quinta-feira, 4 de maio de 2017

Scarface

Em 4 de maio de 1932, Al Capone foi admitido na Penitenciária Federal de Atlanta para o cumprimento de pena relativa a cinco condenações por evasão fiscal.

Alphonse Gabriel Capone, nascido em Nova Iorque em 1899, começou a carreira como membro de gangues de adolescentes que praticavam roubos, e seguiu como segurança em bordéis dirigidos pela máfia novaiorquina (um grupo de origem irlandesa conhecido como Five Points Gang que operava em Manhattan). Certo dia, Capone insultou uma mulher na porta de uma boate. O irmão da moça, Frank Gallucio, lhe desferiu uma facada no lado esquerdo do rosto, e Capone ficaria conhecido dali para frente, alternativamente, como "Scarface" (ele alegava ser uma cicatriz de um ferimento da guerra). Mais tarde, ele empregaria Gallucio como seu segurança pessoal.

Aos 20, Capone deixou Nova Iorque a convite de um imigrante italiano, Johnny Torrio, que fora chamado pelo compatriota James Colosimo, mafioso de Chicago, para fazer o "trabalho sujo". Capone continuou trabalhando como segurança em casas noturnas controladas por Colosimo. Em 1920, o "chefão" foi assassinado, provavelmente por capangas de Torrio (possivelmente, mas nunca provado, Al Capone estava entre eles). Com Torrio assumindo o controle da máfia, Al Capone foi promovido a seu braço direito.

A proximidade do poder, para a máfia, representava uma potencialização do risco de morte. A máfia dirigida por Johnny Torrio tinha como principais concorrentes, na parte norte da cidade, uma gangue irlandesa comandada por Dean O'Banion. Quando Torrio decidiu eliminar O'Banion (assassinando-o na loja de flores que usava como fachada para seus negócios), os irlandeses começaram a coordenar esforços para eliminar os rivais italianos. Capone foi vítima de um atentado em 1925, ao qual escapou ileso, e duas semanas depois foi a vez de Torrio ser alvejado 7 vezes. O velho "padrinho" sobreviveu, mas se retirou dos negócios, entregando o controle da máfia a Al Capone.

Torrio, e depois Capone, faziam dinheiro com o contrabando de bebidas. Seguindo um movimento ultra-conservador de origem cristã, os Estados Unidos, progressiva mas pontualmente, passaram a proibir, em vários graus, o consumo de bebidas alcoólicas conforme previsto na XVIII Emenda Constitucional, ratificada pela presidência em 1917. Como a regulamentação da Constituição Federal nos Estados Unidos é feita de maneira independente pelos estados, a proibição variava desde a proibição do consumo de determinados tipos de bebida em locais públicos até a completa ilegalidade do comércio de bebidas. O estado de Ilinois estava entre os que a proibição era quase total - era permitida a venda e consumo apenas em estabelecimentos cadastrados, porém estrangulada por uma limitação na produção e distribuição regular. Como é possível proibir uma prática, mas impossível de impedí-la quando esta tem um vasto alcance e profundidade cultural numa sociedade, a demanda por bebidas alcoólicas levou rapidamente à organização de mercados negros, que, sem regulação, disputavam espaço uns com os outros na base da violência. Em Chicago, particularmente, a máfia, cujos ganhos se baseavam na venda clandestina de bebidas, tinha à disposição uma vasta rede de ferrovias e rodovias pelo interior dos EUA e até pelo Canadá, por onde poderiam transportar seus produtos, dificultando a fiscalização e tornando a cidade uma espécie de hot spot para o crime organizado.

Al Capone firmava seu pé como principal mafioso de Chicago impondo-se com uma violência à qual mesmo as gangues locais e seus associados não estavam acostumadas. Usando o excedente arrecadado com a venda de bebidas, ele subornava policiais e políticos para garantir proteção; os estabelecimentos que se recusassem a comprar sua mercadoria sofriam explosões "acidentais" (na década de 1920, perto de 100 pessoas morreram nesses "acidentes"). Capone também investia na abertura de novas boates, que se tornariam pontos regulares de consumo do seu produto contrabandeado. Fazia também vultuosas doações a políticos. O prefeito eleito em 1927, William Hale Thompson, teria recebido 250 mil dólares do gangster para sua campanha eleitoral, sinalizando, em troca, a reabertura de casas noturnas fechadas por irregularidades. No condado de Cook, do qual Chicago faz parte e onde Thompson tinha enorme influência, sessões eleitorais com maior número de eleitores contrários a ele foram atacados por James Belcastro, especialista em bombas a serviço de Capone; um líder da comunidade negra local e adversário político, Octavius Granady, foi perseguido na rua e assassinado por Belcastro e quatro policiais, mas o processo contra o grupo foi arquivado. Quando Belcastro foi ferido num tiroteio em 1931, a polícia divulgou que ele agia por conta própria.

Com os rivais em cheque, a polícia e a classe política nas mãos, e, consequentemente, saudado pela imprensa como um jovem empreendedor de sucesso, Capone se tornaria rapidamente uma celebridade inconteste e de fama nacional. Promovia e era convidado a eventos que contavam com a alta sociedade local, em que se exibia com ternos impecáveis, jóias, consumindo charutos e bebidas finas (obtidas legalmente), além de belas mulheres. Quando questionado sobre a natureza de seus negócios, respondia: "Sou apenas um homem de negócios, dando às pessoas o que elas querem". Receber Al Capone era um evento capaz de elevar o status de um restaurante, um hotel, ou ruas inteiras onde tomasse residência - com receio de ataques das gangues rivais, Capone mudava-se constantemente.

Além de comprar pessoas, Capone mantinha seus negócios, a origem, e mesmo o montante da sua fortuna em sigilo. Como se tratasse de dinheiro ilícito, ele fugia do sistema financeiro para evitar ser pego pelo fisco, jamais abrindo uma conta em qualquer banco. Os investimentos em imóveis (que adquiria em cidades diferentes de norte a sul do país) eram feitos em nome de laranjas. Capone era "invisível" para a justiça porque seu dinheiro nunca entrava no "sistema", e sua penetração no jogo político através de propinas inibia qualquer iniciativa de investigação sobre suas atividades. Mas sua sorte mudou quando decidiu dar o golpe final na gangue irlandesa que fustigava seus negócios na cidade.

Na manhã do dia de São Valentim de 1929, capangas de Al Capone, vestidos como policiais, deram uma falsa batida no armazém usado pelo chefão irlandês, Bugs Moran (sucessor de Dean O'Banion). Sete pessoas ali presentes, acreditando ser um procedimento policial, se renderam sem oferecer resistência; foram alinhados contra uma parede, e então metralhados. A imprensa divulgou fotos dos mortos, chocando a sociedade de tal maneira que Capone foi enfim formalmente acusado de violar as leis de proibição ao álcool - ele escapou do julgamento dizendo que não se sentia bem para comparecer ao tribunal na ocasião (semanas antes, ele participara da Conferência de Atlantic City entre líderes de famílias de mafiosos de todo o país, para arbitrar disputas e decidir regras de conduta entre gangues rivais, bem como as maneiras como deveriam conduzir suas relações com o poder público; semelhante reunião aconteceria novamente em Havana, em 1946, para discutir meios de legalizar seus negócios). No entanto, mesmo irrigando uma rede de corrupção, a opinião pública e a sua relação com a imprensa - que o declararia, em 1931, "Inimigo Público Número 1" - jamais seria a mesma.

Enquanto isso, Eliot Ness, jovem economista que trabalhava como investigador para o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, e natural de Chicago, foi escolhido para organizar uma força-tarefa para levantar as responsabilidades de Al Capone nos crimes de evasão de divisas e violação das leis de proibição. Fazendo um levantamento meticuloso entre os oficiais da polícia de Chicago, ele escolheu 11 homens que seguramente não receberam propina de Capone - "Os Intocáveis". Apesar de engenhosos esforços para encontrar relações de Capone com o crime organizado, ele finalmente conseguiu levá-lo a julgamento apenas por evasão fiscal.

Depois de vários julgamentos entre 1929 e 1932 que foram anulados ou em que fora absolvido, Al Capone foi considerado culpado de 5 das 22 acusações de sonegação (em parte porque seus advogados insistiam na tese espúria de que Capone era desprovido de bens e posses devido a pesadas perdas no jogo), e condenado a 11 anos de prisão. Sifilítico desde a juventude, seu estado mental se deteriorou rapidamente na cadeia. Ficou preso na Penitenciária Federal de Atlanta, em Alcatraz e em Terminal Island. Ele foi solto em 1939 e imediatamente internado para tratamento da demência associada à sífilis em Baltimore. Passou os últimos anos recluso na sua mansão em Palm Island, Flórida. Morreu após um infarto em 25 de janeiro de 1947. Apenas anos após sua morte, Al Capone foi responsabilizado por atividades criminosas em Chicago, incluindo contrabando e assassinato (pelo menos 33 pessoas foram mortas sob suas ordens).

A prisão de Capone, se não levou ao fim da máfia de Chicago, a fez operar de maneira muito mais discreta, ainda que com a complacência do poder público local que dela ainda se abastecia. Com a retomada do comércio legal de bebidas alcoólicas, os chefões passaram a apelar para grandes esquemas de lavagem de dinheiro usando cassinos e remessas de dinheiro ao exterior sob empresas de fachada (algumas gangues menores optaram pelo tráfico de drogas, que os chefões da máfia haviam de maneira geral proibido em Atlantic City). No entanto, um dos capangas mais próximos a Capone, Tony Accardo (que era conhecido no meio pelo uso do taco de baseball como arma de preferência - "Joe Batters", o "João do Taco" - e embora compartilhemos do sobrenome, ele não seja meu parente) continuou reinando na cidade até início dos anos 1960, e morreu em 1992 com grande parte da sua fortuna perfeitamente legalizada.

Eliot Ness morreu em decorrência do alcoolismo (ironicamente) em 1957, mas chegou a publicar uma autobiografia, intitulada Os Intocáveis, onde o clímax é a investigação e condenação de Al Capone. Sua história seria adaptada em uma série homônima de TV entre 1959 e 1963, e em um filme em 1987 dirigido por Brian de Palma, com atuação memorável de Robert de Niro (que vivera um jovem Vito Corleone em ascenção no filme O Poderoso Chefão II) como Al Capone.

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