos mísseis nucleares soviéticos posicionados na ilha, provocou um alerta nos Estados Unidos contra a ameaça de revoluções similares se propagarem pelo restante da América Latina. Era preferível a eles o estabelecimento de ditaduras antidemocráticas alinhadas aos seus interesses econômicos do que qualquer movimento popular de caráter socialista. Dessa forma, contribuíram para golpes militares e sua manutenção em quase todos os países latinoamericanos entre os anos 60 e 80 (agentes da CIA coordenaram a ação que levou ao assassinato de Salvador Allende no Chile, e a Operação Brother Sam previa operações de apoio aos militares que depuseram João Goulart em caso de resistência), quando finalmente o desgaste dos governos locais, as crises mundiais que abalavam suas frágeis economias, e o lento fim do poderio soviético levaram à abertura democrática em muitos deles.

O bloqueio comercial perdura há mais de 60 anos, e apenas recentemente os dois países sinalizaram uma aproximação, com a reabertura das suas embaixadas, e o projeto em tramitação no Congresso americano de restabelecimento de relações comerciais com a ilha.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Mundo microscópico revelado

Em 17 de setembro de 1683, o comerciante holandês Antonie van Leeuwenhoek ("Lêuehuk", se você, como eu, verbaliza o texto mentalmente enquanto lê) escreveu uma nota à Royal Society fornecendo a primeira notícia para a ciência da existência de pequenos animais se locomovendo na água - protozoários - observados em um de seus microscópios.

Antonie van Leeuwenhoek nasceu de uma família modesta em Delft, na Holanda, em 1632. Sua educação foi breve, e aos 16 anos estava trabalhando como aprendiz em um armarinho. Pouco depois ele abriria seu próprio negócio no ramo. Enquanto era dono do seu armarinho, Leeuwenhoek usava lentes de aumento para avaliar a qualidade da trama dos tecidos que comprava e vendia. Sua atenção pelos pormenores dos tecidos e da estrutura dos fios desviou seu interesse para a fabricação de lentes. Com algum conhecimento em vidraria, ele desenvolveu um conjunto de pequenas lentes que aumentavam as imagens assombrosamente. Ele passou a observar, além de fios e linhas, tudo que fosse pequeno demais para a vista humanas: insetos, ácaros, estruturas vegetais, animais e minerais, investigava amostras de solo, gotas de água, fluidos corporais e secreções, descrevendo-as e ilustrando-as.

Sem contato com o meio acadêmico, Leeuwenhoek mostrou seu trabalho a um médico, Reinier de Graaf. Foi ele quem escreveu à Royal Society, em Londres, recomendando a qualidade dos microscópios construídos por Leeuwenhoek. Ele então passou a se corresponder com a comunidade científica, mas foi após alguma insistência que suas descobertas foram reveladas para a ciência (ele via a si mesmo como um comerciante sem conhecimento científico ou artístico dignos, e só passou a divulgar suas descobertas após os 40 anos, apenas em comunicações pessoais à Royal Society, e sempre em holandês). Algumas delas espantaram a ciência: a descoberta de "animáculos" que se moviam na água (a primeira descrição de protozoários), pequenos seres que habitavam a saliva humana (que mais tarde seriam classificados como bactérias), a descrição dos arranjos em feixes das fibras musculares, a presença de pequenos seres no esperma (os espermatozoides). Além de descrever a estrutura interna de um grão de café, ele percebeu que os animáculos da saliva (as bactérias) desapareciam das amostras retiradas depois que ele tomava café. Ele ainda sugeriu que os microrganismos se multiplicavam por reprodução, como os animais macroscópicos, ao contrário do consenso da época de que surgiriam espontaneamente das impurezas do meio.

Um contemporâneo seu, Robert Hooke, um naturalista e polímata que também explorava o mundo em seus próprios microscópios e havia descrito as células como unidades formadoras de todo ser vivo conhecido com base na sua observação de uma lâmina de cortiça, se ressentia do crescente prestígio do comerciante de tecidos (e depois camareiro oficial da Câmara Municipal e encarregado de controlar a qualidade de vinhos de Delft) no meio acadêmico. É possível que o holandês não desse muita atenção às críticas de Hooke, reconhecido no meio como ranzinza e propenso a disputas ideológicas com seus pares (ele entrou em conflito com outro gênio de temperamento difícil, Isaac Newton, pela autoria da teoria da gravidade). De fato, Leeuwenhoek obteve fama e prestígio suficientes para receber a visita de várias autoridades internacionais, entre as quais o Czar da Rússia Pedro, o Grande (a quem presenteou com uma lente de aumento e demonstrou a circulação sanguínea de uma enguia), o filósofo e matemático Gottfried Leibniz, os príncipes de Orange e a Rainha Ana do Reino Unido. A esses visitantes curiosos, Leeuwenhoek mostrava apenas suas lentes de mais baixa qualidade, mas suficiente para impressioná-los. Como bom comerciante, temia que sua técnica para a fabricação de lentes pequenas, que era incrivelmente simples (ele derretia finíssimos tubos de vidro em pequenas gotas que apenas esperava se solidificarem, ao invés de polir peças maiores até ficarem pequenas o suficiente e com o formato e curvatura ideais), fosse descoberta por observadores mais sagazes. Poucos dos seus aparelhos óticos sobreviveram aos dias atuais. Estima-se pela qualidade das suas ilustrações que seus melhores microscópios podiam produzir imagens aumentadas 500 vezes com apenas uma lente. Os microscópios óticos atuais possuem pelo menos um par de lentes, tipicamente dois pares, chegando a aumentos de até 1000 vezes, embora o aumento de um microscópio comum ou um estereoscópico, com um par de lentes, normalmente chegue a apenas de 50 a 100 vezes, suficiente para ver com algum detalhe o corpo de uma pulga, o formato geral de grãos de pólen, ou o movimento de alguns protozoários maiores.

As descobertas de Leeuwenhoek abriram um leque grande de novos conhecimentos a serem explorados que tem impacto no conhecimento produzido mesmo neste exato momento - das inovações técnicas na confecção de lentes cada vez mais precisas e nítidas, ao advento dos microscópios eletrônicos atuais capazes de detectar com nitidez ultraestruturas em nível molecular, à evolução do conhecimento das interações entre microrganismos e vírus (descobertos no final do século XIX e "invisíveis" até meados do século XX) e o corpo humano, a identificação de agentes infecciosos e comensais, o desenvolvimento de vacinas, antibióticos, sintetização e transformação de substâncias com atividades biológicas diversas direcionadas a funções e tratamentos específicos, seu subsequente uso na genética, na agricultura, na fermentação, na produção de vitaminas, na remediação ecológica. A inclusão de um mundo invisível ao olho nu ao universo do pensamento humano proporcionou uma nova noção de escala O universo microscópico, antes desconhecido, deu à humanidade os subsídios para os avanços meteóricos da medicina, da anatomia e da microbiologia nos séculos seguintes.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Terra arrasada

Em 16 de setembro de 1812 Moscou ardia em chamas, num incêndio que destruiria 80% da cidade, mas que, de certa forma, salvaria toda a Rússia das garras de Napoleão.

A invasão da Rússia, iniciada em junho daquele ano, tinha um objetivo bem específico: Napoleão pretendia pressionar o Czar Alexandre I a desistir do comércio com a Inglaterra, estrangulando a economia do seu principal rival. A França já estava desde 1806 apertando o cinto dos ingleses com o Bloqueio Continental, onde as nações europeias se viam compelidas a não negociar com ingleses, sob ameaça de intervenção militar. Era assim que Napoleão via a possibilidade de arruinar a Inglaterra, uma nação insular e militarmente poderosa, praticamente impossível de ser tomada por uma invasão pelo mar naquele momento. Não obstante, a Rússia continuava a realizar comércio regular com a Inglaterra.

Em 1809, Napoleão tinha o governo efetivo da França, da Bélgica e de 1/4 da Itália (onde foi coroado cerimonialmente com a Coroa de Ferro da Lombardia), e mantinha sob controle, ou pela indicação de parentes seus como governantes, ou por alianças firmadas por interesse ou sob ameaça, quase toda a Europa Ocidental e Central, com exceção de Portugal (cuja aliança com a Inglaterra, especificamente, existe até hoje, e é a aliança entre dois países mais antiga ainda em vigência) e dos reinos independentes da Sicília e da Sardenha. Fora do seu alcance estavam os Bálcãs, sob domínio otomano, e a Rússia. A guerra contra a Inglaterra pela supremacia econômica do continente se espalhou para as colônias na África e na América.

Na Europa, a série de conquistas iniciada em 1803 só viu resistência na desgastante Guerra Peninsular, travada na Espanha apoiada pela Inglaterra e reforçada por portugueses, que resultou numa vitória custosa para Napoleão. Seus aliados já não eram tão leais, e sua popularidade na França vinha em queda, e mesmo com o continente quase todo sob controle, seu inimigo direto continuava a prosperar graças às colônias na América, na Ásia e na África subsaariana. De fato, a Inglaterra só sentiria um impacto significativo na sua economia com o fim das relações com os Estados Unidos na Guerra de 1812.

O Embargo Continental não estava se mostrando eficiente. E em alguns lugares, como na Holanda e em algumas cidades portuárias na própria França, a ausência de agentes comerciais britânicos esfriaram a economia (a crise holandesa foi particularmente forte, e o país só se manteve sob controle porque Napoleão nomeara seu irmão Luis Bonaparte como rei). A indústria têxtil da Bélgica prosperou como nunca sem a concorrência inglesa, mas como os produtos ingleses eram produzidos a custos menores, o consumidor comum na Europa continental sentiu o aumento dos preços. A França não tinha condições práticas para impedir o tráfego de navios ingleses na maioria dos portos, impedir o contrabando no continente, nem de promover um bloqueio efetivo no Atlântico. Mesmo Portugal, que se colocou fora do alcance francês transferindo toda a sua administração imperial para o Brasil (e que a França não conseguiu abocanhar com a Guerra Peninsular), continuou a ser um parceiro comercial dos ingleses na Europa sem grandes impedimentos. A ineficiência do Bloqueio ficou clara quando Napoleão abriu alguns portos ao comércio limitado com os britânicos em 1810.

Enquanto isso, a Rússia formalmente cooperava com Napoleão. As repetidas vitórias de Napoleão sobre a Áustria e a Prússia, em operação conjunta com os russos, persuadiram Alexandre I a se retirar da guerra em 1807. Era uma das forças políticas que pressionavam a Dinamarca (declarada neutra no primeiro momento das Guerras Napoleônicas) a ceder sua numerosa marinha para a França, e sua captura pelos ingleses levou os russos a irem à guerra contra seu antigo aliado. Em 1808, invadiu a Finlândia, na época pertencente à Suécia que se recusava a aderir ao Bloqueio Continental. Como o Bloqueio também não se revelou tão vantajoso para a Rússia, os russos começaram a fura-lo, aproveitando-se da rota marítima pelo Báltico assegurada pela captura, pelos britânicos, da marinha dinamarquesa. Em 1810, a Inglaterra tinha uma relação comercial bastante saudável com os russos, mesmo com o estado de guerra entre os dois países.

Existe uma linha bastante explorada que supõe que a saúde de Napoleão, naquela altura, já estava se deteriorando. Obeso e propenso a atitudes extravagantes, é possível que a sua saúde mental também estivesse em declínio, e isso poderia estar afetando as suas decisões. Ao saber que os russos não estavam respeitando o Bloqueio Continental, as relações entre Napoleão e Alexandre começaram a se deteriorar. Um dos pontos de conflito que ganharam mais ênfase na disputa diplomática que se seguiu foi a posse da Polônia, que ambos queriam como um Estado-satélite sob sua tutela (a França havia "libertado" a Polônia em 1807, então repartida entre Rússia, Prússia e Áustria, e se achava no direito de ditar a sua política). De fato, a Rússia assumiu uma postura agressiva, preparando uma invasão à Polônia depois de 1811. Napoleão reagiu com a invasão à Rússia, uma opção que a História mostrou fatal para a sua carreira, e à de outros aspirantes a conquistadores do continente.

Napoleão reuniu mais de 680 mil soldados do exército francês, reforçado por contingentes de todas as partes do seu império e aliados da ocasião, além de insuflar os poloneses com algum sentimento nacionalista, anunciando que a guerra viria novamente para sua terra, mas que, com sua ajuda, os franceses a levariam para os "agressores" russos. Da Espanha até a Polônia, Napoleão contava com uma infraestrutura de transporte e abastecimento que permitia o rápido deslocamento de um número enorme de soldados, equipamentos e suprimentos para o front. Ele esperava uma guerra de atrito a partir da fronteira ao longo do rio Niemen (que atravessou em Junho após uma última oferta de paz rechaçada pelos russos), e seus generais e suas tropas, veteranos de mais de uma década de guerras ininterruptas, estavam bem preparados para isso. Os russos, contudo, tinham seus próprios planos.

Tendo enfrentado o exército de Napoleão em batalha no passado, os russos entendiam a sua superioridade, e a vastidão do seu território tornava a sua defesa extremamente complicada. Num cenário como este, o agressor daria as cartas, e restaria aos russos tentar contra-atacar onde o inimigo pudesse ser achado, torcendo para que este, um passo à frente, não tenha tomado alguma posição estrategicamente crucial. A outra alternativa foi recuar. Recuar e devastar tudo atrás de si, para impedir que o inimigo se apossasse efetivamente do seu território. Isso havia sido feito com relativo sucesso por Vlad Tepes, contra uma invasão otomana na Transilvânia, e com notável êxito pelos portugueses na Guerra Peninsular.

Russos e franceses, nas primeiras semanas, se encontraram em batalha esporadicamente. Como não oferecessem muita resistência, os franceses avançavam rapidamente. Avançar muito rápido com um exército numeroso significa alongar demais as linhas de suprimentos, e atrasar o seu abastecimento. Em agosto, os russos encontraram um exército de 200 mil comandado por Napoleão em pessoa em Smolensk. Apesar de perdas equivalentes em ambos os lados, os russos bateram em retirada. Naquela altura, as tropas de Napoleão já racionavam comida e munição. Ao cruzar o Dnieper, os marechais russos ordenaram a destruição de tudo que pudesse servir ao inimigo: plantações e gado, florestas onde se pudesse obter madeira, casas ou qualquer lugar que pudesse servir de abrigo. A população era conduzida o mais rapidamente possível para o interior, e tudo que não pudesse ser carregado deveria ser destruído para não servir ao inimigo. A fortaleza de Smolensk, capturada pelos franceses, não lhes oferecia nada útil.

Os russos prosseguiram recuando e queimando tudo pelo caminho. A tática de terra arrasada pareceu aos franceses um caminho aberto e sem resistência ao coração da Rússia, e eles avançaram muito rapidamente. Napoleão em pessoa já havia tomado Vilnius, na Lituânia, nos primeiros dias de guerra, comprometendo o acesso da Rússia ao litoral báltico, e estava confiante de que sua marcha em direção a Moscou levaria a Rússia ao colapso. No entanto, como os franceses, na prática, não capturavam nada das terras por onde passavam, logo ficou evidente que, se não vencessem rapidamente a guerra, teriam que dar a meia volta, ou morrer de fome.

Logo em setembro os franceses alcançaram os arredores de Moscou. Uma batalha no dia 8 manteve os franceses estacionados na planície, dando tempo ao prefeito da cidade, seguindo orientações superiores, coordenar a sua evacuação. Aparentemente, foi ele quem planejou o incêndio: suas ordens eram de que tudo deveria ser incendiado, inclusive as igrejas. Quando os franceses entraram em Moscou, no dia 14, encontraram a cidade quase deserta e ardendo em chamas, ocupada apenas por estrangeiros residentes, servos, criminosos (as prisões foram deliberadamente abertas) e pessoas incapazes de fugir. No dia 15, Napoleão entrou no Kremlin, esperando que o ato simbólico de tomar controle da capital induzisse Alexandre a se render. De fato, como os russos abandonaram a cidade, as formalidades de guerra que os generais esperavam no ato de conquista de uma cidade importante - serem recebidos por representantes do governo local, que se encarregariam de abrigar e alimentar os soldados - não aconteceram, deixando Napoleão bastante desorientado. No dia 16, como o fogo se aproximasse do palácio, o Imperador foi removido às pressas para outro, na periferia da cidade, correndo temerariamente pela rua Arbat, que ardia dos dois lados. Em outubro, com suprimentos perigosamente escassos, sem sinal de que Alexandre se renderia nem da presença do exército russo, os franceses deixaram a cidade, planejando chegar à Polônia o mais rápido possível, antes do inverno.

Os russos haviam se retirado para o sul. Recebendo notícias de que Napoleão começara a se mover, os russos organizaram seus ataques a partir do sul, de maneira a orientar a marcha francesa pelo mesmo caminho até Smolensk, passando por centenas de quilômetros de terra arrasada novamente. Cavaleiros cossacos atacavam com rapidez quebrando a linha de marcha e dispersando unidades do corpo principal do exército. Os cavalos franceses, sem pasto, começaram a morrer de fome, e os que ainda resistiam eram mortos para alimentar os soldados, efetivamente dissolvendo o seu corpo de cavalaria. As carroças puxadas pelos animais, com armas, equipamentos, e peças de reposição, foram abandonadas. O frio crescente matava milhares, pois os franceses partiram em campanha em trajes de verão (os russos consideraram aquele inverno relativamente "ameno"). Tropas russas continuaram fustigando os franceses até a Batalha de Berezina, na Bielorrússia, onde eles os encurralaram na travessia do rio Berezina. Napoleão escapou com apenas metade do seu contingente (sua sorte foi o General Eblé ter desobedecido as ordens do Imperador de deixar para trás material para a construção de pontes). Em dezembro, apenas 22 mil soldados do exército napoleônico cruzaram de volta a fronteira com a Polônia. A perda de vidas durante a campanha a coloca entre as mais letais da História.

Napoleão retornou rapidamente à França após notícias de um golpe de Estado fracassado em novembro. O fiasco da invasão russa estremeceu sua reputação e a rede de alianças que mantinha o seu Império coeso. A Confederação do Reno, a Prússia, a Áustria e a Rússia renovaram a aliança com a Inglaterra e iniciaram uma contra-ofensiva que levaria à capitulação de Napoleão em 1815. A queda de Napoleão, e os subsequentes movimentos nacionalistas na Europa Central deram espaço à unificação da Alemanha e da Itália, e o estabelecimento das fronteiras e de um novo balanço de forças na Europa Ocidental. A Rússia (que reverencia a invasão napoleônica com o título de "Guerra Patriótica de 1812") repetiria a tática de terra arrasada quando Adolph Hitler ordenou a sua invasão em 1941. Hitler, para evitar a manobra defensiva que possibilitou aos russos encurralarem Napoleão na rota arruinada de Smolensk, ordenou a invasão em várias frentes da Ucrância até o Ártico, com o centro em direção a Moscou. A resistência russa durou o suficiente até o inverno, e os alemães perderam mais de 4 milhões de soldados até a sua total retirada, mudando, assim como aconteceu com Napoleão, o rumo da História.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Serial killer

Em 15 de setembro de 1440, o Barão de Rais, Gilles de Montmorency-Laval, foi preso sob a acusação heresia e por ter cometido vários assassinatos. Foi o início do processo que levou uma das primeiras condenações conhecidas de um assassino em série.

Gilles de Rais veio de família nobre do oeste da França, e conquistou renome aos 16 anos, ao ajudar na fuga do duque João VI da prisão na Bretanha por seus rivais da família Blois. Com isso, obteve a honra de participar da cerimônia de coroação do rei Carlos VII da França, ganhou o direito de usar a flor-de-lis dourada sobre azul (as cores do rei da França) em volta do brasão da sua família e foi nomeado marechal.

Gilles viveu no contexto da Guerra dos Cem Anos. Nesse contexto, ele viria a conhecer Joana D'Arc, uma jovem camponesa cuja liderança entusiasmada e a alegação de inspiração divina a elevou ao status de uma das principais comandantes do exército francês nos estágios finais da guerra e uma figura de enorme apelo popular. Aparentemente, Joana escolheu Gilles como um de seus companheiros mais próximos, com a permissão do rei, antes de lhe ser concedido o marechalato. Ao lado de Joana, ele foi reconhecido por ter enfrentado "grandes perigos" e realizados inúmeros "atos de bravura".

Joana estava sob sua proteção nominal quando, em 1430, ela foi capturada por tropas burgúndias, aliados dos ingleses na França. Os ingleses pagaram 10 mil libras para transferi-la à sua custódia. Os franceses não fizeram muitos esforços para reavê-la. Gilles, que era um homem rico, tampouco (seu avô, em sinal de desaprovação a Gilles por dispender grandes fortunas em futilidades, passou para seu neto mais novo René sua armadura e sua espada). Quando ela foi condenada à fogueira e queimada em público, em Rouen, ele não estava presente. Na época, Gilles estava escrevendo O Mistério do Sítio a Orléans, peça grandiosa em que ele narrava em tintas religiosas a participação decisiva de Joana na batalha. Talvez a sua morte promovesse a sua peça mais do que qualquer coisa - Gilles vendeu quase todas as suas propriedades para promover a peça.

Seus parentes começaram a ficar alarmados com os gastos de Gilles, que incluía, além da peça (encenada por 650 pessoas que usavam roupas confeccionadas especialmente para cada apresentação e depois descartadas, com comida e bebida oferecidas sem restrição aos espectadores) a construção de uma capela. Eles conseguiram que Carlos VII publicasse um edito proibindo que Gilles vendesse mais propriedades da família, o que o levou a emprestar somas fabulosas de dinheiro para manter seu estilo de vida.

Entre o fim de sua aliança com Joana D'Arc, em 1431, e 1440, a vida de Gilles de Rais é recontada a partir das suas confissões no processo que levou à sua condenação. Aparentemente, Gilles começou a se interessar por garotos por volta de 1432. Ele os seduzia com demonstrações de riqueza ou oferecendo-lhes comida, os levava a algum local de sua propriedade (como seu castelo em Champtocé-sur-Loire). Com a ajuda de cúmplices, os vestia com as melhores roupas, os embebedava e os sedava. Então, eles eram levados a um quarto, onde Gilles e seus companheiros os prendiam, os violentavam, torturavam e matavam. Durante a agonia, o barão podia se sentar sobre a barriga da vítima e rir enquanto ela morria, ou violentava-a mais uma vez. Uma vez mortas, eram esquartejadas ou dissecadas, a visão de suas vísceras expostas produzindo em Gilles um prazer comparável ao do sexo, e seus corpos enfim queimados numa lareira e enterrados. Ele teria sequestrado, violentado e matado "um grande" número de crianças, meninos e meninas. De Rais foi acusado também de alquimia e conjurar o demônio, segundo testemunhado por um padre que teria tomado parte na obtenção de "livros mágicos" de um clérigo florentino. Ele teria tentado entrar em contato com um demônio chamado Barron após a oferenda de partes do corpo de uma criança, sem sucesso.

Se era tudo verdade, ou apenas a confissão obtida sob coerção (Gilles confessou espontaneamente, evitando a inquisição sob tortura que faria parte do processo), é questão de debate. A virtual falência de Gilles, além de irritar seus credores, fez cessar os seus generosos favores à Igreja francesa. Em maio de 1440, uma desavença com a paróquia de Saint-Étienne-de-Mer-Morte o levou a manter sob custódia um clérigo local. O Bispo de Nantes então conduziu a investigação sobre sua vida, que levou ao processo, sob a bênção do Duque da Bretanha (o mesmo João VI que Gilles ajudara a fugir), que tinha interesse em repartir as propriedades de Gilles na Bretanha entre seus próprios vassalos, o que ele de fato fez. Os inquisidores também eram todos religiosos. A prisão ocorreu no dia 15 de setembro, e a confissão em 21 de outubro. No período, vários aldeões levavam novas acusação de rapto e morte de seus filhos por Gilles de Rais, sem provas. No final de outubro, Gilles e dois colaboradores foram condenados à morte por enforcamento e subsequente imolação. Seu corpo foi retirado da fogueira antes de ser consumido, e enterrado em Nantes. O tal padre Blanche, que testemunhou a favor da acusação de heresia, não foi processado como cúmplice. Um julgamento simulado em 1992, com participação de políticos, maçons e experts em direitos humanos, reexaminando os autos do processo, consideraram Gilles de Rais inocente, uma vez que, apesar da confissão e dos testemunhos muito detalhados, não foram reunidas quaisquer provas materiais dos crimes imputados - nem dos "livros mágicos", nem quaisquer vestígios dos corpos das crianças que ele confessara ter matado e enterrado. Sob a lei moderna de muitos países ocidentais, a confissão espontânea de um crime é considerada nula se não forem apresentadas provas materiais.

De qualquer forma, foi uma das primeiras vezes na História em que foi levado a cabo um processo penal resultando em condenação formal de um assassino em série. Embora houvessem outros assassinos em série notórios no passado - os milhares de empalamentos de Vlad Tepes, por exemplo, ocorridos menos de duas décadas depois - eles não foram julgados como tais, dentro de seus contextos históricos: eram atos de guerra, ou estavam licenciados pela lei vigente. Ou então, sob suspeita, eram perseguidos e mortos antes de serem levados a julgamento (não raro, eram confundidos com vampiros, lobisomens, ou bruxos que se alimentavam de carne humana ou a usavam em rituais demoníacos). No máximo, os assassinatos em série promovidos por nobres eram encarados como decorrências de caprichos, e resultavam em banimentos e na perda de títulos (como ocorreu com um príncipe chinês no século II a.C. que "caçava" seus próprios escravos). A partir do caso de Gilles de Rais, o processo penal na Europa passou a tratar do assassinato em série com mais objetividade. Uma das principais de estudos logo nos primeiros anos da psicanálise foi a tentativa de compreender a mente dos assassinos em série.

A fama de Gilles de Rais como um assassino de crianças e um bruxo perpassou o seu tempo - alguns praticantes de ocultismo contemporâneos acreditam que sua mãe era uma fada, que ele era um devoto da deusa lunar Diana ou praticante de uma "nova religião" da qual presidia um conciliábulo de bruxos, e que isso teria levado à desavença com a Igreja Católica. Na cultura popular, os personagens inspirados em Gilles são frequentemente antagonistas, assassinos, bruxos ou demônios. No anime Fate/Zero, ele é um espírito maligno evocado em tempos modernos, que obtém prazer na matança desenfreada de mulheres e crianças, enquanto busca reencontrar obsessivamente sua "amada" Joana D'Arc.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Águias perdidas na floresta de Teutoburgo

Em 9 de setembro do ano 9 d.C., três legiões romanas foram aniquiladas por uma coalizão de tribos germânicas na Batalha de Teutoburgo.

Nos seus últimos anos, a República Romana avançou suas fronteiras sobre a Gália, atual França, estabelecendo uma nova linha de fronteira ao longo do rio Reno. A Gália havia muito era habitada por povos celtas, que viviam assentados em vilas e aldeias e cultivavam a terra, de maneira que aquele novo território se tornou prontamente uma valiosa aquisição para a economia romana, ao mesmo tempo em que o modo de vida romano não pareceria tão estranho aos povos nativos, que continuariam vivendo e produzindo mais ou menos como já vinham fazendo. A conquista da Gália rendeu ao seu comandante, Júlio César, prestígio suficiente para se tornar a figura mais influente de todo aquele império "republicano", desencadeando uma série de eventos que levaria à transformação de Roma em um império de fato, sob seu herdeiro Otaviano Augusto.

A nova fronteira se mostrou bastante prática. Era possível navegar em vias fluviais do Mediterrâneo até a foz do Reno, na Holanda, com curtas passagens por terra, evitando a longa e perigosa volta pelo Atlântico. Além disso, como a Gália já possuía uma infraestrutura de abastecimento de homens e víveres, as fortalezas fronteiriças poderiam ser sustentadas sem grandes dispêndios. A nascente do Reno, nos Alpes, fica a poucos quilômetros de terreno montanhoso da nascente do rio Danúbio, que os romanos também controlavam em todo o seu curso. A linha Reno-Danúbio era tão eficaz que sustentou a fronteira do império na Europa, a despeito de todos os seus problemas e crises internas, até meados do século V. Quando consolidada a conquista da Gália, os romanos dividiram as terras ao longo do Reno em duas províncias, a Germania Superior e a Germania Inferior.

O nome Germania derivava da designação genérica que os romanos davam aos povos que habitavam o norte da Europa. De fato, foi o próprio Júlio César quem primeiro reportou os povos "bárbaros" das florestas do norte como "germanos", mais especificamente Germani Cisrhenani ("germanos d'além Reno"). Além do Reno, várias tribos de uma mesma família linguística, que hoje conhecemos como germânica, vinham migrando do norte, da Escandinávia e do norte da Alemanha e da Polônia desde pelo menos o século VIII a.C., deslocando os povos célticos que ali habitavam em direção à Gália ou à Grã-Bretanha. Foi esse movimento migratório de tribos germânicas em direção ao sul e à Gália (a Bélgica já era ocupada por tribos germânicas) que motivou a campanha de César. Esses povos migrantes ainda estavam completando o período formativo de sua própria civilização, habitando aldeias esparsas e praticando a agricultura e pastoreio rústicos em torno de suas vilas, deixando a maior parte das florestas intocadas. A visão de um observador romano olhando para o leste da nova fronteira, na Bélgica, seria de uma região assombrosamente selvagem e primitiva, e seus habitantes igualmente selvagens. Essa região inóspita para o estilo de vida romano ficou conhecida como Germania Magna.

César advogava que os germanos, a contrário dos celtas, eram violentos e incivilizados, representavam um perigo para os romanos, e por isso precisavam ser conquistados. Durante o governo de Otaviano, Roma fortificou sua fronteira ao longo do Reno. Apesar de todas as vantagens, Otaviano via com bons olhos o avanço da fronteira sobre a porção de terras cobertas por florestas da Germania Magna até o rio Elba, que corta o centro da atual Alemanha, reduzindo significativamente a extensão de fronteira a ser defendida, e absorvendo um grande contingente de germanos para o seu império. Na virada do milênio, uma confederação de tribos germânicas mais próximas à fronteira romana, "march men", "homens da fronteira", ou marcomanos, vinham fustigando as posições romanas na Germania Superior. Essa força súbita dos marcomanos se devia ao movimento causado pela campanha bem sucedida de Nero Cláudio Druso (pai do futuro imperador Cláudio) em 9 a.C., e outra liderada por Tibério (outro futuro imperador), chegando a atravessar o rio Wesser, que atravessa a atual cidade de Bremen (cuja foz está a cerca de 50 km da foz do Elba), que levou esses marcomanos a entrar em território ocupado por outras tribos e estabelecer alianças. O rei eleito entre eles, Maroboduo, ainda teve que suportar uma campanha ainda maior, com mais de 80 mil soldados romanos Germania adentro, no ano 6 d.C.. Ele conseguiu se sustentar porque Tibério teve que recuar para atender a uma rebelião na Ilíria.

Com os marcomanos acuados, Otaviano lançou mão de Públio Quntículo Varo, administrador experiente e impiedoso, para consolidar a ocupação romana na Germania, onde já contavam com pelo menos dois fortes. A seu serviço, apenas três legiões, a XVII, a XVIII e a XIX (as três legiões com experiência contra os germanos na campanha anterior), enquanto outras estavam mobilizadas na Ilíria. Foi neste momento em que Armínio entrou em cena.

A campanha de Druso trouxe para Roma como refém Armínio, jovem de família nobre da tribo germânica dos queruscos. Armínio foi educado e treinado nas artes militares, chegando a conseguir cidadania romana e uma posição na classe dos equites ("cavaleiros", geralmente funcionários públicos, donos de negócios, algo que se poderia comparar com uma classe burguesa). Sua posição e nascimento lhe garantiam influência sobre outros germanos dentro do império, e assim ele liderou um destacamento de queruscos a serviço dos romanos durante a conquista da Panonia (atual Hungria). No ano 7 d.C., ele retornou à Germania além do Reno, conquistando a lealdade das tribos recém subjugadas por Roma, tribos anteriormente inimigas entre si, ganhando a confiança de Públio Varo. Mas logo ele começou a conspirar contra os romanos.

Em 9 d.C., Armínio procurou Varo para denunciar uma rebelião no norte da Germania. Com a orientação de Armínio, Varo conduziu suas três legiões em direção à foz do Wesser, em terreno desconhecido. Em um certo momento, o chefe germânico deixou o destacamento sob pretexto de arregimentar as tribos locais para dar suporte à expedição. Mas assim que saiu das vistas de Varo, Armínio começou a comandar uma série de ataques às guarnições romanas deixadas para trás, cortando comunicações e linhas de suprimentos. Os romanos não marchavam em formação de combate, e enfrentavam um temporal, com terreno encharcado e estreito, estendendo a linha de marcha em talvez 20 quilômetros. Varo não mandara nenhum batedor à frente confiando nas direções de Armínio. Em 7 de setembro, na floresta de Teutoburgo, perto de Onasbrück, os germanos comandados por Armínio saíram em torrentes das florestas ao redor para combater o exército desorganizado. A reação de Varo e seus comandantes foi imediata, mas o conhecimento militar de Armínio foi decisivo, direcionando seus homens para responder às manobras defensivas romanas, concentrando-os em pontos específicos da linha inimiga onde pudesse impor alguma superioridade numérica.

Os romanos sustentaram o ataque até a noite, quando montaram um acampamento fortificado perto da atual Ostercappeln, de onde tentaram uma retirada organizada na manhã seguinte. Muitos dos que tentaram deixar o acampamento, contudo, foram abatidos pelos germanos que inundavam as florestas ao redor. Os que escaparam deveram sua sorte à chuva, que inutilizava as cordas dos arcos e encharcava os escudos dos agressores posicionados para impedir sua fuga. Na noite seguinte, os romanos arriscaram uma marcha pela passagem estreita entre a floresta e a colina de Kalkriese, em Onnasbrück. Ali, os germanos cavaram uma trincheira bloqueando o caminho, e na margem da floresta levantaram uma barreira de terra. Na manhã de 9 de setembro, os romanos foram emboscados e aniquilados. Os que não tombaram pelas espadas e dardos germânicos, suicidaram-se à maneira considerada digna pelos militares romanos, atirando-se sobre suas próprias espadas para evitar serem capturados. Cerca de 20 mil dos 30 mil legionários romanos foram mortos. Armínio enviou a cabeça de Varo a Maroboduo, que àquela altura estava atacando o Danúbio. As águias de bronze, que vinham sobre os estandartes de cada legião, se tornaram tesouros para os germanos.

A derrota de Varo foi recebida com assombro em Roma. A Germania Magna foi abandonada, e as guarnições de fronteira voltaram a reforçar as defesas ao longo do Reno. Ela significou o fim da expansão romana no norte da Europa continental, embora os romanos, eventualmente, enviassem expedições punitivas contra germanos quando estes atacavam a fronteira. A mais importante dessas expedições, liderada por um filho de Druso, Germânico, já sob o governo de seu tio Tibério, resgatou duas das três águias imperiais em poder de Armínio, o que fez de Germânico um herói em Roma e arruinou o poder de Armínio entre seus aliados. Uma campanha em 41 d.C. recuperou a terceira águia, e uma última nove anos depois derrotou um bando da tribo dos catos na outra margem do Reno e resgatou alguns prisioneiros romanos das legiões de Varo, mantidos em cativeiro havia 40 anos. Apesar das campanhas punitivas bem sucedidas - a campanha de Germânico arrasou as tribos locais durante dois anos - os romanos nunca mais tentaram povoar a região. É possível que, com o tempo, a ideia de avançar a fronteira até o Elba tenha sido vista com mais reservas, devido às dificuldades logísticas - as rotas de abastecimento teriam que ser feitas por terra, ou por navegação oceânica. A numeração das três legiões perdidas nunca mais foi utilizada.

A derrota em Teutoburgo poderia ter sido mais trágica para Roma se não fosse uma rivalidade repentina surgida entre Armínio e Maroboduo - o rei marcomano, ao receber a cabeça de Varo com uma proposta de aliança, recusou-a e a enviou de volta a Otaviano em sinal de respeito, e quando Germânico marchou contra o querusco, Maroboduo se manteve neutro. A união entre os dois chefes germânicos, atacando simultaneamente em dois pontos da fronteira, poderia ter comprometido o domínio romano no Danúbio e na própria Gália. Ao invés disso, eles entraram em guerra em 17 d.C.. Uma manobra romana devolveu aos marcomanos um nobre local sob sua tutela, e Maroboduo fugiu para a Itália, onde morreu após 18 anos na prisão. Armínio morreu em 21 d.C., assassinado por rivais queruscos.

A Germania Magna, da qual os romanos abriram mão após Teutoburgo, continuou a ser o caldeirão onde as tribos germânicas se desenvolviam e se moviam, e apoiavam seus eventuais ataques às fronteiras. Um surto de movimentos migratórios em cadeia, originados pela migração dos hunos vindos do norte do Mar Negro no século IV, empurraria as tribos germânicas furiosamente contra as fronteiras do império até que elas não resistissem mais. Sob essa perspectiva, Teutoburgo poderia representar a primeira grande derrota do Império Romano, uma com consequências fatais a longo prazo. Os povos germânicos que furaram o bloqueio e estabeleceram-se em território romano, e os que permaneceram no centro e no norte da Europa, contribuíram para a formação étnico-linguística e a reorganização política e social do continente (e do mundo afora) até os dias de hoje.