quarta-feira, 8 de março de 2017

Baronesa do ar

Em 8 de março de 1910, antes desta data ser usada para comemorar o Dia Internacional da Mulher, Elise Raymonde Deroche, conhecida também como "Baronesa de Laroche", se tornou a primeira mulher a receber uma licença para pilotar aviões.

Elise Raymonde Deroche nasceu em 1882 em Paris, filha de um encanador. Criança inquieta, brincava com meninos e praticava esportes. Conforme crescia, seu interesse migrava para veículos a motor, especialmente motocicletas. Aventurou-se brevemente como atriz, conheceu algumas figuras famosas da época. Dizia-se ter um charme arrebatador que lhe abria portas.

Na virada do século, Paris vivia um período de efervescência no campo da mecânica e da engenharia: como forma de incentivo, ricaços locais e associações promoviam competições e distribuíam prêmios para engenheiros que demonstrassem publicamente, com sucesso, suas invenções. Balões dirigíveis produziam espetáculos muito populares, e em 1906, o vôo do 14-Bis - a primeira aeronave mais pesada que o ar a decolar, realizar um voo controlado e pousar, mesmo que atabalhoadamente, por seus próprios meios - construído e pilotado por Alberto Santos Dumont causou enorme impressão. Quase imediatamente engenheiros locais e estrangeiros começaram a apresentar suas próprias versões da máquina voadora, tudo coberto com grande entusiasmo pela imprensa.

Deroche acompanhava tudo com enorme curiosidade, mas só veio a presenciar um voo de verdade quando foi assistir a uma exibição de Wilbur Wright (um dos irmãos Wright, que criaram uma aeronave impulsionada por uma catapulta antes do 14-Bis). Wright permaneceu em Paris por algumas semanas e realizou cerca de 120 demonstrações públicas com seus aviões. Em maio daquele ano uma certa senhorita P. Van Pottelberghe se tornou a primeira mulher a voar em um avião, na Bélgica (como passageira). Na França, um mês e meio depois, foi a vez de Thérèse Peltier voar numa aeronave construída pelo engenheiro Charles Voisin, num voo que durou 30 minutos pilotado pelo escultor Leon Delagrange. Peltier iria além e se tornaria a primeira mulher a pilotar um avião (por 200 metros numa base militar em Turim), e chegara a se inscrever para um prêmio oferecido por Delagrange para a primeira mulher que voasse por mais de 1 quilômetro em voo solo, mas a morte do amigo em um acidente a fez desistir da aviação para sempre.

Porém, as portas estavam abertas. Em 1909, Elise (que também conhecia Delagrange, que teria sido o pai de seu filho André) entrou em contato com Charles Voisin e pediu que a ensinasse a pilotar. Sua iniciativa e jovialidade (à época tinha 21 anos) deve ter encantado Voisin, pois seu irmão Gabriel escrevera que "meu irmão estava inteiramente aos seus pés".

Elise foi até a oficina dos irmãos Voisin em Chalons, a leste de Paris. Ali, um dos mecânicos que atuava como instrutor, um certo senhor Chateau, a orientava enquanto ela taxiava um dos modelos de Voisin pela pista, e depois de alguns minutos (contra a orientação de Voisin), ela acelerou e levantou voo, sobrevoando uma distância de quase 300 metros. No dia seguinte, ela deu duas voltas sobre o campo de pouso de Chalons, sobrevoando 6 quilômetros, manobrando nas curvas com facilidade apesar dos ventos. Como o voo anterior de Thérèse Peltier não fora registrado na imprensa, o feito de Deroche foi publicado na França e na Inglaterra como o primeiro voo pilotado por uma mulher (a revista Flight de outubro de 1909 descreveu Elise como "a primeira aviadora". A revista também a chamou de "baronesa" sem qualquer motivo).

Elise (que naquela altura se apresentava publicamente como Raymonde de Laroche) sofreu uma queda em janeiro de 1910 quando a cauda do seu avião resvalou em uma árvore enquanto descia para a aterrissagem. Como a altitude era baixa, e as velocidades atingidas não eram muito altas, ela escapou com uma concussão e uma fratura no braço. Mas se recuperara, estava de novo no controle de uma aeronave em exibição em Heliópolis, no Egito, quando a Federação Aeronáutica Internacional lhe concedeu a licença número 36.

Depois do Egito, ela voou em São Petersburgo, onde a imprensa russa a apresentava como "Baronesa de Laroche" (ela incorporaria o título fictício pelo resto da vida). O parque de aviação era pequeno, e havia pouco espaço de manobra, já que os aviões não atingiam grandes alturas. Ela sobrevoou árvores, telhados, e teve que atravessar a fumaça negra das fábricas no entorno, e, ao se aproximar para o pouso, desligou o motor a 100 metros de altura, planando até o solo. O próprio Czar Nicolau II veio cumprimentá-la e perguntar como se sentia. "Com o coração na boca". Em outra exibição em Budapeste ela voara por 37 minutos, desviando de chaminés e esgrimando as correntes de ar geradas pelo calor das fábricas.

Voar naqueles primeiros anos era incrivelmente perigoso porque as máquinas eram tudo, menos seguras. Motivo pelo qual os pilotos eram vistos como heróis. A "Baronesa" se acidentou uma segunda vez numa exibição em Rouen ainda em 1910, quando uma forte corrente a obrigou a apontar o nariz para baixo, provocando a queda (ela teve a presença de espírito de manter o motor funcionando, porque se tivesse perdido velocidade, teria caído sobre o público). Ela teve múltiplas fraturas, mas voltou ao ar em alguns meses. Mais um acidente (desta vez, de carro) em 1912 causou mais ferimentos, mas Charles Voisin, que dirigia o veículo, faleceu. Não obstante, Elise voltou aos ares, conquistando um prêmio do Aeroclube da França por fazer um voo solo ininterrupto de 4 horas.

Em 1914 veio a Primeira Guerra Mundial. A Força Aérea Francesa recusou a participação de mulheres em combate, e, de fato, as poucas mulheres habilitadas a pilotar foram obrigadas a ficar em terra, mesmo para voos de demonstração, porque o ar tornara-se "muito perigoso". De forma que de Laroche contribuiu com o esforço de guerra como motorista, levando oficiais para as frentes de combate, não raro tendo que evitar os ataques de artilharia alemães. A guerra levaria a enormes avanços na aviação. Em 1919, com o fim da guerra e liberada do serviço militar, a Baronesa voltou aos ares, pilotando máquinas muito mais complexas e avançadas do que as que tinha aprendido a pilotar. Estimulada a explorar este novo potencial, em junho daquele ano ela estabeleceu dois recordes para mulheres, um de altitude máxima (4800 metros) e outro de distância percorrida (323 quilômetros).

Em 18 de julho ela se ofereceu para ser piloto de testes de um novo protótipo construído por René Caudron em Le Crotoy. Era uma aeronave de dois lugares, mas não existe informação concreta se ela estava no comando ou copilotando. De qualquer forma, na aproximação do pouso, o avião perdeu sustentação e desceu em parafuso em direção ao solo. Raymonde de Laroche morreu na hora, e o seu colega na ocasião a caminho do hospital. Seu corpo está sepultado no cemitério-parque Père Lachaise, em Paris. No aeroporto de Paris-Le Bourget, usado hoje por aeronaves de pequeno porte (onde Charles Lindbergh encerrou sua célebre travessia do Atlântico em 1927), há uma estátua em sua homenagem.

Embora mulheres intrépidas como a Baronesa de Laroche e a americana Amelia Earhart tenham se tornado celebridades da aviação do seu tempo, as mulheres nunca conquistaram muito espaço neste ramo. Em parte, talvez, por causa de restrições militares às mulheres piloto, como a que impediu a atuação de Laroche na Primeira Guerra - os "ases", todos homens, seriam heróis e se tornariam modelos para a profissão. Mesmo hoje, a aviação comercial não se apresenta como uma "coisa de mulher". Em pleno 2016, sete passageiros de um voo entre Miami e Buenos Aires se recusaram a embarcar quando souberam que a comandante e sua copiloto seriam mulheres. No Brasil, atualmente, existem apenas 197 mulheres entre quase 14 mil pilotos habilitados.

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