segunda-feira, 15 de junho de 2015

A Carta Magna

Em 15 de junho de 1215, há exatos 800 anos, o rei João da Inglaterra selou a Carta Magna, tornado oficial o corpo básico de leis que regularia o poder real, a legislação inglesa e suas relações institucionais pelos séculos seguintes.

Governar um país na Europa no início da Idade Média, sem a assistência de um sistema judicial baseado em leis uniformes e estáveis e jurisprudência, era uma faca de dois gumes. Por um lado, dava ao rei o direito de governar seu país conforme aprouvesse a si e a seus aliados da nobreza e do clero. Por outro lado, o rei precisava constantemente decidir (ou delegar juízes para fazê-lo sob seu próprio julgamento) sobre disputas pessoais, sobre propriedade, definir leis para casos específicos que nunca se repetiriam, ou reinterpretar leis antigas feitas para outros contextos históricos e sociais. Ou ele podia simplesmente deixar isso nas mãos de burocratas e ir caçar. Contudo, embora seu cargo tivesse legitimidade na bênção papal, a força do monarca e a estabilidade da sua posição dependiam da sua eficiência e equilíbrio como gestor, pois se negligenciasse os anseios da plebe, causaria revoltas populares; se resolvesse tomar medidas muito populares, perderia o suporte dos nobres; se fosse contra a Igreja, provavelmente perderia o apoio de ambos. Pois o seu próprio direito ao trono era uma questão de acordos de cavalheiros entre as forças dominantes. O poder, na teoria, estava todo nas mãos dos reis, mas a insegurança jurídica fragilizava enormemente todo o aparelho estatal e o próprio tecido social. Com o tempo, o Direito Romano, em pleno vigor no Império Bizantino e sobrevivendo em parte na forma de sistemas legais germânicos, foi sendo redescoberto e estudado no ocidente, levando ao desenvolvimento do sistema legal no mundo feudal de França, Inglaterra e Alemanha.

O que sucedeu com João foi mais ou menos decorrente do desequilíbrio e falta de clareza de limites entre poderes. João havia perdido grande parte dos territórios ingleses no oeste da atual França para o rei francês Filipe II (por causa disso, João ficou conhecido como "João Sem Terras"). Em parte, as sucessivas derrotas foram facilitadas pelos seus próprios aliados franceses, que reclamavam de taxações excessivas das suas propriedades em troca de proteção real e viam em João pouca boa vontade para com suas demandas particulares. As campanhas para retomar suas terras foram viabilizadas pelo aumento de impostos sobre propriedades. Mas seu fracasso - e os custos adicionais em tributos e compensações - fez com que os barões ingleses também se levantassem contra si.

Revoltas baronais não eram novidade na Inglaterra. Desde que Guilherme, o Conquistador tomou a coroa, todos os reis ingleses tiveram sua legitimidade questionada. O caso de João é que todos os seus irmãos estavam mortos (João era o mais jovem, assumindo depois que seu irmão Ricardo morreu a caminho de Jerusalém), e seus filhos muito jovens para liderarem uma revolta, então os barões tiveram que encarar a realidade de ter que fazer um acordo com o rei.

Para apaziguar os senhores de terras, João convocou um concelho em Londres e em Oxford para discutir reformas e tentar chegar a um acordo. Os rebeldes se apresentaram armados e desconfiados, trazendo consigo seus próprios soldados. João, por sua vez, contratou mercenários na França, mas hesitou em exibí-los para demonstrar força com medo de suscitar uma guerra civil na qual teria muito pouco apoio. Como os rebeldes recusassem a mediação do Papa (solicitada por João, e que não lhes seria vantajosa), o Arcebispo de Canterbury, Stephen Langton, assumiu a liderança das negociações, porém trabalhando junto a eles para a elaboração de demandas que fossem mutuamente interessantes.

Em 10 de junho, os rebeldes apresentaram o seu documento. Ele previa a proteção dos direitos da Igreja, providências contra prisões arbitrárias, acesso à justiça, e limitações às taxações e pagamentos dos senhores de terras à coroa. Versava sobre os direitos dos homens livres (basicamente, os próprios senhores de terras, excluindo servos e trabalhadores presos em semelhança à escravidão aos seus senhores por força de dívidas). Para colocar o poder real em cheque, foi proposta a criação de um concelho de 25 barões para monitorar a conformidade dos atos reais à lei. Em caso de transgressão, as propriedades reais seriam confiscadas até que seus erros fossem reparados.

O Papa Inocêncio III, por fim, respondeu aos apelos de João, excomungando os barões rebeldes e declarando-os pior do que os sarracenos, pois João declarara-se um cruzado, enfatizando sua posição de vassalo do Papa, dois anos antes. Mas já era tarde. No dia 15, João pressionou seu selo real sobre a Carta Magna, oficializando seu consentimento às demandas rebeldes.

O resultado imediato não foi bem o que as partes em contenda esperavam. Nem João nem os barões, cujo concelho de 25 racharia em questão de dias, se esforçaram em implementar as reformas. Uma das cláusulas inseridas no documento como parte do acordo de paz seria que os nobres deixassem Londres com seus soldados, o que eles se recusaram a fazer. Eles alegavam que o apelo de João ao Papa era uma transgressão, pois a cláusula 61 especificava que o rei " estava proibido de buscar algo de ninguém". Eles aproveitaram o momento para tomar o Castelo de Rochester, de propriedade do Arcebispo de Canterbury. João respondeu com seus mercenários franceses e vassalos leais, e a guerra civil eclodiu. Ela duraria cerca de um ano, sem solução clara, até a morte de João, por disenteria.

Porém, o efeito da Magna Carta se faria sentir aí. Os barões, em meio à guerra, convidaram o príncipe Luís, da França (futuro rei Luís VIII) para liderá-los e ofereceram-lhe a coroa. Mas com a morte do rei, o jovem Henrique III, de nove anos, foi coroado, e seus conselheiros compuseram uma nova versão da Carta Magna, menos conflituosa (extinguindo o concelho). Isso fez com que a aliança com o príncipe francês, que viria a ser mais um rei totalitário a quem os nobres ingleses teriam que se sujeitar no futuro, perdesse o sentido, e os fizesse voltar seu apoio a Henrique. A sua influência seria ainda mais duradoura, inspirando códigos de leis por toda Europa, e, depois, nos Estados Unidos, estruturando e regulando o Estado, dando autonomia à Igreja, e protegendo direitos civis. A Carta seria reescrita e ajustada várias vezes, e três das suas cláusulas originais estão até hoje em vigor nas leis da Inglaterra e do País de Gales.

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