segunda-feira, 5 de março de 2018

Index Librorum Proibitorum

Em 5 de março de 1616, 73 anos após sua publicação, o livro Da Revolução dos Orbes Celestes, do astrônomo Nicolau Copérnico, onde, através de cálculos e observações se conclui que a Terra e demais planetas conhecidos giravam em torno do sol (e não em torno da Terra), descrevendo estes movimentos, entrou para o Índice de Livros Proibidos (Index Librorum Proibitorum) da Igreja Católica, impedindo sua publicação onde quer que este Índice tivesse força de lei.

Desde os últimos séculos do Império Romano, a publicação e edição de livros se tornou complicada na Europa, principalmente a partir da fragmentação, não apenas política, mas cultural e linguística do Império do Ocidente. O latim permaneceu como a lingua franca em boa parte da Europa, mas o povo mesmo, de matriz germânica (e antigos plebeus romanos) tinham pouco conhecimento e acesso a educação formal na antiga língua. Isso levou à deterioração do latim clássico e sua transformação, com contribuições estrangeiras localizadas, nas línguas latinas que conhecemos hoje. Fora das fronteiras romanas tradicionais, agora integradas ao grande cenário político e econômico da Europa Medieval, o latim subsistia apenas com termos tomados emprestados para dar nomes a coisas que os germanos e eslavos não tinham em seu vocabulário.

De maneira que a publicação de novas obras e reedição de obras antigas ficou praticamente restrita aos mosteiros, onde o latim continuava a ser preservado. Era nesses redutos que o conhecimento clássico foi mantido, mas devido às limitações impostas pelas técnicas manuais, nem tudo pode ser preservado. No mundo árabe, onde a língua e o alfabeto árabes se expandiram rapidamente (estimulados pela sacralidade atribuída a eles pelo Islã), todo o processo de preservação, produção e divulgação de conhecimento foi mais favorecido, de maneira que muitos tratados científicos e filosóficos, perdidos na Europa Ocidental, eram avidamente traduzidos dos originais gregos e latinos para o árabe, e empregados no mundo árabe, proporcionando, inclusive, uma ressurgência das ciências no mundo árabe medieval que a Europa só veria com o advento da imprensa.

E foi a imprensa que mudou tudo.

Com o conhecimento preservado e divulgado pelos mosteiros, ou seja, sob controle eclesiástico, a Igreja Católica observava a adequação dos temas à sua própria teologia antes de autorizar a publicação de determinada obra. Um índice criado extra-oficialmente no século IX, o Decretum Glasianum, já proibia certas obras, como um popular Evangelho apócrifo de Barnabé que aludia aspectos dos ensinamentos e a natureza de Cristo àqueles citados no Alcorão. Este controle foi subitamente perdido quando a prensa de tipos móveis passou a possibilitar a publicação, em grande quantidade, de qualquer coisa. Incluindo traduções livres das próprias Escrituras, sem o crivo do Papa (um dos combustíveis para a Reforma Protestante). A reação foi rápida: dioceses na Holanda, em Veneza e em Paris produziram suas próprias listas de obras proibidas, e em 1559, Papa Paulo IV promulgou a primeira lista oficial de livros proibidos pela Igreja. Os critérios para a proibição envolviam a inconformidade com o conteúdo ou linguagem com as questões de fé, anticlericalismo, blasfêmia, e conteúdo explícito e imoral.

Como a imprensa agilizou a troca de informações pela Europa, entusiastas das ciências começaram a trocar informações com rapidez, produzindo um "boom" de publicações sobre filosofia e ciência, e desenvolvimento de métodos de observação e experimentação, que fatalmente levavam a resultados que divergiam da ordem vigente, não apenas a adotada a partir da Bíblia, mas das obras clássicas consideradas infalíveis, como a cartografia de Ptolomeu ou as descrições do mundo, da anatomia e da fisiologia humanas de Aristóteles. Um dos aspectos observados pela Contra-Reforma Católica foi o banimento da heresia sob qualquer forma, fosse religiosa ou científica, de modo que, no período em que a Santa Inquisição - a instituição da Igreja que vigiava as práticas religiosas e servia como tribunal e executor - recrudesceu sua vigilância, no século XVII, nomes como Hobbes, Pascal, Calvino, Descartes e Bacon foram incluídos no Índice (Giordano Bruno foi incluído, e também julgado e executado por heresia, não tanto por questionar o geocentrismo, mas por fazer alusão ao panteísmo). A tese do Sistema Solar, heliocentrista, de Copérnico foi das primeiras a ser incluídas nesta fase, bem como várias outras que se baseavam nas suas observações.

Mesmo com o furor contra-reformista já apaziguado, o Índice continuou a ser atualizado até o século XX. Uma reorganização interna colocou o comitê responsável pelo Índice sob jurisdição do reformado Santo Ofício, e em 1948 foi publicada a última versão do Índice de Livros Proibidos, citando cerca de 4 mil títulos banidos (curiosamente, a lista não incluía as obras de ateus afrontosos, como Marx e Nietzsche, ou a ainda Charles Darwin). O Santo Ofício foi reorganizado na Congregação Sagrada da Doutrina e da Fé (de cujo ex-Papa Bento XVI foi diretor) em 1966, e como parte desta organização, o Papa Paulo VI decretou que o Índice não seria mais atualizado e nem teria mais força de lei (na prática, durante a sua existência, só tinha força de lei nos Estados Papais e onde mais os governos civis achassem adequado), sendo, contudo, recomendada a sua observação, pelo fiel, para a conservação da moral católica e da estrutura da fé.

O conteúdo do Índice está cheio de obras que se tornariam pedras angulares do conhecimento científico e filosófico modernos, apesar de terem sido banidos até a sua última edição. A persistente tese do heliocentrismo levou ao banimento de Copérnico e Kepler (retirados do Índice em 1835, quando o heliocentrismo já estava universalmente aceito); já Galileu foi punido e condenado a se retratar oficialmente pelos seus Diálogos, mas sua obra só obteve autorização para publicação após passar pela censura.

Judeus, como Baruque Espinoza e Maimônides, que publicavam na Europa, eram vigiados de perto e incluídos ao menor sinal de heresia. Espinoza precisava agradecer ao Papa e a Deus em seus prefácios.

Iluministas, como John Milton, La Fontaine (cujos contos e fábulas, proibidos, são matéria prima para a construção moral das crianças ainda hoje), Voltaire (um dos recordistas com mais de 40 obras proibidas) e Defoe (que colocava o Diabo como ator da História humana) tiveram obras banidas, bem como a primeira Enciclopédia, de Diderot e d'Alembert, e mais tarde, o Grande Dicionário Universal do Século XIX, de Pierre Larrousse.

A autobiografia de Giacomo Casanova, Memórias, foi banida por conteúdo explícito, assim como todos os romances de Balzac. Simone de Beauvoir foi um dos últimos nomes incluídos no Índice (já não publicado oficialmente) em 1956, com as obras Os Mandarins e O Segundo Sexo, este último discutindo o tratamento dado às mulheres ao longo da História. O Corcunda de Norte Dame e Os Miseráveis, de Victor Hugo, romances de enorme força popular nos últimos 150 anos, figuraram no Índice até 1959.