segunda-feira, 8 de maio de 2017

Tudo se transforma

Em 8 de maio de 1794, o químico Antoine Lavoisier e mais 27 acusados foram condenados e executados em Paris por atividades anti-revolucionárias.

Lavoisier nasceu em 1743 no seio de uma família nobre, e aos 16 anos começou a estudar ferozmente vários campos das ciências naturais e da matemática. A despeito de ter se formado advogado como seu pai (embora nunca tenha exercito a função), Lavoisier seguiu assistindo aulas e palestras sobre ciências naturais, e associando-se a pesquisadores proeminentes. Evidentemente sua posição social lhe abriu muitas portas (a ponto de, aos 23 anos ser condecorado com uma medalha de ouro pelo rei Luís XV por um trabalho sobre a iluminação das ruas de Paris), mas seu talento o fez aproveitar ao máximo cada oportunidade.

A contribuição mais notável de Lavoisier para a ciência foi na compreensão do fenômeno da combustão. Ele percebeu que a combustão e calcinação (ou seja, a transformação, após a queima, de um sólido em outro sólido) de uma substância em estado puro resultava no acréscimo de peso do mesmo elemento, embora o sistema total mantivesse sua massa constante. Após realizar experimentos com diferentes elementos, e agregando trabalhos feitos por colegas britânicos, ele enfim deduziu que a combustão era o processo pelo qual uma substância reagia com outras presentes no ar, que eram agregadas à substância original durante a queima com liberação de energia. Ele ainda não conhecia a composição química da atmosfera nem o papel do oxigênio na promoção da combustão - ele deduziria mais tarde a existência do oxigênio e do hidrogênio. Suas aferições precisas de massa, e a precisão dos resultados produzidos com essa metodologia, seriam incorporadas à metodologia de todos os trabalhos em química no futuro. Lavoisier também seria um dos que defenderia o estabelecimento do sistema métrico decimal em substituição à miríade de sistemas de medidas adotadas anteriormente, além de um sistema nomenclatural para a química semelhante ao proposto por Carl Linnaeus para a biologia. Suas observações sobre as reações químicas, e a verificação de que a massa total dos reagentes é igual à massa total dos produtos, o levou a cunhar a famosa frase: "Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma".

Graças aos seus trabalhos sobre combustão, em 1775 Lavoisier foi nomeado para a Comissão da Pólvora, órgão governamental que substituiria uma empresa particular no suprimento de pólvora para a França, e sua enorme capacidade de organização de fato fez com que o suprimento e a qualidade da pólvora entregue ao governo superasse em muito o que se tinha antes, a ponto de gerar receita para o Tesouro. A Comissão lhe forneceu uma casa e um laboratório no Arsenal Real, onde viveu e trabalhou até 1792.

Lavoisier, enquanto cientista, foi um produto do Iluminismo, corrente filosófica que estimulava a investigação metódica do mundo natural e humano, confrontando visões dogmáticas (de ordem religiosa ou qualquer outra) sobre a construção do mundo e da sociedade. O Iluminismo estava impregnado no sistema educacional no qual Lavoisier se formou. Contudo, o químico nunca questionou a natureza da legitimidade do poder político e da ordem social, ou ao menos nunca percebeu a profundidade do abismo que separavam as classes sociais na França, e o que disso viria a resultar - o que lhe custaria a vida mais adiante.

Aos 26 anos, Lavoisier adquiriu parte da Ferme générale (ou "Fazenda Geral"), uma companhia a serviço do governo que estimava quanto de imposto seria arrecadado ao longo do ano, antecipando o repasse desta quantia ao governo francês, em troca do direito de executar, por conta própria, o recolhimento dos impostos da população ("Fazenda", no caso, tinha o duplo sentido de ter sua origem e principal função o recolhimento de impostos das propriedades rurais, e ser ela mesmo uma "fazenda de impostos" para o governo). Lavoisier chegou mesmo a se casar com Marie-Anne Paulze, filha de um dos membros da Ferme générale (Marie-Anne, apesar de ter apenas 13 anos quando se casou, era excepcionalmente culta, e não só auxiliava o marido no laboratório, mas produzia ilustrações, e traduzia trabalhos científicos do inglês para o francês, bem como sua correspondência, especialmente com Joseph Priestley, químico que também descobrira paralelamente o oxigênio). Na Ferme générale, Lavoisier bancou a construção de um muro em torno de Paris, direcionando as saídas da cidade para que a companhia pudesse posicionar guarnições nestes locais específicos e recolher impostos sobre qualquer produto que entrasse ou saísse da cidade, evitando sobremaneira a evasão e o contrabando na capital.

Como tivesse a prerrogativa de recolher os impostos, a Ferme générale era, naturalmente, mal vista pela população. Mas além da função ingrata, agravada pelo complicado sistema tributário francês, a truculência com que tratava sonegadores e contrabandistas (que podiam ser punidos com mais rigor do que criminosos mais violentos), bem como a enorme riqueza acumulada pelos seus diretores, saltavam aos olhos. Quando eclodiu a Revolução Francesa em 1789, um dos elementos que mais inflamavam as opiniões era a questão dos impostos, a maneira como eram recolhidos, e o seu destino. No plenário da assembleia nacional, os fazendeiros-gerais eram abertamente chamados de "predadores". O novo governo revolucionário dissolveu a empresa em 1791, destituindo seus diretores (entre eles Lavoisier) e funcionários.

Lavoisier escapou da ira revolucionária neste primeiro momento, mas foi forçado a deixar seu posto na Comissão da Pólvora. Ele reconhecia que o sistema de governo era falho e precisava de profundas reformas; quando foi encarregado por Luis XVI para avaliar a possibilidade de introdução de novas culturas e tipos de gado nas fazendas francesas, ele concluiu que seria inútil introduzir qualquer novidade no campo, pois os camponeses estavam tão empobrecidos e pressionados pela carga tributária que eles não podiam investir em nada além do que já estavam adaptados a cultivar. Já destituído de cargos, apresentou um projeto de reforma da educação ao Congresso, acreditando poder reformar o sistema de dentro para fora com o poder da razão. Porém, a Revolução evoluía a despeito dos esforços - de revolucionários moderados e conservadores - para contê-la, e rumava para sua fase mais sinistra, conhecida como "Reino do Terror".

Maximilien de Robespierre encabeçava a cúpula revolucionária que assumira a administração pública a partir da queda de Luís XVI. À medida em que o novo governo tomava corpo, a jovem burguesia francesa que atropelara os velhos oligarcas dava espaço a soluções moderadas ou conservadoras às reivindicações em pauta que agradassem a ambos. Robespierre, por outro lado, mantinha sua veia radical ao permitir a interferência dos "sans culottes", como as classes mais baixas eram conhecidas, e sua popularidade crescia à medida em que se posicionava contra as instituições tradicionais de poder. A França também fora desafiada pelos seus vizinhos absolutistas na Guerra da Primeira Coalizão, e a capacidade de mobilizar a população era vital para conter o conflito e manter a estabilidade interna. A primeira vítima ilustre dessa radicalização do movimento revolucionário foi o próprio Luís XVI, a cujo perdão ou punição simbólica Robespierre se opunha. O governo começou a perseguir e cortar as cabeças de membros do parlamento, antigos políticos, e, eventualmente, qualquer um que representasse ou mesmo defendesse de alguma forma o poder monárquico.

A partir de 1793, a Revolução voltou-se contra as sociedades científicas. Sob pedido do Abade Gregório, congressista católico e nacionalista rábico que influenciou a nova política de língua única na França (que tradicionalmente compunha-se do francês falado em grande parte do país, mais 33 dialetos diferentes), a Academia de Ciências, da qual faziam parte Lavoisier e nomes ilustres, como o matemático Pierre Laplace e o estrangeiro Joseph Louis Lagrange (a favor de quem Lavoisier interferiu para que lhe poupasse a vida e os bens) foi fechada. Por fim, em novembro de 1793, Lavoisier, junto com outros 27 diretores da antiga Ferme générale foram presos. Sua defesa apelou ao juiz Jean Baptiste Coffinhal, alegando serem os trabalhos e experimentos de Lavoisier úteis ao país, ao que o juiz teria respondido: "A República não precisa de cientistas e químicos". Ele seria considerado culpado das acusações de roubar o povo e o Tesouro (pela sua participação na Ferme générale), de adulterar o tabaco vendido no país (acusado de tal crime pelo jornalista Jean Paul Marat, assassinado dez meses antes), e de ter repassado a estrangeiros grandes somas de dinheiro público (o apoio dado a pesquisadores estrangeiros fora e dentro da França). Todos os 28 acusados foram julgados e guilhotinados no mesmo dia.

Lavoisier deixou um legado volumoso para a ciência e a filosofia em muitos campos. Sua importância foi reconhecida ainda durante o período revolucionário, quando, um ano e meio depois da sua execução, seus pertences foram entregues a Marie-Anne, com uma nota que dizia "À viúva de Lavoisier, que fora falsamente condenado". Lagrange disse: "Bastou a eles um segundo para cortar sua cabeça, e cem anos não bastarão para produzir outro igual".

E, afinal, depois de mergulhar numa espiral de violência revolucionária pela queda da monarquia e a tomada do poder pelo povo, a França acabaria abraçando, 10 anos depois da morte de Lavoisier, um novo monarca, Napoleão Bonaparte. O que os revolucionários tentaram introduzir de novo acabou resultando em algo muito parecido (apenas aproveitando-se de uma estrutura administrativa mais moderna) com o que era antes. Nada se cria, tudo se transforma.

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