quinta-feira, 11 de maio de 2017

As Aventuras (reais ou não) do Barão Munchausen

Em 11 de maio de 1720 nasceu Hyeronymus Karl Friedrich von Münchhausen, que viria a se tornar célebre através da sua versão satirizada na literatura na forma do mentiroso Barão Munchausen.

Münchhausen nasceu no seio de uma família nobre do norte da Alemanha, e ainda adolescente, serviu como pagem ao jovem duque Ulrich II de Brunswick. Este Ulrich era sobrinho da imperatriz consorte do Sacro Império Romano, e através dela teve seu casamento arranjado com uma princesa russa. Em 1733 ele seguiu acompanhado de Münchhausen para a Rússia para conhecer melhor a noiva.

Em 1735 eclodiu a confusa Guerra Russo-Turca (que começou com uma guerra entre o Império Otomano e a Pérsia, e envolveu a Rússia por força de tratados com os persas, que apoiavam um herdeiro favorável aos russos ao trono polonês, contra o favorito da França... além da possibilidade da Rússia abrir caminho sobre território Otomano em direção ao Mar Negro). Sob influência do seu suserano, Münchhausen foi nomeado corneteiro de uma unidade de cavalaria alemã a serviço da Rússia, no fim da guerra em 1739. O futuro barão seguiu carreira militar, tendo sido nomeado tenente e participado superficialmente de duas campanhas russas contra os turcos.

Em 1760, tomou posse das terras da família em Bodenwerder e decidiu "aposentar-se" como barão (em alemão, "Freiherr", ou "Senhor livre"), ou seja, viver das rendas da sua propriedade. Ali ele promovia encontros festivos com aristocratas alemães, onde entretinha os convidados com sua própria versão de suas aventuras no exército russo. Suas histórias, tão espúrias e espetaculares, passaram a atrair a curiosidade de nobres e viajantes da Europa, que vinham visitá-lo para ouvi-lo contar de como suas peripécias inacreditáveis determinaram os acontecimentos históricos nas quais estavam inseridas. Um observador ponderou que Münchhausen exagerava seus feitos não para enganar ou vangloriar-se, mas para ridicularizar a credulidade de seus amigos. Münchhausen morreu em meio a um processo de divórcio com sua segunda esposa, 57 anos mais jovem, que tivera um filho exatamente 9 meses depois de se retirar a um spa na Saxônia, em 1797.

O barão teria sido esquecido como uma figura menor da história alemã, não fosse pelo escritor alemão Rudolf Erich Raspe. Raspe estudou na Universidade de Göttingen, fundada por um primo de Münchhausen, e através dele conheceu Münchhausen ali antes da sua aposentadoria. Convidado a participar de uma de suas reuniões em Bodenwerder, ele guardou para si lembranças de alguns dos contos que ouviu e a eles adicionou outros mais antigos presentes na literatura alemã para criar o personagem quase homônimo, o Barão Munchausen. Publicados anonimamente e escritos em primeira pessoa (identificada originalmente apenas como "M-h-s-n"), os contos foram publicados pontualmente em revistas e inseridos em almanaques alemães. Foi em 1785, enquanto trabalhava em uma empresa mineradora na Inglaterra, que Raspe compilou (anonimamente) pela primeira vez as aventuras do Barão Munchausen (sem o segundo "H", para que fosse lido com mais facilidade em inglês). Com títulos enormes que variavam de uma edição para outra, o livro é comumente conhecido como Viagens do Barão Munchausen.

Na obra, Munchausen é um nobre veterano de guerra narrando a seus amigos, de forma exagerada, suas aventuras originalmente contextualizadas no cenário da Guerra Russo-Turca - como no prefácio o próprio personagem reconhece ao leitor a dificuldade de se afirmar a veracidade dos fatos, ele consegue uma declaração de confiança subscrita por ninguém menos que Gulliver, Simbad, e Alladin. Colocado frequentemente em situações inacreditáveis, o Barão contorna seus problemas usando de astúcia e habilidades super humanas.

,Entre seus feitos, ele livra-se de um leão fazendo-o atirar-se na boca de um crocodilo, matando ambos; depois de tirar seu cavalo do telhado de uma igreja, este é devorado por um lobo, que o barão atrela e faz puxar seu trenó; abate quase 100 aves em um lago disparando com o fogo que saía de seus olhos; explode um urso com uma pederneira, vira um lobo do avesso, e, depois de fugir de um cão raivoso, seu próprio casaco de pele enlouquece e ataca as outras roupas de seu armário; escapa do estômago de um peixe gigante dançando à moda escocesa dentro dele; acerta os pescoços de 17 inimigos com apenas um tiro de canhão; relata como seu pai viajou da Inglaterra para a Holanda num cavalo marinho; conhece o próprio deus Vulcano no interior do Monte Etna, indo parar em seguida em uma ilha (maior que a Europa, que ele sobrevoara nas costas de uma águia) feita de queijo cercada por um mar de leite; cavalga uma bala atirada de um canhão.

Uma das cenas mais famosas começa quando os turcos o capturam e o vendem ao sultão como escravo. Enquanto cuidava das suas abelhas gigantes, dois ursos atacam a colmeia. Ele tenta espantar os ursos com uma machadinha de prata usada pelos jardineiros, mas o arremesso é tão forte e tão errado, que a machadinha vai parar na lua. Ele planta um pé de feijão que cresce até se agarrar numa das "pontas" da lua e sobe por ele. Ao recuperar a machadinha (perdida num lugar onde tudo reluzia a prata), ele percebe que o pé de feijão secara. Então ele corta um pedaço do pé seco e faz uma corda; conforme se pendura nela, ele vai cortando outros pedaços do pé de feijão para alongar a corda. Porém a corda resulta curta demais, e ele despenca de uma altura de 8 km, caindo como um prego, enterrando-se no solo. Ele se livra cavando com as próprias unhas, que deixara crescer por 14 anos.

Em outra ocasião, o barão montava um cavalo lituano muito especial, que tivera a metade de trás do corpo arrancada enquanto passavam por um portão que descera às suas costas, mas ele só percebera que o animal caminhava apenas com as patas dianteiras quando, ao parar para beber água, ela passava pelo seu corpo e derramava no chão pelo buraco; o barão resolvera o problema costurando as duas metades com ramos de louro, que não só curaram o animal, como cresceram para fazer sombra sobre seu ginete.

O verdadeiro Barão Münchhausen, quando soube da publicação do livro, não ficou nada satisfeito. Sentindo-se insultado, ameaçou processar o editor (um certo Smith, já que Raspe permanecia anônimo), mas isso não impediu que a obra fosse traduzida para alemão e francês antes da virada do século. Ironicamente, o próprio Raspe inspiraria um personagem de O Antiquário, de Walter Scott, um trambiqueiro alemão trabalhando em uma mina escocesa - o Raspe verdadeiro teria enganado um dono de terras escocês sobre a riqueza na sua propriedade mostrando a ele gemas e pedras preciosas que ele mesmo havia "plantado" no chão previamente. Reeditado muitas vezes ao longo do século XIX, ganhou o cinema pela primeira vez com a produção de 1911 dirigida por George Méliès. A última versão importante das histórias do barão foi o filme As Aventuras do Barão Munchausen de 1989, dirigido por Terry Gillian.

Uma desordem psiquiátrica chamada Síndrome de Munchausen compreende um quadro onde o paciente deliberadamente mente sobre sintomas que não está sentindo, forjando-os se for necessário, para conseguir atenção médica (diferente da hipocondria, onde o paciente realmente acredita estar sentindo os sintomas que descreve). Inspirado pelo conto em que o barão salva a si próprio do afogamento puxando-se para fora de um pântano pelos cabelos, filósofo Hans Albert definiu o Trilema de Munchausen, que discute a impossibilidade de se provar definitivamente qualquer verdade porque o argumentador tem três vias argumentativas possíveis: justificar sua conclusão a partir de um método que precisa justificar-se logicamente com base em premissas que precisam ser justificadas, assim indefinidamente; um argumento circular (fundamentado nele mesmo ou nas suas próprias motivações) pode ser usado, porém sacrificando sua validade; pode-se usar o princípio da autoridade, ou da razão suficiente, fundamentado na palavra de um "expert" ou no que "está escrito" (esta tríade está presente abundantemente na narrativa do barão, que apresenta os fatos como se fossem naturais e lógicos; na falta de lógica, apela para o argumento circular; e quando tudo mais falha, alega a veracidade colocando em jogo sua própria palavra de honra).

Em Bodenwerder existe hoje uma fonte esculpida no formato de um meio-cavalo, montado pelo barão, com a água jorrando da metade cortada do seu corpo.

P.S.: Se me permitem, antes de conhecer o barão e suas histórias, minha avó contava sua própria versão delas, substituindo o barão por um "príncipe" anônimo, que reunira personagens com habilidades extraordinárias para participar de uma competição pela mão de uma princesa (o personagem-título era um deles, chamado Come Tudo, Bebe Tudo, e Nada Chega). Quando o filme de 1989 chegou ao cinema, reconheci nele quase todos os personagens e eventos do "ciclo mitológico" da minha avó.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Tudo se transforma

Em 8 de maio de 1794, o químico Antoine Lavoisier e mais 27 acusados foram condenados e executados em Paris por atividades anti-revolucionárias.

Lavoisier nasceu em 1743 no seio de uma família nobre, e aos 16 anos começou a estudar ferozmente vários campos das ciências naturais e da matemática. A despeito de ter se formado advogado como seu pai (embora nunca tenha exercito a função), Lavoisier seguiu assistindo aulas e palestras sobre ciências naturais, e associando-se a pesquisadores proeminentes. Evidentemente sua posição social lhe abriu muitas portas (a ponto de, aos 23 anos ser condecorado com uma medalha de ouro pelo rei Luís XV por um trabalho sobre a iluminação das ruas de Paris), mas seu talento o fez aproveitar ao máximo cada oportunidade.

A contribuição mais notável de Lavoisier para a ciência foi na compreensão do fenômeno da combustão. Ele percebeu que a combustão e calcinação (ou seja, a transformação, após a queima, de um sólido em outro sólido) de uma substância em estado puro resultava no acréscimo de peso do mesmo elemento, embora o sistema total mantivesse sua massa constante. Após realizar experimentos com diferentes elementos, e agregando trabalhos feitos por colegas britânicos, ele enfim deduziu que a combustão era o processo pelo qual uma substância reagia com outras presentes no ar, que eram agregadas à substância original durante a queima com liberação de energia. Ele ainda não conhecia a composição química da atmosfera nem o papel do oxigênio na promoção da combustão - ele deduziria mais tarde a existência do oxigênio e do hidrogênio. Suas aferições precisas de massa, e a precisão dos resultados produzidos com essa metodologia, seriam incorporadas à metodologia de todos os trabalhos em química no futuro. Lavoisier também seria um dos que defenderia o estabelecimento do sistema métrico decimal em substituição à miríade de sistemas de medidas adotadas anteriormente, além de um sistema nomenclatural para a química semelhante ao proposto por Carl Linnaeus para a biologia. Suas observações sobre as reações químicas, e a verificação de que a massa total dos reagentes é igual à massa total dos produtos, o levou a cunhar a famosa frase: "Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma".

Graças aos seus trabalhos sobre combustão, em 1775 Lavoisier foi nomeado para a Comissão da Pólvora, órgão governamental que substituiria uma empresa particular no suprimento de pólvora para a França, e sua enorme capacidade de organização de fato fez com que o suprimento e a qualidade da pólvora entregue ao governo superasse em muito o que se tinha antes, a ponto de gerar receita para o Tesouro. A Comissão lhe forneceu uma casa e um laboratório no Arsenal Real, onde viveu e trabalhou até 1792.

Lavoisier, enquanto cientista, foi um produto do Iluminismo, corrente filosófica que estimulava a investigação metódica do mundo natural e humano, confrontando visões dogmáticas (de ordem religiosa ou qualquer outra) sobre a construção do mundo e da sociedade. O Iluminismo estava impregnado no sistema educacional no qual Lavoisier se formou. Contudo, o químico nunca questionou a natureza da legitimidade do poder político e da ordem social, ou ao menos nunca percebeu a profundidade do abismo que separavam as classes sociais na França, e o que disso viria a resultar - o que lhe custaria a vida mais adiante.

Aos 26 anos, Lavoisier adquiriu parte da Ferme générale (ou "Fazenda Geral"), uma companhia a serviço do governo que estimava quanto de imposto seria arrecadado ao longo do ano, antecipando o repasse desta quantia ao governo francês, em troca do direito de executar, por conta própria, o recolhimento dos impostos da população ("Fazenda", no caso, tinha o duplo sentido de ter sua origem e principal função o recolhimento de impostos das propriedades rurais, e ser ela mesmo uma "fazenda de impostos" para o governo). Lavoisier chegou mesmo a se casar com Marie-Anne Paulze, filha de um dos membros da Ferme générale (Marie-Anne, apesar de ter apenas 13 anos quando se casou, era excepcionalmente culta, e não só auxiliava o marido no laboratório, mas produzia ilustrações, e traduzia trabalhos científicos do inglês para o francês, bem como sua correspondência, especialmente com Joseph Priestley, químico que também descobrira paralelamente o oxigênio). Na Ferme générale, Lavoisier bancou a construção de um muro em torno de Paris, direcionando as saídas da cidade para que a companhia pudesse posicionar guarnições nestes locais específicos e recolher impostos sobre qualquer produto que entrasse ou saísse da cidade, evitando sobremaneira a evasão e o contrabando na capital.

Como tivesse a prerrogativa de recolher os impostos, a Ferme générale era, naturalmente, mal vista pela população. Mas além da função ingrata, agravada pelo complicado sistema tributário francês, a truculência com que tratava sonegadores e contrabandistas (que podiam ser punidos com mais rigor do que criminosos mais violentos), bem como a enorme riqueza acumulada pelos seus diretores, saltavam aos olhos. Quando eclodiu a Revolução Francesa em 1789, um dos elementos que mais inflamavam as opiniões era a questão dos impostos, a maneira como eram recolhidos, e o seu destino. No plenário da assembleia nacional, os fazendeiros-gerais eram abertamente chamados de "predadores". O novo governo revolucionário dissolveu a empresa em 1791, destituindo seus diretores (entre eles Lavoisier) e funcionários.

Lavoisier escapou da ira revolucionária neste primeiro momento, mas foi forçado a deixar seu posto na Comissão da Pólvora. Ele reconhecia que o sistema de governo era falho e precisava de profundas reformas; quando foi encarregado por Luis XVI para avaliar a possibilidade de introdução de novas culturas e tipos de gado nas fazendas francesas, ele concluiu que seria inútil introduzir qualquer novidade no campo, pois os camponeses estavam tão empobrecidos e pressionados pela carga tributária que eles não podiam investir em nada além do que já estavam adaptados a cultivar. Já destituído de cargos, apresentou um projeto de reforma da educação ao Congresso, acreditando poder reformar o sistema de dentro para fora com o poder da razão. Porém, a Revolução evoluía a despeito dos esforços - de revolucionários moderados e conservadores - para contê-la, e rumava para sua fase mais sinistra, conhecida como "Reino do Terror".

Maximilien de Robespierre encabeçava a cúpula revolucionária que assumira a administração pública a partir da queda de Luís XVI. À medida em que o novo governo tomava corpo, a jovem burguesia francesa que atropelara os velhos oligarcas dava espaço a soluções moderadas ou conservadoras às reivindicações em pauta que agradassem a ambos. Robespierre, por outro lado, mantinha sua veia radical ao permitir a interferência dos "sans culottes", como as classes mais baixas eram conhecidas, e sua popularidade crescia à medida em que se posicionava contra as instituições tradicionais de poder. A França também fora desafiada pelos seus vizinhos absolutistas na Guerra da Primeira Coalizão, e a capacidade de mobilizar a população era vital para conter o conflito e manter a estabilidade interna. A primeira vítima ilustre dessa radicalização do movimento revolucionário foi o próprio Luís XVI, a cujo perdão ou punição simbólica Robespierre se opunha. O governo começou a perseguir e cortar as cabeças de membros do parlamento, antigos políticos, e, eventualmente, qualquer um que representasse ou mesmo defendesse de alguma forma o poder monárquico.

A partir de 1793, a Revolução voltou-se contra as sociedades científicas. Sob pedido do Abade Gregório, congressista católico e nacionalista rábico que influenciou a nova política de língua única na França (que tradicionalmente compunha-se do francês falado em grande parte do país, mais 33 dialetos diferentes), a Academia de Ciências, da qual faziam parte Lavoisier e nomes ilustres, como o matemático Pierre Laplace e o estrangeiro Joseph Louis Lagrange (a favor de quem Lavoisier interferiu para que lhe poupasse a vida e os bens) foi fechada. Por fim, em novembro de 1793, Lavoisier, junto com outros 27 diretores da antiga Ferme générale foram presos. Sua defesa apelou ao juiz Jean Baptiste Coffinhal, alegando serem os trabalhos e experimentos de Lavoisier úteis ao país, ao que o juiz teria respondido: "A República não precisa de cientistas e químicos". Ele seria considerado culpado das acusações de roubar o povo e o Tesouro (pela sua participação na Ferme générale), de adulterar o tabaco vendido no país (acusado de tal crime pelo jornalista Jean Paul Marat, assassinado dez meses antes), e de ter repassado a estrangeiros grandes somas de dinheiro público (o apoio dado a pesquisadores estrangeiros fora e dentro da França). Todos os 28 acusados foram julgados e guilhotinados no mesmo dia.

Lavoisier deixou um legado volumoso para a ciência e a filosofia em muitos campos. Sua importância foi reconhecida ainda durante o período revolucionário, quando, um ano e meio depois da sua execução, seus pertences foram entregues a Marie-Anne, com uma nota que dizia "À viúva de Lavoisier, que fora falsamente condenado". Lagrange disse: "Bastou a eles um segundo para cortar sua cabeça, e cem anos não bastarão para produzir outro igual".

E, afinal, depois de mergulhar numa espiral de violência revolucionária pela queda da monarquia e a tomada do poder pelo povo, a França acabaria abraçando, 10 anos depois da morte de Lavoisier, um novo monarca, Napoleão Bonaparte. O que os revolucionários tentaram introduzir de novo acabou resultando em algo muito parecido (apenas aproveitando-se de uma estrutura administrativa mais moderna) com o que era antes. Nada se cria, tudo se transforma.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Scarface

Em 4 de maio de 1932, Al Capone foi admitido na Penitenciária Federal de Atlanta para o cumprimento de pena relativa a cinco condenações por evasão fiscal.

Alphonse Gabriel Capone, nascido em Nova Iorque em 1899, começou a carreira como membro de gangues de adolescentes que praticavam roubos, e seguiu como segurança em bordéis dirigidos pela máfia novaiorquina (um grupo de origem irlandesa conhecido como Five Points Gang que operava em Manhattan). Certo dia, Capone insultou uma mulher na porta de uma boate. O irmão da moça, Frank Gallucio, lhe desferiu uma facada no lado esquerdo do rosto, e Capone ficaria conhecido dali para frente, alternativamente, como "Scarface" (ele alegava ser uma cicatriz de um ferimento da guerra). Mais tarde, ele empregaria Gallucio como seu segurança pessoal.

Aos 20, Capone deixou Nova Iorque a convite de um imigrante italiano, Johnny Torrio, que fora chamado pelo compatriota James Colosimo, mafioso de Chicago, para fazer o "trabalho sujo". Capone continuou trabalhando como segurança em casas noturnas controladas por Colosimo. Em 1920, o "chefão" foi assassinado, provavelmente por capangas de Torrio (possivelmente, mas nunca provado, Al Capone estava entre eles). Com Torrio assumindo o controle da máfia, Al Capone foi promovido a seu braço direito.

A proximidade do poder, para a máfia, representava uma potencialização do risco de morte. A máfia dirigida por Johnny Torrio tinha como principais concorrentes, na parte norte da cidade, uma gangue irlandesa comandada por Dean O'Banion. Quando Torrio decidiu eliminar O'Banion (assassinando-o na loja de flores que usava como fachada para seus negócios), os irlandeses começaram a coordenar esforços para eliminar os rivais italianos. Capone foi vítima de um atentado em 1925, ao qual escapou ileso, e duas semanas depois foi a vez de Torrio ser alvejado 7 vezes. O velho "padrinho" sobreviveu, mas se retirou dos negócios, entregando o controle da máfia a Al Capone.

Torrio, e depois Capone, faziam dinheiro com o contrabando de bebidas. Seguindo um movimento ultra-conservador de origem cristã, os Estados Unidos, progressiva mas pontualmente, passaram a proibir, em vários graus, o consumo de bebidas alcoólicas conforme previsto na XVIII Emenda Constitucional, ratificada pela presidência em 1917. Como a regulamentação da Constituição Federal nos Estados Unidos é feita de maneira independente pelos estados, a proibição variava desde a proibição do consumo de determinados tipos de bebida em locais públicos até a completa ilegalidade do comércio de bebidas. O estado de Ilinois estava entre os que a proibição era quase total - era permitida a venda e consumo apenas em estabelecimentos cadastrados, porém estrangulada por uma limitação na produção e distribuição regular. Como é possível proibir uma prática, mas impossível de impedí-la quando esta tem um vasto alcance e profundidade cultural numa sociedade, a demanda por bebidas alcoólicas levou rapidamente à organização de mercados negros, que, sem regulação, disputavam espaço uns com os outros na base da violência. Em Chicago, particularmente, a máfia, cujos ganhos se baseavam na venda clandestina de bebidas, tinha à disposição uma vasta rede de ferrovias e rodovias pelo interior dos EUA e até pelo Canadá, por onde poderiam transportar seus produtos, dificultando a fiscalização e tornando a cidade uma espécie de hot spot para o crime organizado.

Al Capone firmava seu pé como principal mafioso de Chicago impondo-se com uma violência à qual mesmo as gangues locais e seus associados não estavam acostumadas. Usando o excedente arrecadado com a venda de bebidas, ele subornava policiais e políticos para garantir proteção; os estabelecimentos que se recusassem a comprar sua mercadoria sofriam explosões "acidentais" (na década de 1920, perto de 100 pessoas morreram nesses "acidentes"). Capone também investia na abertura de novas boates, que se tornariam pontos regulares de consumo do seu produto contrabandeado. Fazia também vultuosas doações a políticos. O prefeito eleito em 1927, William Hale Thompson, teria recebido 250 mil dólares do gangster para sua campanha eleitoral, sinalizando, em troca, a reabertura de casas noturnas fechadas por irregularidades. No condado de Cook, do qual Chicago faz parte e onde Thompson tinha enorme influência, sessões eleitorais com maior número de eleitores contrários a ele foram atacados por James Belcastro, especialista em bombas a serviço de Capone; um líder da comunidade negra local e adversário político, Octavius Granady, foi perseguido na rua e assassinado por Belcastro e quatro policiais, mas o processo contra o grupo foi arquivado. Quando Belcastro foi ferido num tiroteio em 1931, a polícia divulgou que ele agia por conta própria.

Com os rivais em cheque, a polícia e a classe política nas mãos, e, consequentemente, saudado pela imprensa como um jovem empreendedor de sucesso, Capone se tornaria rapidamente uma celebridade inconteste e de fama nacional. Promovia e era convidado a eventos que contavam com a alta sociedade local, em que se exibia com ternos impecáveis, jóias, consumindo charutos e bebidas finas (obtidas legalmente), além de belas mulheres. Quando questionado sobre a natureza de seus negócios, respondia: "Sou apenas um homem de negócios, dando às pessoas o que elas querem". Receber Al Capone era um evento capaz de elevar o status de um restaurante, um hotel, ou ruas inteiras onde tomasse residência - com receio de ataques das gangues rivais, Capone mudava-se constantemente.

Além de comprar pessoas, Capone mantinha seus negócios, a origem, e mesmo o montante da sua fortuna em sigilo. Como se tratasse de dinheiro ilícito, ele fugia do sistema financeiro para evitar ser pego pelo fisco, jamais abrindo uma conta em qualquer banco. Os investimentos em imóveis (que adquiria em cidades diferentes de norte a sul do país) eram feitos em nome de laranjas. Capone era "invisível" para a justiça porque seu dinheiro nunca entrava no "sistema", e sua penetração no jogo político através de propinas inibia qualquer iniciativa de investigação sobre suas atividades. Mas sua sorte mudou quando decidiu dar o golpe final na gangue irlandesa que fustigava seus negócios na cidade.

Na manhã do dia de São Valentim de 1929, capangas de Al Capone, vestidos como policiais, deram uma falsa batida no armazém usado pelo chefão irlandês, Bugs Moran (sucessor de Dean O'Banion). Sete pessoas ali presentes, acreditando ser um procedimento policial, se renderam sem oferecer resistência; foram alinhados contra uma parede, e então metralhados. A imprensa divulgou fotos dos mortos, chocando a sociedade de tal maneira que Capone foi enfim formalmente acusado de violar as leis de proibição ao álcool - ele escapou do julgamento dizendo que não se sentia bem para comparecer ao tribunal na ocasião (semanas antes, ele participara da Conferência de Atlantic City entre líderes de famílias de mafiosos de todo o país, para arbitrar disputas e decidir regras de conduta entre gangues rivais, bem como as maneiras como deveriam conduzir suas relações com o poder público; semelhante reunião aconteceria novamente em Havana, em 1946, para discutir meios de legalizar seus negócios). No entanto, mesmo irrigando uma rede de corrupção, a opinião pública e a sua relação com a imprensa - que o declararia, em 1931, "Inimigo Público Número 1" - jamais seria a mesma.

Enquanto isso, Eliot Ness, jovem economista que trabalhava como investigador para o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, e natural de Chicago, foi escolhido para organizar uma força-tarefa para levantar as responsabilidades de Al Capone nos crimes de evasão de divisas e violação das leis de proibição. Fazendo um levantamento meticuloso entre os oficiais da polícia de Chicago, ele escolheu 11 homens que seguramente não receberam propina de Capone - "Os Intocáveis". Apesar de engenhosos esforços para encontrar relações de Capone com o crime organizado, ele finalmente conseguiu levá-lo a julgamento apenas por evasão fiscal.

Depois de vários julgamentos entre 1929 e 1932 que foram anulados ou em que fora absolvido, Al Capone foi considerado culpado de 5 das 22 acusações de sonegação (em parte porque seus advogados insistiam na tese espúria de que Capone era desprovido de bens e posses devido a pesadas perdas no jogo), e condenado a 11 anos de prisão. Sifilítico desde a juventude, seu estado mental se deteriorou rapidamente na cadeia. Ficou preso na Penitenciária Federal de Atlanta, em Alcatraz e em Terminal Island. Ele foi solto em 1939 e imediatamente internado para tratamento da demência associada à sífilis em Baltimore. Passou os últimos anos recluso na sua mansão em Palm Island, Flórida. Morreu após um infarto em 25 de janeiro de 1947. Apenas anos após sua morte, Al Capone foi responsabilizado por atividades criminosas em Chicago, incluindo contrabando e assassinato (pelo menos 33 pessoas foram mortas sob suas ordens).

A prisão de Capone, se não levou ao fim da máfia de Chicago, a fez operar de maneira muito mais discreta, ainda que com a complacência do poder público local que dela ainda se abastecia. Com a retomada do comércio legal de bebidas alcoólicas, os chefões passaram a apelar para grandes esquemas de lavagem de dinheiro usando cassinos e remessas de dinheiro ao exterior sob empresas de fachada (algumas gangues menores optaram pelo tráfico de drogas, que os chefões da máfia haviam de maneira geral proibido em Atlantic City). No entanto, um dos capangas mais próximos a Capone, Tony Accardo (que era conhecido no meio pelo uso do taco de baseball como arma de preferência - "Joe Batters", o "João do Taco" - e embora compartilhemos do sobrenome, ele não seja meu parente) continuou reinando na cidade até início dos anos 1960, e morreu em 1992 com grande parte da sua fortuna perfeitamente legalizada.

Eliot Ness morreu em decorrência do alcoolismo (ironicamente) em 1957, mas chegou a publicar uma autobiografia, intitulada Os Intocáveis, onde o clímax é a investigação e condenação de Al Capone. Sua história seria adaptada em uma série homônima de TV entre 1959 e 1963, e em um filme em 1987 dirigido por Brian de Palma, com atuação memorável de Robert de Niro (que vivera um jovem Vito Corleone em ascenção no filme O Poderoso Chefão II) como Al Capone.