terça-feira, 21 de novembro de 2017

Timur na Geórgia

Em 21 de novembro de 1386, o exército liderado por Timur, o Coxo, tomou a capital georgiana de Tblisi e aprisionou seu rei, Bagrat V. O que poderia ter decretado o fim do reino independente da Geórgia diante do conquistador turco-mongol acabaria sendo, na verdade, o primeiro capítulo de uma longa guerra de resistência desse pequeno reino montanhoso, com um resultado improvável.

Timur era conhecido como "o Coxo" porque teria sido alvejado na juventude por uma flecha na coxa direita, deixando-o manco; outra flecha, na mesma ocasião, lhe decepou dois dedos da mão direita (alternativamente conhecido como Tamerlão, do persa "Temur Lang", "Timur, o Coxo"). Ele era um khan turco-mongol que reclamava para si a descendência direta de Genghis Khan (pelo menos uma descendência "espiritual", já que a sua linhagem era tão obscura na época como é agora). Seguindo a tradição de seu povo de eleger seus líderes entre os guerreiros mais capazes em batalha, Timur ganhou proeminência comandando raids entre as tribos turcas da Ásia Central sob jurisdição do Khanato Chagatai (este sim um império descendente direto das conquistas de Genghis Khan na Pérsia) contra búlgaros, kwarízmidas e outros povos rebeldes ou não ainda subjugados. A atuação de Timur teria sido tão decisiva que seus seguidores o teriam elevado acima dos khans de Chagatai, e sua generosidade com o povo sob seu comando o teriam consagrado como um favorito acima das autoridades formais, incluindo seu irmão e rival Husain. Nomeando a si mesmo "protetor" do khan chagatai Suyurghatmish, Timur ganhou a legitimidade que precisava para efetivamente governar seu próprio império, tomando para si a promessa de restaurar o fragmentado império mongol.

Novamente, a generosidade que legava ao seu povo o tornou um monarca celebrado, ao menos no centro-norte do Irã, Turquestão e Uzbequistão, núcleo de seu império, como um herói (é oficialmente um herói nacional no Uzbequistão). De fato, aquela região da Ásia viveu seu apogeu cultural sob Timur. Das cidades e reinos derrotados, ele ordenava expressamente que seus artesãos, arquitetos, engenheiros, poetas, músicos e artistas fossem poupados de qualquer violência, e conduzidos à cidade de Samarcanda, no Uzbequistão, capital do novo império timurida. Seu trabalho (compulsório) tornou aquela cidade uma das mais belas do mundo por gerações (e até hoje, muitas dessas obras continuam de pé e em uso). Timur cercava-se de belezas trazidas como butim, ou produzidas por artistas cativos, e não recusava ao pedido de quem quer que fosse de compartilhar desses tesouros. Também era um ávido jogador de xadrez, que usava para aprimorar seu pensamento tático, popularizando este jogo na Ásia e na Europa (embaixadores europeus e viajantes eram convidados a jogar com ele), chegando até a fixar as regras de uma variante, o xadrez de Tamerlão, disputado num tabuleiro maior e com maior variedade de peças, refletindo a diversidade de seu exército multi-étnico e do que ele encontrava entre seus inimigos em batalha.

Esta generosidade e apreço pelas finas artes contrastava com os horrores impostos aos seus conquistados. Em 1387 a cidade persa de Isfahan se rendeu sem luta, e Timur a tratou com benevolência. Mas meses depois, a cidade se rebelou contra os novos impostos, e o imperador ordenou o massacre total da sua população. Algo em torno de 100 a 200 mil pessoas foram mortas, e um cronista contemporâneo contou 28 torres erguidas com 1500 crânios humanos cada uma. Em outra ocasião, na Índia, seus homens construíram uma pirâmide com 70 mil crânios. O terror era um instrumento de persuasão com a qual Timur pretendia conquistar seus vizinhos com menor esforço, e quando havia resistência, era preciso agir com impiedade para manter essa aura em torno de si. Uma opção controversa, que custou 17 milhões de vidas (cerca de 5% da população asiática do último quarto do século XIV) durante as suas campanhas.

Em 1385, o Khanato da Horda Dourada, vasto remanescente do império mongol centrado na Rússia, passou a atacar o norte do Irã, atravessando o Cáucaso. Havia muito a Horda Dourada havia se desconectado dos outros setores do antigo império, nutrindo desavenças mesmo com os turco-mongóis convertidos ao islã (sua religião oficial) na Pérsia. Timur, que seria exaltado por ter conseguido unificar a Grande Pérsia muçulmana (estendendo suas fronteiras do Rio Indo até a Mesopotâmia, área de tradicional influência cultural persa), também era visto mais como um rival e uma ameaça às fronteiras do que como um irmão de fé pelo khan mongol Tokhtamysh (que recebera apoio de Timur na ocasião da sucessão ao trono). Timuridas (que incluía mongóis, turcos, turcomanos, bactrianos, transoxanos, e diversas tribos turcas, mongóis e de matriz iraniana) e mongóis já haviam se enfrentado numa campanha de Timur à estepe russa. Como resposta ao avanço mongol pelo Cáucaso, os pequenos reinos situados entre as fronteiras dos dois impérios foram tomados um a um por Tamerlão, com pouca resistência, enquanto abria caminho para a Horda Dourada. E como todas as vezes que uma força vinda do Oriente Médio ou da Pérsia tentou invadir a Rússia pelo Cáucaso, ele encontrou a Geórgia pela frente.

A Geórgia é um país localizado entre as escarpadas montanhas do Cáucaso, cordilheira mais alta da Europa considerada sua fronteira sudeste com a Ásia, espraiando-se pelos seus vales até as margens orientais do Mar Negro. A dificuldade de se conquistar pela via militar e se estabelecer um sistema de governo integrado a um império estrangeiro, devido às dificuldades apresentadas pela natureza, manteve os georgianos no seu lugar, cultivando língua, escrita, cultura e religião que se mantiveram como bastiões quase imutáveis ao longo de milênios a despeito de gregos, romanos, persas, árabes, turcos e mongóis, no meio de uma das zonas historicamente mais dinâmicas do mundo.

A expedição de Timur, com o objetivo de pressionar a fronteira da Horda Dourada e bloquear sua passagem pelo Cáucaso, chegou ao sul da Geórgia no final de 1385, atacando a província de Samtskhe. O exército timurida arrasou o sul do país antes de marchar para a capital Tblisi. O rei Bagrat V, tido pelos seus contemporâneos como um administrador justo e um "soldado perfeito" (lembrado localmente como "O Grande"), optou por fortificar a cidade ao invés de encontrar os invasores em campo. Mas Timur, que havia decretado uma Jihad (Guerra Santa) contra a Geórgia Cristã, foi implacável. Em 21 de novembro de 1386, prevendo uma derrota iminente e as consequências dela para a capital, Bagrat se entregou a Timur. Sob a ponta de uma espada, o rei georgiano se converteu ao islã. Um cronista armênio da época, Tomás de Metsoph, exaltou a artimanha de Bagrat em usar a apostasia como forma de ganhar a confiança de Timur - essa visão tinha fundamento, já que Timur designara de 12 a 20 mil soldados para a guarda pessoal e os deixado às ordens de Bagrat.

Tblisi caiu, mas Timur não conseguiu assegurar o domínio sobre a Geórgia. Por toda a parte, bastiões em encostas de difícil acesso fustigavam a passagem dos timuridas e ameaçavam suas linhas de suprimentos. Mais preocupado com outras frentes, Timur recuou. Ele ordenara que Bagrat, agora um suposto aliado e irmão de fé, marchasse com seus soldados emprestados de volta a Tblisi para retomar o trono, ocupado provisoriamente pelo seu filho Jorge VII. Pai e filho, no entanto, entraram em negociações secretas, e Bagrat conduziu seus homens diretamente para uma emboscada. Com a guarda aniquilada, o filho resgatara o pai. Ambos se apressaram em antecipar a vingança de Timur, evacuando a população civil no sul do país, e organizando as defesas nas montanhas.

De fato Timur voltou em 1387, mas foi forçado a retornar de mãos vazias quando a Horda Dourada voltou a atacar o Irã. A próxima investida seria em 1394, quando Bagrat V já estava morto e o país era governado por Jorge. Desta vez, Timur em pessoa comandou a devastação das comunidades montanhesas no vale de Aragvi, ao norte de Tblisi, enquanto seus generais varriam o sul. Jorge VII escapou devido a mais um ataque providencial de Tokhtamysh ao Irã.

Em 1395, Jorge conseguiu o feito de vencer em batalha os timuridas liderados por Miran Shah, filho de Timur, durante o cerco à fortaleza de Alindjak, capturando um príncipe mongol. Em 1399, Timur retaliou mais uma vez, causando o máximo de destruição possível ao país, sem contudo tomar definitivamente qualquer posição importante. Em 1400 Timur exigiu que o tal príncipe fosse devolvido. Desta vez, Jorge foi derrotado em batalha, e na perseguição que se seguiu, atraiu desastradamente Timur para o interior do país, conseguindo despistá-lo em uma floresta. Mas, furioso, Timur sistematicamente devastou e pilhou tudo que pôde por meses, escravizando 60 mil georgianos, mas ainda assim não conseguiu firmar sua autoridade.

Em 1401, Jorge VII e Timur chegaram a um acordo. Os timuridas estavam em guerra com os turcos otomanos e era interessante assegurar a estabilidade na região até, pelo menos, poderem tomar alguma ação decisiva contra a Geórgia. Com a vitória em 1402, Timur usou como pretexto para deflagrar uma oitava campanha contra a Geórgia o fato do rei local não ter lhe oferecido as devidas congratulações. Tamerlão invadiu o país mais uma vez, mas Jorge recuou até a Abkhazia, região montanhosa no extremo noroeste do país. Cerca de 700 aldeias, vilas e cidades foram arrasadas e seus habitantes mortos. A essa altura, a Geórgia já não tinha muito mais o que oferecer em pilhagens (ou mesmo em impostos a arrecadar), e em algum momento, os conselheiros de Timur sugeriram oferecer o perdão a Jorge VII, em troca do pagamento de tributos (com o país continuamente arrasado pelos timuridas, os tributos incluíam termos muito específicos sabidamente ao alcance do rei, como um certo rubi que pesava mais de 80 gramas). No ato, Timur reconheceu a independência da Geórgia e seu status como uma nação cristã. Porém, antes de retornar à Ásia, ele ainda passou por Tblisi e colocou no chão todos os templos cristãos que encontrou de pé.

Timur morreu em 1405, durante uma campanha infrutífera contra a dinastia Ming, na China. Sua morte levou seus netos a uma guerra civil pela sucessão, e a confusão que se seguiu deu brecha para que forças internas (de nativos iranianos, afegãos, turcomanos, etc.) se firmassem e levassem à fragmentação do império. Não fosse a linhagem de um dos seus netos resultar na dinastia Mughal no norte da Índia algumas gerações mais tarde, e o seu atual status de herói nacional uzbeque (uma estátua sua foi erigida no local onde, em tempos soviéticos, ficava uma estátua de Karl Marx, em Tashkent), o legado de Timur teria virado poeira na História. Já a Geórgia aguentou o quanto pôde, mas os ataques constantes fragilizaram o país economicamente e demograficamente, e desde 1401 a região central de Imereti já havia se declarado independente (pelo próprio irmão de Jorge VII, Constantino, que era simpático a Timur), e o sudoeste do país entregue a um dos netos de Timur no último tratado firmado. Jorge VII terminou seus dias governando apenas uma fração do reino que herdara do pai. De uma forma ou de outra, a Geórgia sobreviveria como país independente até 1810, quando foi anexada pelo império russo, recuperando sua soberania, já como república, em 1991.

P.S.: Uma lenda ficou muito popular no século XX a respeito de Timur. Antes de morrer, ele teria dito o que se tornaria seu epitáfio: "Quando eu me levantar da tumba, o mundo tremerá". Em 1941, Joseph Stalin enviou o arqueólogo Milhail Gerasimov (um célebre especialista na reconstrução facial de figuras históricas) a Samarcanda para resgatar os restos de Timur, enterrados no seu mausoléu de Gur-e-Amir. Os ossos foram encontrados e examinados, e até aí as coisas foram devidamente registradas por Gerasimov e sua equipe, mas a lenda acrescenta que, além do suposto epitáfio, dentro da tumba ainda haveria uma segunda advertência: "Aquele que abrir minha tumba lançará um invasor mais terrível do que eu". Isto teria se passado no dia 19 de junho. No dia 21, Gerasimov e equipe teriam exumado o crânio. No dia 22, rompendo inesperadamente o pacto de não agressão com os soviéticos, a Alemanha Nazista deflagrou a Operação Barbarossa, campanha com objetivo de subjugar a Rússia comunista que resultaria no cenário mais sangrento da Segunda Guerra Mundial. Em novembro de 1942, os nazistas estrangulavam os russos na Batalha de Stalingrado, quando os arqueólogos sepultaram novamente os restos de Timur, seguindo, inclusive, os rituais islâmicos apropriados. Nos dias que se seguiram a maré virou para os russos, e três meses depois os alemães seriam derrotados em Stalingrado.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Colisão de dois mundos

Em 8 de novembro de 1519, o conquistador espanhol Hernan Cortés chegou a Tenochtitlán para se encontrar com o imperador azteca Montezuma II.

A chegada de Cortés a Tenotchitlán é o evento mais importante do processo de ocupação e controle da Espanha sobre a Mesoamérica. A civilização azteca, que se espalhava sobre os territórios de povos "aliados" (a maioria submetidos à força) entre o centro e o sul do México, foi a primeira das civilizações mesoamericanas a tombar diante do poderio bélico da Espanha, e essa região do mundo (entre o México e o norte do Chile), com suas riquezas em metais preciosos, sua infraestrutura e organização social, transformaria aquele país europeu em uma super potência por quase 200 anos.

O encontro de Cortés e Montezuma não aconteceu ao acaso. Desde que a expedição de Cortés (com 630 homens em 11 navios) foi avistada na costa de Yucatán, espiões aztecas mantiveram seu imperador informado de tudo que acontecia. A expedição espanhola, após fundar o assentamento que se tornaria a cidade de Veracruz (neste momento, Cortés cortou relações com seu superior, o governador das Índias Diego Velásquez de Cuellar, seu parente, porque era prerrogativa do governador a fundação de novas colônias; ali Cortés foi declarado um "amotinado" e, para evitar que seus homens debandassem diante da situação, mandou desmontarem seus navios) recebeu a visita de dois diplomatas aztecas. Os aztecas continuaram mantendo contado com os estrangeiros, trocando presentes e tecendo elogios (em um momento Cortés se virou a seus homens e disse, com a ajuda de um tradutor, que os nativos os consideravam como deuses). Os emissários, contudo, tentavam dissuadir os espanhóis de irem a Tenochtitlán, mas os presentes e os elogios eram interpretados como um convite. De qualquer forma eles entendiam que, para se aproximar de Montezuma, teria que ser pelos seus inimigos: eles ofereceram apoio a uma coalizão de tribos menores que resistiam à assimilação azteca, participando de algumas batalhas. Enquanto isso, Cortés enviava solicitações para uma audiência com Montezuma, o que ele insistentemente recusava.

Hernán Cortés veio de uma família modesta na pequena vila de Medellin, sudoeste da Espanha. Estudou com um tio em Salamanca e trabalhou como notário. Com a descoberta da América por Cristóvão Colombo, o governo espanhol passou a patrocinar incursões para reconhecimento das novas terras, estabelecimento de relações com seus habitantes, e a sondagem de suas riquezas, usando assentamentos já existentes como bases de operações e a fundação de novos mais adiante (expedições conhecidas como "entradas"). Cortés, que não possuía bens ou terras de que pudesse usufruir, foi atraído para este tipo de empresa - ele também teria circulado pelos portos de Sevilha, Cádiz, e outros, ouvindo histórias de marinheiros sobre as possibilidades e riquezas nas novas terras. Aos 18 anos conseguiu passagem para Hispaniola (ilha onde estão Haiti e República Dominicana), possivelmente graças a Velásquez, que depois lhe concedeu uma "encomienda" (uma propriedade e um grupo de nativos empregados em trabalhos forçados). Cortés permaneceu 15 anos nas Índias Ocidentais, ocupando cargos públicos nas colônias, participando de batalhas contra nativos, e administrando suas novas propriedades. Mas expedições espanholas já haviam provado que a América guardava muito além do que as pequenas ilhas de Hispaniola e Cuba (de cuja capital era prefeito). Seu biógrafo o descrevia como "impiedoso" e "traiçoeiro". De fato, seu conhecimento das leis adquirido enquanto notário o fizeram romper com o governador das Índias assim que viu a possibilidade de fundar uma colônia por conta própria, submetendo-se diretamente ao rei Carlos I (o mesmo rei Carlos V do Sacro Império Romano, que herdara o trono espanhol), alegando que Velásquez agia em benefício próprio, não em prol da Coroa.

As fontes sobre Montezuma são vagas, quase todas registradas sob ponto de vista dos espanhóis. Bernal Díaz, companheiro de Cortés, o descrevia como um homem de boa constituição, pele clara, barba rala e estreita, senhor de um harém de concubinas e duas esposas, e cercado por uma corte de dois mil nobres que habitavam seu palácio. O Império Azteca, costurado à base de força e alianças de conveniência, estava em seu apogeu. Além de manter seus aliados sob controle, os aztecas precisavam manter um exército constantemente mobilizado para conter os ataques de uma confederação de Nahuas, Mixtecas e Zapotecas, que por 75 anos resistiram à assimilação. Estas mesmas a quem Cortés oferecia ajuda.

Os cronistas espanhóis sugeriram que Montezuma nutria interesse pela expedição de Cortés por conta de uma suposta crença no retorno do deus Quetzalcoatl (que teria nascido e depois navegado para o leste em anos que corresponderiam, nos ciclos solares do calendário azteca, ao ano da expedição, 1519), e que Cortés seria este deus incarnado. A influência deste mito nos acontecimentos que se seguiram é muito questionada atualmente no meio acadêmico porque são muito escassas as fontes nativas a respeito da sua importância, mas continua propagado como o motivo para a atitude desconcertantemente afável de Montezuma diante daqueles estrangeiros. Se a religião, que era um pilar central na sociedade azteca, teve algum papel naquele cenário, foi o de servir como argamassa para a coesão dos diferentes povos que constituíam o império azteca - bem como um dos fatores que uniam seus inimigos.

Quando Montezuma convocou Cortés para uma audiência, os espanhóis tinham um grande exército engordado por milhares de guerreiros nativos. Ele havia acabado de atacar a cidade de Cholula (a segunda maior do centro do México, sob jurisdição azteca), onde estava hospedado, massacrando 3 mil pessoas e incendiando templos e palácios para demonstrar sua força e intimidar Montezuma. Cortés levou todo o seu exército para a capital azteca, temendo uma armadilha.

Contudo, ao entrar na cidade - construída sobre uma ilha no meio de um lago, conectada às terras no entorno por pontes - foi recebido calorosamente por Montezuma em pessoa e os reis das principais cidades aliadas, mas não foi permitido que Cortés o tocasse. Meio desconcertado, Cortés trocou presentes com o anfitrião. Montezuma o presenteou com um calendário em forma de disco de ouro, e outro de prata, que Cortés depois derreteu. Ele e os outros espanhóis foram cobertos com jóias de ouro e pedras preciosas, e adornos com penas. Depois, já no palácio que pertencera a Axáyacatl, pai do imperador azteca, preparado para receber Cortés como hóspede, Montezuma discursou diante da corte e do seu convidado, dizendo:

"Tu graciosamente desceste à terra, tu graciosamente te aproximaste de tua água, tu chegaste à tua porta, teu trono, que eu brevemente guardei para ti, eu que o guardava para ti. (...) Tu graciosamente chegaste, tu conheceste a dor, tu conheceste o cansaço, agora vem à terra, entra em teu palácio, descansa teus membros"

Montezuma chegou a oferecer o trono a Cortés. O espanhol acreditou até o fim que as palavras e atitudes de Montezuma eram literais, ou seja, que o monarca, diante da força dos espanhóis, ou influenciado por superstições, havia entregue de boa vontade seu império ao rei Carlos V, a quem representava. Todo o movimento de Cortés depois disso teve como base e justificativa esta interpretação. Os cronistas espanhóis, confusos com a "ingenuidade" de Montezuma, tentaram associá-la à crença de que Cortés era Quetzalcoatl, ou ao pânico que a visão de homens em armaduras ou sobre cavalos teria causado (demonstrações da artilharia espanhola haviam sido fúteis no passado para impressionar os chefes nativos).

Porém, é mais provável que a atitude do rei azteca de oferecer seu trono ao invasor estrangeiro seria uma forma de constrangê-lo pela sua audácia, ao mesmo tempo em que demonstrava sua magnanimidade. Pois entre aztecas e seus vizinhos, a derrubada de um chefe deveria acontecer pela demonstração de força superior em combate. A guerra entre os povos mexicanos era ritualizada, a ponto de prisioneiros capturados em batalha serem mantidos cativos para serem executados em sacrifícios cerimoniais, destino que aceitavam com resignação (quando qualquer outra possibilidade de fuga ou rebelião não existia). Sob esta ótica, Montezuma ofereceu o trono a Cortés esperando que isso ferisse a sua honra, como alguém que esfrega o focinho de um cão em sua própria urina. Os espanhóis nunca perceberam esta sutileza.

De fato, Montezuma não tinha a real intenção de entregar tudo que possuía. Quando Cortés, mais tarde naquele mesmo dia, solicitou a Montezuma erigir uma cruz no alto de um templo em homenagem à Virgem Maria, o azteca teria ficado furioso e ordenado o assassinato de 7 espanhóis que haviam ficado no litoral. Quando soube, Cortés e cinco de seus capitães ordenaram que Montezuma fosse com eles, sem escândalos, ou seria morto. Entre novembro de 1519 e maio de 1520, Montezuma foi mantido cativo em Axáyacatl, embora ainda atuasse formalmente como imperador. Enquanto isso, os espanhóis saqueavam os tesouros de Tenochtitlán e cidades próximas e impunham punições a militares e agentes públicos aztecas que os desacatassem.

Em maio de 1520, o governador das Índias, o mesmo Velásquez, enviou uma expedição para localizar e capturar Cortés, o que fez o caudilho espanhol deixar Tenochtitlán com o grosso dos seus homens, mantendo uma guarnição na cidade. Então, o seu segundo em comando, Pedro Alvarado, ordenou um massacre durante as celebrações do Toxcatl, uma das principais festas religiosas locais, justificando-se de ter impedido o sacrifício humano em um ritual pagão. A fúria causada nas principais cidades teria levado ao assassinato de Montezuma (seja pelos espanhóis, seja pelos aztecas, ambos o teriam feito por causa da sua incapacidade de intervenção de um lado ou de outro). Depois de fugirem do tumulto que se seguiu (perdendo grande parte do tesouro que haviam roubado até então, e vários companheiros que ficaram na retaguarda), os homens de Cortés se reagruparam, e, com ajuda dos tlaxcaltecas, destruíram Tenochtitlán em janeiro de 1521. A linhagem de Montezuma foi absorvida pelos conquistadores - o filho Cuitláhuac morreu de sarampo, o primo Cuauhtemoc torturado com os pés queimados e executado (por não saber onde o tesouro perdido pelos espanhóis estava escondido), e sua esposa e filha de Montezuma, Techichpotzin, batizada Isabel e tomada como esposa por um dos homens de Cortés. Sem liderança, a confederação que compunha o império azteca aos poucos foi absorvida pela administração espanhola sob Cortés.

Os espanhóis governaram o embrião do que seria o México com o auxílio dos chefes das cidades locais, que mantinham seus cargos e privilégios determinados pelo imperador azteca. Já os plebeus corriam o risco de serem escravizados e forçados a trabalhar para os europeus. A Espanha demorou 60 anos para consolidar a conquista do México, anexando impérios e territórios com suas tribos uma a uma - os maias em Yucatán seguiriam resistindo por quase 170 anos, cedendo então apenas por causa de epidemias que eliminaram metade da população nativa. A língua nahuatl (a língua franca do Vale do México, com a qual os freis franciscanos registraram a história da civilização azteca enquanto ela desaparecia) e idiomas relacionados continuam em uso no interior do país até hoje, com 1,7 milhão de falantes atualmente. Os descendentes diretos de Montezuma, desde 1627, recebem do rei da Espanha o título de Duque de Montezuma de Tultengo. Sobre as ruínas de Tenochtitlán e arredores foi erguida a atual Cidade do México.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Abalo nas fundações

Em 1 de novembro de 1755, um terremoto seguido de tsunami (e um incêndio só controlado 6 dias depois) devastou a capital portuguesa de Lisboa, causando dezenas de milhares de mortes e a destruição da maior parte da cidade. Este evento geológico seria o epicentro de mudanças radicais, desde a reformulação da estrutura urbana de Lisboa, à vida política portuguesa, e levando as principais mentes da Europa a questionarem o próprio mundo em que viviam.

Portugal está próximo à fronteira entre duas placas tectônicas, a Africana e a Eurasiana, fronteira esta que corre a partir da Dorsal Atlântica (ponto onde a atividade vulcânica fez emergir do oceano o arquipélago dos Açores) e atravessa o Mediterrâneo. Assim como Itália, Grécia, Turquia (onde a história recente registra sismos bastante destrutivos), é uma região suscetível a tremores de terra mais ou menos violentos. O primeiro deles a ser registrado naquela área ocorreu em 60 a.C., afetando a costa. Um terremoto na região de Lisboa, em 1531, seguido de um tsunami que resultou na morte de 30 mil pessoas provocou um recuo do projeto português de implantar colônias economicamente funcionais na América recém-descoberta enquanto investimentos eram direcionados para a reconstrução da cidade (religiosos responsabilizaram os cristãos-novos, judeus recém convertidos, pelo desastre). A violência do sismo de 1755 seria capaz de apagar da memória tamanha tragédia, a tal ponto que aquele só voltaria a ser estudado com a redescoberta de documentos de época no século XX.

Era uma manhã ensolarada do Dia de Todos os Santos. Os lisboetas acordaram cedo, e tomaram as ruas, em direção às igrejas, para as missas e festejos. A Lisboa de 1755 era uma Lisboa medieval que se expandira lentamente nos séculos anteriores a partir do seu núcleo primitivo às margens do Tejo em direção ao norte e ao oeste, com uma estrutura urbanística confusa que prezava a utilização máxima dos espaços para habitação. O resultado eram ruas estreitas e muradas por edifícios e casas, palácios e, particularmente, igrejas, que constituíam o centro de cada novo núcleo urbano agregado ao plano urbanístico anterior. Haviam poucos largos e praças, e as vias ficavam constantemente congestionadas por pessoas, animais, e carruagens. Naquela manhã, a maior parte de uma população estimada em 300 mil habitantes estava apertada entre paredes, acorrendo às suas paróquias.

Às 9:30 um violento tremor de terra (próximo de 9 de magnitude de momento, com epicentro no Atlântico), com pelo menos 3 minutos de duração (em outros lugares de Portugal, a terra tremeu por até duas horas), surpreendeu a população. No primeiro momento, houve desabamentos. Pessoas em fuga desordenada pisoteavam-se, enquanto feridos pediam socorro. Houve relatos de furtos no meio da confusão. Nas igrejas que continuaram em pé, ouvia-se o canto de músicas sacras contrastando com o lamento dos fiéis. Alguns procuravam por seus parentes desgarrados, outros os iam buscar nos escombros. Fissuras de até 5 metros de largura abriram-se no chão, no centro da cidade. Boatos de que o antigo Castelo de São Jorge estava em chamas, e que seu armazém de pólvora poderia explodir, levaram as pessoas a se afastarem do local, que fica numa colina. O medo de desabamentos, incêndios e explosões conduziu a massa para o cais do porto. Os cais Sodré, São Paulo, e Terreiro do Paço (onde ficava o palácio real), para onde desembocavam as ruas principais, ficaram apinhados de gente.

Ali no cais, o povo assistiu, confuso, o mar retroceder. Rochas, pedras de antigas construções, destroços de navios e cargas perdidas estavam expostas. Um tsunami não surge como uma parede de água que se quebra como uma onda na praia, mas como uma invasão rápida e contínua de água em alta velocidade, subindo rapidamente de nível e arrastando tudo que há no caminho, então os lisboetas não puderam antever a onda de até 20 metros (no Algarve, mais ao sul, a onda pode ter chegado a 30 metros) que se aproximava do porto. Muitos pressentiram o perigo e guiaram sobreviventes para lugares altos, mas cerca de 900 pessoas foram subitamente arrastadas pela onda. O que havia ficado em pé nas partes mais baixas da cidade foi demolido pela onda. E o que a onda não derrubou estava prestes a ser consumido pelo fogo.

A infraestrutura da cidade foi perdida. As chamas consumiam as casas e igrejas sem que houvesse uma resposta organizada para detê-las, de maneira que os incêndios persistiram por 6 dias. Nesta fase, a grandiosa Casa de Ópera, inaugurada naquele ano, foi consumida, e também ardeu o Hospital Real de Todos os Santos (vitimando os pacientes internados). O acervo da biblioteca na Torre do Tombo foi salvo (a torre mesmo colapsou pouco depois), mas as bibliotecas dos dominicanos e franciscanos foram perdidas. Ao final daquela semana, 85% da cidade fora destruída, e até 90 mil pessoas pereceram apenas em Lisboa (as estimativas não são precisas para os demais lugares em Portugal; em Fez, no Marrocos, que passou pelo mesmo tremor e tsunami, morreram cerca de 10 mil).

O rei José I escapou porque suas filhas pediram para passar o feriado em Belém, próximo à cidade. A destruição que testemunhara também ali, e a que assistiu ao retornar à capital, criou no rei uma claustrofobia, a ponto dele viver o resto da vida em amplas tendas erguidas na colina da Ajuda (onde construiu-se depois o Palácio Real da Ajuda). O futuro Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, então ministro dos negócios estrangeiros, tomou para si o comando dos esforços para socorrer as vítimas, impedir novos acidentes, impor a lei e a ordem (para combater os saques, fez com que a cidade fosse patrulhada por trios compostos por um padre, um juiz, e um carrasco), e planejar a reconstrução da cidade. Para resolver o problema do que fazer com os mortos, ordenou que os corpos despedaçados fossem levados em barcaças e jogados no mar: "Deus lá no Céu saberá a que corpo pertencem". Questionado sobre a opção de refazer a parte baixa da cidade adotando ruas e avenidas largas, teria dito que "Ainda um dia as vão achar estreitas". O novo centro da cidade é conhecido até hoje como Baixa Pombalina. Sua atuação enérgica e objetiva lhe renderam a nomeação para o cargo de primeiro ministro, posição de que se aproveitou para promover uma reformulação de larga escala da capital e grandes reformas administrativas. Os altos custos foram cobertos com empréstimos à Inglaterra e um aumento de impostos sobre a colônia, atingindo de maneira mais dura a capitania de Minas Gerais, onde pelo menos duas insurreições tiveram que ser aplacadas por Pombal.

O engenheiro-mor Manuel da Maia conduziu a parte prática da reforma urbanística, que incluía o controle e fiscalização do governo à construção de novas edificações (inibindo as construções feitas pelos próprios moradores, e regulando a altura dos edifícios, e quanto de cada terreno deveria ser ocupado) e a adoção pioneira de métodos de construção anti-terremoto. Casas que ainda estivessem de pé e não estivessem conforme as novas normas deveriam ser demolidas. Grande parte das obras foi supervisionada pelo engenheiro húngaro Carlos Mardel, que assinou as grandiosas construções do Aqueduto das Águas Livres, do Palácio da Inquisição, e o Palácio do Marquês de Pombal.

As notícias de Lisboa chocaram a Europa. Na Inglaterra, na Áustria, na Alemanha, na França, na Itália, a devastação e a perda de vidas foram recebidas com horror. Lisboa era uma das principais capitais do catolicismo, se assim se poderia dizer: pontilhada de igrejas, com grande participação do clero na vida pública, e capital de um império colonial onde a questão religiosa era o pilar das novas sociedades. Entre muitos observadores, incluindo lisboetas, o fato do terremoto ter ocorrido no Dia de Todos os Santos, e ter devastado a cidade, especialmente as grandes catedrais não passou despercebido, e foi interpretado como uma punição divina. Filósofos contemporâneos foram além: Voltaire questionou a destruição de uma cidade católica e suas igrejas e a morte de tantos devotos em relação à noção de que o mundo seria regido o tempo todo por uma divindade fundamentalmente benevolente (ou de como um Deus bom permitiria a existência do mal, questão levantada anteriormente por Leibniz e Pope, que contudo defendiam que, seja como for, este é o melhor dos mundos). Jean-Jacques Rousseau (crítico dessa mesma ideia de Voltaire) atribuiu o grande número de fatalidades ao fato dos lisboetas viverem concentrados numa área urbana relativamente pequena, e usou este argumento para advogar um modo de vida mais naturalístico e menos urbano (um argumento na sua tese do "bom selvagem"). O corpo de ideias formuladas sobre as causas e consequências do terremoto de Lisboa deram musculatura ao Iluminismo.

O sedutor escritor veneziano Giacomo Casanova relatou ter sentido o tremor enquanto estava encarcerado no Piombi, a prisão que funcionava nos porões do Palácio do Doge, em Veneza. O tsnumai varreu os portos dos Açores e Madeira, atingiu da Finlândia ao Caribe, e chegou ao nordeste brasileiro: ondas de até 6 metros de altura invadiram o litoral nordestino e alcançaram quase 5 quilômetros terra adentro (um relato da capitania de Pernambuco nota o desaparecimento de uma mulher e uma criança perto da cidade de Tamandaré; em Salvador, a água chegou à base do cruzeiro situado em frente à Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, 3 metros acima do atual nível do mar, numa praia voltada para o interior da Baía de Todos os Santos). Um terremoto raro e inesperado, de média intensidade causando desabamento de telhados e chaminés, aconteceu ainda no dia 1 de novembro em Cape Ann, ao norte de Boston, uma região relativamente protegida, o que leva pesquisadores a tentarem associar o evento com o sismo de Lisboa.

Com 85% da Lisboa medieval e pré-moderna destruídos, há poucas estruturas na cidade anteriores a 1755. Uma delas, talvez a mais impressionante, seja o Convento do Carmo, templo neogótico erigido em 1389, cujo interior foi consumido pelo fogo, derrubando seus telhados e cúpulas. A estrutura básica é preservada e abriga um museu arqueológico.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Indira era a Índia

Em 31 de outubro de 1984, a primeira ministra da Índia, Indira Gandhi, foi assassinada na sua residência oficial por dois seguranças.

Indira Gandhi, apesar do sobrenome, não tinha laços de parentesco com o pacifista revolucionário Mohandas "Mahatma" Gandhi, líder do movimento de independência da Índia. Ela era, contudo, filha de Jawaharlal Nehru, o primeiro a ocupar o cargo de Primeiro Ministro da Índia independente e amigo próximo do Mahatma (o sobrenome Gandhi veio do marido Feroze Gandhi, jornalista que também não era parente do mesmo). Indira estudou na Europa, e ao retornar à Índia, serviu próxima ao pai enquanto primeiro ministro. Logo ela presidia o Congresso com punho firme, e, após a morte de Nehru, passou ao Ministério das Comunicações. Em 1966 o primeiro ministro Lal Bahadur Shastri morreu, e a cúpula do Partido do Congresso (a força política majoritária da Índia desde o tempo do protetorado britânico) orquestrou a eleição de Indira ao cargo, pensando que ela seria forte apenas o suficiente para vencer o candidato da oposição, porém não tão forte que pudesse impor quaisquer dificuldades às aspirações do partido. De fato, a mídia indiana a chamava de "fantoche". Contudo, dificuldades econômicas levaram a derrotas do Partido do Congresso nas eleições regionais, e Indira logo começou a se indispor com seus líderes buscando soluções à esquerda para os problemas do país, além de indicar políticos de outros partidos ou independentes para cargos públicos.

Indira foi reeleita em 1971. No seu segundo termo, Gandhi obteve uma vitória estratégica ao apoiar, com sucesso, a independência de Bangladesh, então sob controle do do Paquistão, com quem a Índia se atrita por questões territoriais e religiosas desde antes da sua independência até hoje. Ela resistiu a um processo de impeachment por crimes eleitorais, mas o processo (que aconteceu em 1975, enquanto o país sofria com a crise do petróleo deflagrada dois anos antes) foi desgastante politicamente. Seu gabinete e seus ministros apelaram ao presidente Fakhruddin Ali Ahmed (indicado ao cargo por Gandhi em 1974) para declarar Estado de Emergência, concedendo à chancelaria o poder de governar por decreto. O resultado das sucessivas crises veio nas eleições de 1977, quando Indira foi derrotada. Ela retornaria ao Congresso como a principal força de oposição (passando por cima de Yashwantrao Chavan, indicado como líder pelo próprio Partido do Congresso).

Nos seus dois termos como primeira ministra, Gandhi mantivera a inflação e o desemprego sob controle, implementando melhorias graças à nacionalização de setores estratégicos da economia, blindando-a contra as pressões internacionais. Porém a crise do Irã e a alta do petróleo atropelaram seu sucessor, pavimentando caminho para uma nova candidatura. Em 1980, buscando apoio de muçulmanos, tamiles (Indira foi atacada por membro de um grupo separatista tamil em visita a Madurai, no sul do país, mas o jornalista Nedumaram a protegeu com seu corpo, sendo apedrejado. Nedumaran ainda hoje milita em causas humanitárias na região), e outras minorias étnicas e religiosas, foi eleita com larga vantagem para um terceiro mandato.

No ínterim entre o segundo e o terceiro mandatos, o partido Akali Dal, de maioria sikh, assumiu o poder no importante estado de Punjab. Os sikhs são um grupo religioso de origem punjabi, que cultuam uma única divindade, revelada pela sabedoria de seus gurus. Pregam, se não a dissolução, ao menos a igualdade de tratamento a todas as castas, desafiando a tradição hinduísta. Também tem um código rígido de vestimenta, o que inclui um turbante alto chamado Dastar que envolve os cabelos, que não devem ser cortados (o código é tão rígido que sikhs residentes no Reino Unido tem autorização especial para portar o kirpan, uma adaga curva, um dos símbolos invioláveis da religião; o atual governo canadense conta com dois ministros de Estado sikhs, que se apresentam formalmente com seus Dastars, kirpans, e demais assessórios). Quando assumiram o Punjab em 1977, o Partido do Congresso passou a apoiar o líder ortodoxo Jarnail Singh Bhindranwale, visando minar o poder do partido dominante através de um líder religioso extremamente popular. Contudo, as disputas internas no Punjab logo se tornaram violentas, e o nome de Bhindranwale passou a ser associado com atos violentos e execuções de rivais. Ele se entregaria à polícia em 1981, mas seus seguidores ainda se envolveriam em episódios de violência. Ele recebeu perdão do ministro do interior de Indira Gandhi e foi para casa como um herói.

O norte da Índia entrava em um período de tumulto. Enquanto o Akali Dal pregava a desobediência civil, comunistas, grupos extremistas sikhs, e a polícia envolviam-se em constantes confrontos. Bhindranwale encorajava seus seguidores a andarem armados. Em 1982 ele foi convidado pelo líder do Akali Dal, Harcharan Singh Longowal, a uma reunião no Templo de Ouro, local sagrado para os sikh em Amritsar, Punjab. Bhindranwale ficou hospedado com uma comitiva na casa de hóspedes do templo, mas, com consentimento do partido sikh, acabaria trazendo cerca de 200 seguidores para lá, para compor sua segurança. Na prática, Bhindranwale transformava o santuário em uma fortaleza, onde recebia a imprensa internacional para chamar atenção à sua causa. O Akali Dal operava o braço político dos sikh, enquanto Bhindranwale era seu líder religioso mais importante e principal coordenador de ações diretas contra o governo de Nova Delhi. Nas entrelinhas do movimento estava a criação do estado do Khalistão e sua autonomia, fomentadas pelos Sikhs desde a década de 1940.

Em abril de 1983, depois de uma reunião com Bindranwale, o inspetor de polícia do Punjab foi assassinado na saída do templo. Logowal acusou Bindranwale pelo assassinato e retirou seu apoio. Em dezembro de 1983, homens de Bindranwale, armados com fuzis, entraram no templo, montaram barricadas e armaram metralhadoras no seu terraço. A cidade viveu meses de inquietação silenciosa.

Em junho de 1984, após negociações infrutíferas e mal conduzidas, Indira Gandhi ordenou a execução da Operação Estrela Azul. Contra recomendações de militares de alta patente, alertando para o sacrilégio de usar força militar contra fiéis refugiados em um templo, ela ordenou o corte das comunicações, da eletricidade, e o bloqueio de todas as estradas e paralisação do transporte público em todo o estado de Punjab, isolando-o do resto do mundo. Ao longo de 9 dias, 10 mil soldados, paraquedistas, e helicópteros invadiram, bombardearam e perseguiram rebeldes no Templo de Ouro e arredores. Bindranwale e outros 150 militantes morreram, causando 700 baixas ao exército indiano.

O que poderia representar uma vitória acabou sendo um revés para Indira. A opinião de militares, imprensa, e órgãos de defesa dos direitos humanos dentro e fora da Índia oscilavam entre críticas ao uso excessivo da força, à violação à liberdade de informação (pelo corte das comunicações), e violações graves aos direitos humanos - a escolha da época do ataque, início de junho, coincidiu com o fim das celebrações do martírio de um guru sikh, ou seja, a cidade e toda a região do templo recebia visitantes peregrinos de todas as partes. Mais de 400 mortes de civis foram registradas oficialmente, e isso foi considerado por muitos como um ataque deliberado àquela religião. O historiador Harjinder Singh Dilgeer defende que Indira Gandhi planejava o ataque ao Templo de Ouro havia muito tempo para construir uma imagem heroica e vencer as eleições no fim daquele ano (outra tese era de que o ataque visaria bloquear a influência do Paquistão, que planejaria o apoio aos rebeldes). Cinco mil soldados sikhs do exército indiano se amotinaram, resultando em repressão violenta.

Indira era naturalmente escoltada por seguranças armados, mas temia que pudesse ser assassinada a qualquer momento. No dia 30 de outubro de 1984, visitando o estado de Odisha, teria dito: "Eu estou viva hoje. Posso não estar aqui amanhã. (...) e quando eu morrer, posso dizer que cada gota do meu sangue revigorará a Índia e a fortalecerá." Um destes seguranças era Satwant Singh Agwan. Outro era Beant Singh. Ambos, nos dias que sucederam à Operação Estrela Azul, converteram-se ao sikhismo. Ambos trabalhavam em turnos alternados, mas Satwant alegou problemas estomacais e trocou de horário com outro segurança, para levar a cabo o plano com o colega.

Na manhã de 31 de outubro, enquanto Indira saía de casa para uma entrevista com o ator inglês Peter Ustinov, Beant se aproximou e disparou três tiros de revolver na sua barriga. Quando ela caiu, Satwant descarregou sua submetralhadora sobre a primeira ministra, que só viria a morrer no hospital, 5 horas depois. Ambos largaram as armas e se entregaram imediatamente. Beant teria sido morto durante uma confusão com os demais seguranças na sala em que havia sido levado a interrogatório, e o colega ferido e levado a julgamento.

Na corte, Satwant disse não ter "ódio contra qualquer hindu, muçulmano, cristão, nem ódio por qualquer religião. Depois do meu martírio, não permita que um sikh atire uma pedra a qualquer hindu. (...) Se criarmos um banho de sangue, não haverá diferença entre nós e Rajiv Gandhi" (filho de Indira, nomeado seu sucessor, e responsabilizado pela onda de perseguição aos sikhs que se seguiu ao assassinato de sua mãe). A execução de Satwant e um tio de Beant (condenado por ter orientado o sobrinho a cometer o assassinato) em 1989 foi seguida de violência, com a morte de 14 hindus por militantes sikhs no Punjab no mesmo dia. Seus corpos foram cremados e as cinzas nunca devolvidas às famílias.

A família de Indira Gandhi continua protagonizando a política indiana - Sonia Gandhi, nora de Indira, é atualmente presidente do Congresso Nacional; o neto Rahul é vice-presidente do Partido do Congresso, e seu primo Varum Gandhi deputado pelo partido Bharatiya Janata. Indira construiu uma reputação internacional positiva atuando na mediação de conflitos, mantendo a Índia, na medida do possível, como um protagonista entre os países não alinhados durante a Guerra Fria (a despeito do seu movimento a favor da União Soviética por conta da hostilidade da China e dos Estados Unidos nos anos 1970), e por ter implantado, pela via socialista, políticas públicas que impediram a ruína econômica diante de crises internacionais de grande magnitude, diminuindo o desemprego e controlando a inflação, conferindo à outrora frágil economia indiana uma autonomia que a levaria a um contínuo crescimento nas décadas seguintes. Contudo, a Índia permanece em constante tensão interna por questões étnicas e religiosas, que ela não conseguiu resolver - e, no caso da relação com os sikhs, apenas piorou. No Punjab, onde os sikhs somam mais de 20 milhões de pessoas, os assassinos de Indira Gandhi ainda recebem homenagens - em 2014 foi produzido um filme exaltando o seu feito no incidente do assassinato, mas sua distribuição foi proibida pela autoridade de Nova Delhi.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Revolta de Asen e Pedro

No dia de São Demétrio de Tessalônica, 26 de outubro de 1185, os irmãos Teodoro (mais tarde, Pedro) e Ivan Asen deflagraram uma revolta contra os impostos abusivos cobrados pelo Império Bizantino para custear o casamento do seu imperador. Esta revolta resultaria na independência da Bulgária e na coroação de ambos como tsares.

A partir do século IX os búlgaros, então uma confederação de tribos semi-nômades, se organizaram num império próprio que rivalizava com o Império Bizantino nos Bálcãs. Invasões de magyares (os atuais húngaros, que faziam parte originalmente da confederação búlgara), pechenegues (uma tribo proto-turca), e a ascendência da Rússia Kievita desestabilizaram o Primeiro Império Búlgaro ao ponto da maior parte do seu território ser absorvida pelo Império Bizantino, e os búlgaros perderem a sua autonomia.

As coisas permaneceram assim por mais ou menos um século e meio. A aristocracia búlgara era aplacada por privilégios garantidos pelo trono de Constantinopla, mas mesmo assim muitos deles foram expatriados para cidades na Anatólia, deixando a população búlgara sem líderes naturais ou legítimos (no sentido de "alguém com condições de recrutar um exército"). A religião também foi usada como forma de desconfigurar a identidade nacional búlgara: a estrutura to patriarcado ortodoxo búlgaro foi submetida a um arcebispo que respondia diretamente ao Patriarca de Constantinopla. Porém, os búlgaros continuaram em suas terras, e nenhum processo de aculturação funciona enquanto o Estado trata a população cativa de maneira distinta, especialmente dentro de sua própria casa. Foi o erro que levou à revolta de 1185.

Andrônico I Komnenos foi imperador bizantino por dois anos. Neste período, o idoso imperador parecia mais preocupado em assegurar um descendente da sua própria linhagem pela supressão ao poder de barões locais do que em manter as estruturas que o seu pré-antecessor, o reformador Manuel I Komnenos, havia estabelecido para reerguer o império em todos os campos. Num episódio particularmente violento, ele ordenou a execução de prisioneiros, exilados, e suas famílias, causando revoltas por todo o império. Andrônico foi deposto e executado por um militar (que, embora tivesse se envolvido em duas revoltas contra o mesmo, havia sido mantido no cargo graças aos laços com a família Komnenos), Isaque Angelos, que assumiu o trono como Isaque II.

O novo imperador assumiu no meio de uma invasão de normandos baseados na Sicília, e investiu tudo que podia para expulsá-los com sucesso. Antevendo as dificuldades econômicas políticas que enfrentaria dali para frente, achou melhor garantir-se no trono através de alianças com potências regionais. Ele arranjou rapidamente o casamento de uma sobrinha com um príncipe sérvio, e de sua irmã com um nobre italiano (Conrado de Montserrat, um senhor de terras influente que poucos anos depois viria a ser um dos principais comandantes na Terceira Cruzada, e coroado rei de Jerusalém). Para si mesmo, obteve a mão de uma princesa húngara, Margarida, cujo parentesco a ligava ao Sacro Império Romano, às nobrezas russa, italiana, e francesa, bem como à própria nobreza bizantina. O arranjo se deu ainda em 1185, mas a cerimônia seria realizada, em Constantinopla, no ano seguinte. A ocasião serviria para exibir todo o poder e glória do imperador. Porém, com os cofres vazios, a saída para bancar a festa seria o aumento de impostos.

Os búlgaros, na sua grande maioria, eram pastores, camponeses, artesãos. Desde a anexação da Bulgária, o antigo esplendor imperial de suas principais cidades foi diluído nos cofres bizantinos. A taxação criada por Isaque II, no entanto, não levava em consideração o que cada comunidade podia oferecer em relação ao que produzia. Era uma taxa horizontal e uniforme, que penalizava os mais pobres, que eram as populações dos Bálcãs propriamente ditos, os búlgaros e valáquios, que também haviam sido anexados. Em protesto, dois irmãos, Teodoro e Ivan Asen (ou "João", que é o equivalente a Ioan em búlgaro), filhos de um rico pastor valáquio e, possivelmente, administradores de uma criação de cavalos imperial perto de Tarnovo (atual Veliko Tarnovo), foram escolhidos pelos búlgaros e enviados à atual cidade de Ipsala expressar, diante do imperador, sua indignação com a medida. Condicionaram sua obediência a posições de comando no exército e a posse de terras. Isaque sequer concedeu-lhes audiência, mas um tio seu ordenou que Ivan fosse esbofeteado pela insolência.

Os irmãos Asen retornaram às suas terras e conclamaram o povo a uma rebelião. Mas seus compatriotas temiam mais a repressão bizantina do que a sua opressão fiscal. Era preciso outra estratégia para unir búlgaros e valáquios contra os bizantinos. Uma saída seria pela via religiosa, e, em meio à guerra entre bizantinos e normandos, a invasão à Trácia viria bem a calhar.

A cidade de Tessalônica foi saqueada pelos normandos em agosto de 1185, gerando a cadeia de eventos que levaria à queda de Andrônico. De alguma forma, os ícones de São Demétrio de Tessalônica, padroeiro daquela cidade e principal santo adorado pelos búlgaros, vieram parar em Tarnovo. Os irmãos Asen, ainda de mãos vazias, coordenaram a construção de um pequeno templo dedicado ao santo (atualmente a igreja de São Demétrio de Tessalônica, em Veliko Tarnovo), onde suas relíquias eram exibidas. Conhecidos profetas e adivinhos, que circulavam pelas aldeias balcânicas, foram convocados ao local. No dia de São Demétrio, em 26 de outubro de 1185, diante do povo, e sob a sugestão dos Asen, eles anunciaram que, em suas visões, a vinda de São Demétrio para Tarnovo significava que o santo havia retirado seus favores sobre os bizantinos e abençoado os búlgaros, e que os auxiliaria na revolta contra seus suseranos. Não poderia ter funcionado melhor: todos os presentes se ofereceram para lutar com os Asen.

Por toda a Bulgária, grupos rebeldes passaram a atacar possessões imperiais, capturando gado e fazendo prisioneiros. A importante cidade de Preslav foi sitiada sob o comando de Teodoro Asen. A cidade não foi tomada, mas os búlgaros retornaram com bois, ovelhas, tudo que puderam saquear no seu entorno. Teodoro teria então investido a si mesmo como Tsar ("César", ou Imperador), e adotado o nome de Pedro II, provavelmente em homenagem a um certo Pedro Delyan, um rebelde búlgaro do século XI (Pedro I, imperador búlgaro, era um aliado dos bizantinos, por isso pouco provável de que tenha sido ele o homenageado).

Isaque estava ocupado demais com os normandos na Trácia para dar a devida resposta a uma revolta camponesa, mas em 1186, o cronista bizantino Nicolau Coniates conta que as forças de Isaque alcançaram os rebeldes em "lugares inacessíveis", mas que uma grande escuridão que subitamente tomou as montanhas (o eclipse solar da manhã de 21 de abril daquele ano) permitiu a sua vitória. No entanto, as fortalezas rebeldes eram construídas nas partes mais escarpadas das montanhas, onde os bizantinos não conseguiam alcançar, e os antigos castelos ao longo do Danúbio, deixados de lado (porque Isaque achava que sua vitória havia sido decisiva), serviam de refúgio aos búlgaros. Depois daquela derrota, enquanto Pedro ganhava tempo negociando uma rendição, Ivan Asen cruzou o baixo Danúbio, para onde regressou com um exército de cumanos (tribo turca que habitava o noroeste do Mar Negro).

Com o auxílio dos cumanos, Pedro liderou a campanha que culminou com a tomada da Moésia - antiga região que corresponde ao centro-norte da atual Bulgária. Enquanto isso, Ivan paralisava as contra-ofensivas bizantinas com a tática de ataques rápidos e retiradas. Em certa ocasião, Isaque II, temendo que seu tio João Doukas (o mesmo que mandou esbofetear Ivan) usurpasse o trono, retirou dele o comando das tropas na Moésia, dando comando a um certo João Cantacuzeno, que era cego e não tinha relações com a família imperial (o exército de Cantacuzeno foi esmagado em seu próprio acampamento em algum lugar nas montanhas). De acordo com uma carta de Nicolau Coniates ao imperador, os irmãos não se contentariam em controlar a Moésia, mas uni-la à "Bulgária" (região que na época correspondia a boa parte da Sérvia, Macedônia, e oeste da Bulgária propriamente dita), "em um império, como nos velhos tempos". Em algum momento de 1187, Ivan Asen teria sido aclamado extra-oficialmente co-Tsar junto a seu irmão.

Finalmente, depois de um cerco mal sucedido à cidade búlgara de Lovech em 1187, Isaque propôs um armistício, reconhecendo Pedro e Asen (Ivan é mais conhecido na posteridade pelo sobrenome) igualmente tsares da Bulgária e a sua independência. A paz entre os dois impérios não duraria muito. Frederico Barbarossa, sacro-imperador romano, conduzia um exército de 40 mil homens para a Terceira Cruzada em 1189, mas pretendia forçar a passagem pelo Império Bizantino (os bizantinos haviam proibido os cruzados a passarem por seu território devido a episódios de saques nas cruzadas anteriores, motivo que levava os cruzados a operações de transporte marítimo pelo Mediterrâneo extremamente complexas). Os Asen ofereceram um exército ao imperador alemão. Como Isaque e Barbarossa acabariam resolvendo a questão diplomaticamente, o imperador bizantino empreendeu campanha contra a Bulgária, mas foi derrotado numa passagem estreita entre as montanhas perto de Triavna por Ivan Asen. Isaque fugiu, deixando tesouros como seu elmo dourado, a coroa e a cruz imperiais, e um relicário de ouro maciço contendo um pedaço da cruz de Cristo para serem capturados (um clérigo búlgaro a jogou num rio, mas foi resgatada). Diz-se que a partir daquele momento Pedro teria coroado oficialmente seu irmão e deixado grande parte da administração imperial com ele, mantendo-se no cargo ao seu lado como conselheiro. Juntos, comandaram campanhas bem sucedidas contra os bizantinos.

Asen acabaria assassinado em 1196 por um nobre valáquio, Ivanko, que estaria tendo um caso com a sua cunhada (ou talvez sob influência de Isaque Angelos, na época deposto, cego e preso, mas que teria oferecido a ele uma filha sua em casamento, como de fato aconteceu). Ivanko, vendo que não teria apoio para destronar Pedro, fugiu para Constantinopla. Pedro nomeou então seu irmão mais novo, Caloian, co-Tsar. Contudo, o tempo inteiro, tanto Pedro como Ivan dependiam das espadas cumanas ao seu lado para fazer valer a sua lei, e teria sido o descontentamento com essa influência estrangeira que moveu um camponês anônimo a assassiná-lo meses depois. E Caloian morreu em 1207 enquanto cercava Tessalônica - dizem os cronistas, morto em sua tenda pela lança do próprio São Demétrio.

O assim chamado Segundo Império Búlgaro chegou a abocanhar a Valáquia, a Albânia e a maior parte da Grécia, e existiu até ser solapado pelos otomanos em 1396.

Neste dia também: Brasil na Primeira Guerra Mundial

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Batalha de Zama

Em 19 de outubro de 202 a.C. foi travada a Batalha de Zama. Foi o confronto final entre Roma e Cartago na Segunda Guerra Púnica, e o evento que determinou o domínio romano do Mar Mediterrâneo pelos séculos seguintes.

Entre 218 e 201 a.C., a emergente República Romana, que compreendia o centro e o sul da Itália e ilhas adjacentes, foi desafiada pelo império capitaneado pela antiga colônia fenícia de Cartago. Tratava-se da segunda guerra em larga escala entre os dois países pelo controle do comércio no Mediterrâneo. A primeira ocorreu quando Roma interviu nos conflitos entre gregos e cartagineses pelo controle da Sicília, resultando na aquisição desta ilha pela República.

A Segunda Guerra Púnica (assim lembrada pelos romanos, pois chamavam aos cartagineses "Poeni", corruptela do grego "phoenike", ou "púrpura", corante que era a principal mercadoria oferecida pelos fenícios, fundadores de Cartago) foi deflagrada após a invasão e conquista da cidade ibérica de Saguntum (atual Sagunto, na Espanha), com quem os romanos mantinham relações diplomáticas. O comandante da operação era Aníbal Barca, designado comandante supremo da Ibéria cartaginesa e filho de Amílcar Barca, o conquistador cartaginês daquele país. O cerco e a conquista desta cidade era o primeiro passo de um plano meticuloso e ambicioso de Aníbal para assegurar o controle sobre o Mediterrâneo, e o passo seguinte seria a invasão inesperada, por terra, da Itália. De maneira espetacular, Aníbal conduziu um exército africano, com elefantes de guerra, pelos Alpes, e obteve vitórias incríveis sobre Roma em seu próprio solo. No entanto, a campanha da Itália nunca chegou a um momento decisivo, e embora Aníbal resistisse no interior da península por mais de 10 anos, esta operação acabou num impasse.

Roma, que havia adaptado a engenharia fenícia na construção da sua própria armada de guerra, conseguiu efetivamente evitar que os fenícios enviassem reforços por mar à Itália, limitando as ações de Aníbal. Com o general invasor imobilizado, os romanos partiram para o contra-ataque na cabeça de ponte cartaginesa na Europa, a Espanha. Os irmãos Gneu e Públio Cipião comandaram uma campanha que começou em Massalia (antigo porto grego sob controle cartaginês, atual Marselha), e prosseguiu, por terra e mar, através dos Pirineus, até o Rio Ebro, onde venceram uma batalha naval que paralisou o esforço cartaginês na Espanha (e o possível envio de tropas a Aníbal ou aos celtas do norte da Itália), embora seu progresso também tenha ficado por aí. Em 211 a.C., os dois Cipiões reuniram reforços entre os celtiberos nativos e marcharam separadamente e quase simultaneamente contra os cartagineses no norte da Espanha, perto de Bétis, onde ambos foram aniquilados. O filho de Gneu, Públio (o mais famoso Cipião, por isso lembrado apenas pelo sobrenome), foi o único a se candidatar ao comando do exército naquela região.

Em 211 a.C. Cipião começou tomando a cidade de Carthago Nova (atual Cartagena). Com romanos e celtiberos sob seu comando, Cipião organizava suas tropas de maneira dinâmica para responder às inconstantes formações dos cartagineses (os comandantes locais, Asdrúbal Barca, Mago, e Asdrúbal Grisco não conseguiam coordenar esforços, e a resposta ao avanço de Cipião era confusa), e aos desafios do terreno acidentado da Ibéria. Em Illipa (próximo a Sevilha), Cipião se defrontou com Asdrúbal Barca, irmão de Aníbal. Recuando o centro do seu exército e avançando com as alas, Cipião envolveu os cartagineses e obteve a vitória final naquele cenário de guerra. Este resultado rendeu a Cipião o consulado em 205 e o controle de seus aliados pessoais da Sicília.

Cipião não tinha o apoio do senado para prosseguir com a guerra. Seu plano era a invasão da África e a submissão de Cartago. Os senadores resistiram ressaltando o perigo, mas a moção acabou aprovada. Contudo, ele partira para a Sicília somente com um corpo de voluntários, e apenas mais tarde ele seria autorizado a recrutar as legiões estacionadas na ilha - na maioria, sobreviventes exilados pela derrota "humilhante" na Batalha de Canas contra Aníbal dez anos antes. Em 203 desembarcou em Utica, na Tunísia, onde esmagou completamente a resistência cartaginesa sob Asdrúbal Grisco. Na ocasião recebeu reforços da cavalaria numídia sob o príncipe africano Masinissa, a quem Cipião conhecera na Espanha e aspirava, com apoio romano, depor o rei Sifax, aliado dos cartagineses (Masanissa ainda perseguiu a cavalaria comandada por Sifax até a capital numida, Cirta, na Argélia, onde foi capturado).

A perda de Utica e a presença hostil de romanos e numídios no coração do seu império levou os cartagineses a solicitarem um tratado. Cipião propôs termos relativamente "suaves"- Cartago abriria mão das suas possessões fora da África, a maioria delas já perdida, e teria que limitar a sua marinha de guerra. Masinissa também teria direito a ampliar seu território sobre as posses cartaginesas no interior da Argélia. O senado cartaginês ainda deliberava sobre os termos, quando Aníbal foi convocado de volta. Aníbal Barca continuava no sul da Itália com o apoio relativo de tribos locais, no comando de um exército muito experiente e leal. No outono de 203 embarcou com seus homens no porto de Crotona.

Com Aníbal de volta, Cartago se sentiu segura para abordar uma frota romana destinada a Cipião que havia encalhado no Golfo de Túnis, e confiscar sua mercadoria. Os romanos viram o ato como uma quebra do tratado, e Cipião marchou para Cartago. Aníbal saiu de encontro a ele na planície de Zama, perto da atual cidade de Siliana.

Os dois exércitos se equivaliam, com ligeira vantagem numérica para Aníbal. Além de infantaria e cavalaria (numídios que serviram com ele na campanha italiana), Aníbal ainda dispunha de 80 elefantes de guerra. Os romanos contavam com três corpos de cavalaria, dois deles de numídios comandados por Masinissa, e outro de romanos sob o comando do general Lélio.

Os dois generais também se equivaliam em perspicácia. Aníbal havia se inteirado das táticas de Cipião na Espanha, especialmente sua estratégia em Illipa de atrair o centro enquanto envolvia as alas do inimigo, e assim dispôs o exército em três fileiras, com a retaguarda mais recuada para dificultar o ataque pelos flancos. Já Cipião previu que Aníbal usaria elefantes, e sabia que os elefantes podiam ser direcionados para uma carga em linha reta, mas que não podiam ser manobrados. Assim, ele separou suas três linhas em blocos, que, ao avançar das feras, se separavam, abrindo corredores por onde os elefantes passavam sem causar prejuízo (para depois serem abatidos).

Com os elefantes fora do caminho, Cipião avançou com a cavalaria. Ele também sabia que Aníbal dependia da força e agilidade da cavalaria numídia (cujos cavalos eram menores do que os cavalos atuais) e se preocupou em levar um número maior dessas unidades para o campo. Como consequência da superioridade numérica romana, a cavalaria cartaginesa fugiu perseguida por Masinissa e Lélio para longe do campo de batalha.

As infantarias então se bateram violentamente, com ligeira vantagem para os romanos. Aníbal mantinha sua terceira fileira recuada, e à medida em que as fileiras em combate eram quebradas, ele as reorganizava integrando-as às alas da fileira anterior, mantendo a força das suas linhas e reforçando seus flancos. No momento em que Aníbal integrou a primeira e segunda linhas, a primeira linha romana (os hastati, ou lanceiros) foi aniquilada. Cipião então reproduziu a estratégia em suas próprias linhas e contra-atacou. A batalha no corpo a corpo seguiu ferrenha.

Num certo momento houve uma pausa, onde os dois generais reorganizaram suas tropas. Ambos formaram uma fileira única, mas Cipião colocou a sua retaguarda nas alas, os lanceiros no meio, e a segunda fila (os principes, aristocratas que possuíam equipamento de melhor qualidade) preenchendo os espaços entre eles. O combate foi violento, mas nenhum dos lados parecia obter vantagem.

Foi quando surgiram as cavalarias romana e numídia cavalgando pela retaguarda cartaginesa (Masinissa e Lélio haviam desbaratado a cavalaria inimiga). A batalha estava perdida para Aníbal, que conseguiu fugir. Mas metade dos seus homens tombou, e outra metade foi presa.

Cartago, sem forças, teve que se submeter a um novo tratado, muito mais duro. Ela teria que pagar um pesado tributo anual a Roma (que arruinaria a sua economia rapidamente) e limitar seu poderio militar a meros 10 navios de guerra. Também não poderia declarar guerra, envolver-se em atos hostis, ou sequer recrutar um exército sem a autorização de Roma. Da parte de Roma, muitos não se deram por satisfeitos: alguns defendiam que o fim da guerra desmobilizaria a população na Itália, fazendo-a retornar a um estado de indolência anterior; outros alertavam para o perigo de se manter um inimigo tão feroz em suas próprias terras e exigiam a destruição total de Cartago. O senador Catão, o Velho, sempre encerrava seus discursos com a frase "Carthago delenda est" ("Cartago deve ser destruída"), mesmo que fosse sobre qualquer assunto não relacionado. De fato, Cartago viria a ser destruída meio século depois quando, ao arregimentar um exército contra a vontade romana para se defender das contínuas incursões do velho Masinissa, provocou nova campanha militar de Roma, resultando na destruição da cidade, extermínio de grande parte da população, e sua terra salgada.

Depois de Zama, Cipião e Aníbal quase se encontraram em outra guerra. Aníbal, em exílio voluntário, colocou-se a serviço do rei Antíoco III na Síria, e temores de que ele preparava outra invasão à Itália (de fato ele recomendara especificamente isto a Antíoco, que preparava uma campanha contra os romanos na Grécia) levaram os romanos à guerra na Ásia. Na derrota, Antíoco deveria entregar Aníbal a Cipião, mas ele fugira a Bitínia, onde servira o rei local (numa das batalhas navais que comandara, bombardeara os navios inimigos com vasos cheios de cobras venenosas). O rei da Bitínia foi, também persuadido pelos romanos a entregar Aníbal, mas ele continuou a fugir. Antes de morrer, em algum ponto da costa oeste da Turquia entre 185 e 183 a.C, ele teria deixado uma carta que chegou a Roma, dizendo "Vamos aliviar os romanos da ansiedade que têm experimentado por tanto tempo, já que eles acham um teste de paciência muito grande esperar a morte de um velho".

E Cipião (cujo sucesso na Segunda Guerra Púnica lhe rendeu o apelido de "Africano") seria acusado por seus adversários, incluindo Catão, de aceitar suborno de Antíoco (ele havia defendido publicamente o irmão de tê-lo aceito, e, por causa disso, foi acusado também). Salvo pelos amigos de ser levado a julgamento, ele se retirou da vida pública em sua propriedade, próximo a Nápoles, onde morreu (à mesma época de Aníbal) e foi sepultado. Otaviano, o primeiro imperador romano, século e meio depois, visitou o local para prestar-lhe homenagens. Sua amargura pelo tratamento que recebera em Roma após os anos de serviço (pela primeira vez Roma conquistava territórios fora da Itália e das ilhas próximas) teriam-no feito ordenar a inscrição em seu túmulo: "Ingrata patria, ne ossa quidem habebis" ("Pátria ingrata, não terá sequer os meus ossos").

No filme O Gladiador, o personagem de Russell Crowe, Maximus, é escalado para um espetáculo no Coliseu onde se recriaria a Batalha de Zama. Maximus e seus colegas, representando as forças de Aníbal, rebelam-se vencendo a batalha e arruinando o espetáculo.

Neste dia também: Independência ou Morte no Piauí

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Favorita das Nove Musas*

Em 18 de outubro de 1773, Phillis Wheatley, poetisa e escrava, recebeu a alforria.

Phillis Wheatley nasceu na África ocidental (talvez no Senegal, mas a origem é incerta), e foi vendida por um chefe tribal aos 7 anos a um comerciante de escravos. A menina, ainda sem nome, foi trazida num navio negreiro chamado Phillis ao mercado de escravos no porto de Boston em 1761. Ali, a sorte que havia lhe faltado sorriu: ela foi adquirida pelo alfaiate John Wheatley, para servir de companhia e ajudante à sua esposa Susannah. Wheatley era reconhecidamente um progressista notável que, embora mantivesse escravos domésticos a seu serviço, os tratava e mantinha com dignidade. A menina, batizada Phillis (em lembrança ao navio que a trouxe à América), e Wheatley (como de costume, para assinalar a propriedade da família que a comprou), ficou sob a tutoria da filha mais velha do casal, Mary, que a alfabetizou.

Mary, contudo, percebeu a facilidade de aprendizado e uma habilidade notável no uso e na expressão de línguas, não apenas do inglês - aos 12 anos, Phillis lia grego e latim, e interpretava passagens da Bíblia. Estava familiarizada com os poemas de Pope, Milton, Virgílio, Homero. Phillis começou a escrever aos 14 anos. Seu primeiro poema, "To the University of Cambridge, in New England" começa assim (e eu traduzo livremente):

"Enquanto um intrínseco ardor induz a escrever,
As musas prometem assistir a minha caneta;
Não faz muito tempo desde que deixei minha costa nativa
A terra de erros, e melancolia egípcia:
Pai de misericórdia, foi tua mão graciosa
Que me trouxe em segurança daquelas escuras moradias."

Impressionados pelo talento de Phillis, os Wheatley dispensaram-na dos serviços domésticos e investiram integralmente em sua educação. Quando completou 20 anos, Phillis foi enviada a Londres sob recomendação médica. Susannah Wheatley incentivou a viagem porque acreditava que Phillis teria mais facilidade para publicar seus poemas lá do que em Boston. De fato, em 1772, antes de partir para Londres, uma comissão de cidadãos de Boston abriu processo contra Phillis, questionando que uma escrava africana pudesse escrever poesia de qualidade, e precisou que ela se submetesse a uma corte, na presença de intelectuais locais (entre eles, John Hancock, um dos signatários da Declaração de Independência), para atestar a autoria dos seus poemas. Em 1773, em Londres, publicou seu livro "Poemas Sobre Vários Assuntos, Religiosos e Morais" (o documento produzido pelos intelectuais de Boston no ato do julgamento foi incluído no prefácio da primeira edição), e caiu nas graças da nobreza britânica. Já editores na América se recusaram a publicá-lo. Foi logo após a publicação em Londres e seu retorno que John Wheatley (talvez por pressão dos influentes amigos de Phillis) concedeu-lhe a alforria:

"Desde meu retorno à América meu Mestre, segundo o desejo de meus amigos na Inglaterra, deu-me a liberdade".

A vida de Phillis Wheatley depois da escravidão, contudo, não foi fácil. Seus antigos mestres e protetores faleceram, Susannah em 1774 e John em 1778. A poetisa não gozava de boa saúde, o que atrapalhava seu trabalho. Em 1778 casou-se com John Peters, um negro livre que tinha uma quitanda, e com ele viveu anos de pobreza, perdendo dois bebês. Ela tentou publicar um segundo volume de poesias, mas já na época da Revolução Americana havia pouco interesse e recursos para isso. Peters foi preso por dívidas em 1784, e poucos meses depois, ela morreu enquanto trabalhava como assistente de cozinha de uma estalagem. Seu terceiro filho morreu na mesma época, e os dois foram enterrados juntos numa cova comum.

Phillis Wheatley tornou-se a primeira escrava negra na América a publicar uma obra literária. Em Londres, onde o estigma da escravidão não lhe tomava a liberdade de expressão, relatava experiências e opiniões diversas nos círculos de intelectuais que frequentava. Porém o corpo da sua poesia, finamente ritmado e essencialmente devocional, religioso, raramente toca nas suas experiências pessoais. De fato, ela expressava, por exemplo, sentimentos ambíguos quanto à escravidão, devido à benfeitoria dos Wheatley em sua vida, o que levou autores negros contemporâneos, e estudiosos posteriores a criticar a postura (o uso progressivo de símbolos classicistas nos seus poemas, uma provável adaptação ao que ainda guardava da sua cultura ancestral, levou o escritor e escravo Jupiter Hammon a criticar seu "paganismo", dedicando a ela um poema composto por versículos bíblicos). No poema "Sobre Ter Sido Trazida da África para a América", ela louva a sua condição de escrava por ter permitido que conhecesse o Cristianismo, mas firma o pé na contestação do senso comum da época de que negros tinham uma linhagem e um destino espiritual distintos dos brancos:

"Foi misericórdia que me trouxe de minha terra Pagã,
Ensinou minha alma ignorante a entender
Que há um Deus, que há um Salvador também:
Uma vez que a redenção não procurei nem conhecia.
Alguns veem nossa negra raça com olhos desdenhosos,
'Sua cor é uma tintura diabólica.'
Lembrem-se, Cristãos, Negros, pretos como Caim
Podem ser refinados e juntar-se ao seu cortejo de anjos."

Em 1775, já durante a Revolução, época em que os poemas de Phillis Wheatley tomavam ares heroicos frequentando temas patrióticos e elogiando figuras públicas, ela escreveu uma carta ao recém nomeado comandante-em-chefe do Exército Continental, George Washington. O poema terminava nos versos:

"Continua, grande chefe, com virtude ao teu lado,
Todas as tuas ações deixa que a deusa guie.
Uma coroa, uma mansão, e um trono que brilhe,
Com ouro inalterável, WASHINGTON! Sejam teus."

Washington respondeu a carta, endereçando-se a "Senhorita Phillis", desculpando-se pela demora (5 meses entre o envio da carta de Phillis e a resposta de Washington), elogiando as "linhas elegantes" e seu "marcante talento poético". Ele diz ainda que teria arranjado sua publicação, se isso não parecesse um ato de vaidade e auto-promoção da sua parte (mas compartilhou-o com o tenente-coronel Joseph Reed, que teria encaminhado-o para o jornal The Pennsylvania Magazine em 1776), convidando-a a encontrá-lo em Cambridge. Por fim, dedica a carta à ex-escrava como "seu obediente e humilde servo".

Em Boston foi erigido em 2003 um monumento homenageando três mulheres importantes da história americana: Abigail Adams, esposa e conselheira do "Founding Father" John Adams e mãe do presidente John Quincy Adams; Lucy Stone, abolicionista, feminista e sufragista; e Phillis Wheatley.

*O almirante escocês-americano John Paul Jones pediu que um subordinado enviasse seus próprios escritos a "Phillis a Africana, favorita das Nove e Apolo".

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Agripina, A Velha

Em 17 de outubro de 33 d.C. faleceu de desnutrição a romana Agripina ("A Velha", porque tinha uma filha homônima, conhecida como "A Jovem"), adversária do imperador Tibério e mãe do seu sucessor, Calígula.

Na sociedade romana, à época da dinastia Júlio-Claudiana, os homens eram os executores da vida pública, ocupantes exclusivos dos cargos de cônsul, senador, pretor, general, pontífice. Eram maridos, cabeças de suas famílias, provedores do lar. Das mulheres era esperado o recato, a modéstia, a obediência, e um útero fértil. Quaisquer mulheres que não se enquadrassem nesse modelo, independente da sua sagacidade, capacidade produtiva, caráter, eram mal vistas pelos romanos. Porém, como toda boa sociedade fortemente patriarcal, a vida política romana sempre teve, nos seus bastidores, a influência das esposas e amantes dos seus figurões mais ilustres. Agripina, quem o historiador Tácito, sob o ponto de vista do homem romano, a descreve como alguém "intolerante na rivalidade, sedenta de poder, (ela) tinha as preocupações de um homem", era uma mulher cuja virtude extrapolava o que se esperava de uma romana, enquadrando-se tanto no espectro da matrona virtuosa e recatada, quanto da leoa que se imiscuía nos negócios públicos em busca de justiça.

Vipsania Agripina, nascida em 14 a.C., era filha de Marcus Vipsanio Agripa, amigo de longa data do imperador Otaviano, e da única filha biológica deste, Júlia. Entre os patrícios romanos os casamentos eram arranjados e desfeitos para fortalecer alianças ou aproximar inimigos, e havia muito pouco que os noivos pudessem fazer. Depois de anos de casamento feliz com Agripa, quando este morreu Júlia foi oferecida em casamento ao herdeiro legal de Otaviano, Tibério, um homem soberbo e emocionalmente instável, com quem viveu miseravelmente; não foi surpresa, embora tenha sido um escândalo, quando Otaviano puniu Júlia com o exílio por adultério. Como resultado, a jovem Agripina, então adolescente, ficou sob a guarda da atual esposa de Otaviano, Lívia.

Lívia era uma verdadeira arquiteta política. Seu marido (a quem arrebatara quando era casado e ainda compartilhava o poder com os rivais Marco Antonio e Marco Lépido) era o imperador; embora Otaviano adotasse legalmente alguns jovens promissores, ela arranjara para que Tibério, seu filho de um casamento anterior, se tornasse seu herdeiro, enquanto seus possíveis rivais caíam um a um, provavelmente envenenados sob suas ordens (bem como o próprio Otaviano, que gozava de boa saúde na velhice); com Tibério pavoneando-se no poder, trabalhava como uma das principais articuladoras políticas do seu reinado.

Já Otaviano era um homem astuto, que conhecia as artimanhas e a capacidade de realização de Lívia e procurava direcioná-las para benefício comum. No entanto, seu ímpeto frequentemente entrava em conflito com os planos da esposa. Quando Júlia foi exilada e Agripina trazida para o seu convívio, Otaviano se afeiçoou a ela e a protegeu, oferecendo-a em casamento a Germânico, um jovem e charmoso neto de Marco Antonio e parente de Lívia, da influente família dos Cláudios. Germânico, além de bem apessoado e gentil, era um militar capaz. Suas vitórias na Germânia e na Gália (notadamente, o resgate da última das três Águias Perdidas) o tornavam imensamente popular. A modéstia e a frugalidade de Agripina, sua devoção por Germânico (com quem viveu um casamento verdadeiramente feliz, se confiarmos nas fontes contemporâneas, acompanhando-o em campanha e mesmo atuando como diplomata) a tornaram uma favorita do povo. O casal deu à luz nove filhos, com seis deles chegando à idade adulta.

Otaviano já havia designado Tibério seu sucessor, mas exigiu que o enteado fizesse o mesmo com Germânico. Quando Otaviano morreu, as coisas mudaram. Tibério, que não gozava das virtudes nem da popularidade de Germânico, o via como uma ameaça. Germânico foi então enviado para o oriente (para longe de Roma), para comandar a Síria. Em seu auxílio foi designado o general Calpúrnio Piso, com quem Tibério mantinha estreitas relações, supostamente para mantê-lo sob controle. Piso e Germânico se desentenderam publicamente em pelo menos uma ocasião (após retornar do Egito, Germânico teria constatado que Piso ignorara instruções suas acerca das tropas na Síria). Ali, Lívia talvez tenha sido solicitada para ajudar Piso a resolver a questão, porque, logo em seguida, Germânico passara mal, acusando o colega de tê-lo envenenado. Germânico morreu no ano 19, deixando Piso no comando da província.

Agripina retornou a Roma com as cinzas do seu marido. Ao receber a notícia do falecimento de Germânicos, o povo romano entrou em luto antes mesmo do senado o declarar oficialmente, e diante da urna com suas cinzas, discursos e homenagens eram prestadas por figuras públicas, incluindo o próprio Tibério. Mas Agripina não se contentaria com demonstrações públicas de afeto. Ela compartilhava da convicção de Germânico de que teria sido envenenado, e que o responsável era Piso (isso não está expresso nas fontes, mas sua mente não deve ter ido muito longe para ligar a atuação de Piso a Tibério). De fato foi aberto processo e Piso foi indiciado, não por assassinato, mas por traição e desacato. Ele se suicidou antes da condenação.

A queda de Piso não satisfez o senso de justiça de Agripina. Ela exigia de Tibério que ele nomeasse um dos seus filhos seu herdeiro, em substituição a Germânico (Tibério tinha um filho Tibério Gemelo, que despontava como seu favorito). Lívia e a sogra, Antonia, mantinham os filhos de Agripina o mais longe possível da mãe. Ela se tornava cada vez mais solitária, e sua relação com Tibério cada vez mais amarga, chegando ao ponto de enfrentá-lo em particular algumas vezes, acusando-o de perseguir, através dela e de seus filhos, o sangue de Otaviano.

Senadores, preocupados com a crescente influência do prefeito pretoriano Sejano (a quem Tibério delegava muitas das suas atribuições quando, em crises emocionais, exilava-se em inacreditáveis orgias na ilha de Capri), buscaram apoio na boa reputação de Agripina, que abraçou a causa. Tibério passou a desconfiar dela, e, num jantar privado, ofereceu-lhe uma maçã para testá-la. Agripina recusou-se a comer, acreditando estar envenenada. Pouco depois ela foi presa com dois de seus filhos, acusada de conspiração (Tibério temia que ela buscasse apoio das legiões leais a Germânico, usando a reputação do marido e o parentesco do avô Otaviano a seu favor).

Agripina e os filhos acabaram banidos para a ilha de Pandataria (atualmente Ventotene), o mesmo local para onde sua mãe Júlia havia sido exilada. Seus protestos constantes eram punidos com castigos físicos (algo raramente aplicado em condenações deste tipo), e ela acabou cega de um olho. Depois de quatro anos do exílio, morreu de inanição (segundo Tácito por greve de fome, mas talvez por ter sido deliberadamente privada de comida, não se sabe), mesmo destino de seu filho Druso, enquanto o outro filho, Nero, se suicidou aguardando julgamento. Ironicamente, Sejano encontrou seu fim antes de Agripina, quando Tibério mandou executá-lo por conspiração. Quando soube da morte de Agripina, Tibério declarou o dia do seu nascimento uma data de mau agouro.

O último filho homem vivo de Agripina, Caligula, criado sob a vigilância de Lívia, sucedeu Tibério como imperador no ano 37. Ele revertera a condenação de Tibério e suas ordens para que o nome de sua mãe fosse riscado da história, e depositou suas cinzas no Mausoléu de Augusto, declarando um dia anual para que os romanos lhe prestassem homenagens. Calígula acabaria assassinado e sucedido pelo primo de sua mãe, Cláudio, e este, por sua vez, substituído pelo seu neto Nero.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Duas Chinas

Em 11 de outubro de 1142 foi ratificado o tratado de Shaoxing entre a Dinastia Jin, que controlava o norte da China, e a Dinastia Song, que dominava o sul, formalizando o fim da guerra entre os dois Impérios.

Embora se sustente que a China seja o país que existe continuamente há mais tempo no mundo atual (desde a unificação dos seus reinos em 221 a.C.), a sua história é bem mais complicada do que uma uma sucessão linear de governantes no atual território chinês. Por vezes, o que chamamos de "China" chegou a ter mais de um imperador simultaneamente. Era o caso das dinastias contemporâneas Song e Jin.

A Dinastia Song emergiu do caos que se seguiu à dissolução da dinastia Tang em 907. Os Tang vinham perdendo controle sobre os senhores da guerra e administradores provinciais do seu território, que, cada um à sua maneira, tornaram suas terras virtualmente independentes debaixo do nariz dos seus últimos imperadores. Depois de 907, pelo menos 10 reinos diferentes existiram na China, enquanto famílias nobres lutavam inutilmente entre si pelo cargo simbólico de Imperador (o período entre 907 e 960 é conhecido como Cinco Dinastias e Dez Reinos). Foi um período de disputas violentas entre os vários poderes emergentes em busca de estabilidade e supremacia, até que em 960, Zhao Kuangyin, um jovem militar que tivera ascensão meteórica no reino de Hou Zhou, depôs o neto do seu antigo suserano e assumiu para si o título de Imperador. Aconteceu de Zhao Kuangyin estar à frente de um exército em marcha quando espalhou-se o rumor entre os soldados de que um vidente teria visto um sinal indicando que o Mandato dos Céus (o ato divino conferido aos "justos" que legitimava o poder imperial) deveria ser entregue a ele. O rei era um menino de 7 anos, e não foi muito difícil para que Zhao fosse entronizado pelos seus comandados depois disso. Ficaria conhecido como Imperador Taizu, fundador da Dinastia Song.

Nos 17 anos de reinado de Taizu, o Império Song, firmemente centrado na cidade de Kaifeng, no noroeste da China, conquistou primeiro os reinos do sul, para depois investir nos reinos ao norte. O sucesso dos Song se deveu principalmente à reforma administrativa de Taizu (instituindo nomeações por concurso público ou exame de mérito, ao invés do loteamento de cargos entre aristocratas e militares), e no investimento em cartografia - o conhecimento detalhado dos domínios Song levou à confecção de um atlas, favorecendo a aplicação eficiente de políticas públicas. Inovações técnicas e científicas também eram favorecidas por incentivos públicos. A diplomacia Song mantinha embaixadas na Índia, Pérsia, Coréia, Egito, Srivijaya (o opulento império comercial que dominava a passagem do Estreito de Malaca), mantendo ainda relações com o Japão e o Império Bizantino.

Ao norte do que os Song consideravam seu, nas vastas planícies entre a Mongólia e a Manchúria, a ausência de um poder central chinês favoreceu a organização e estabelecimento de Estados rivais controlados por antigos povos nômades que emulavam o modelo administrativo chinês. Após a queda dos Tang, a etnia kitai foi unificada num império próprio, designando sua casa reinante como a Dinastia Liao. Liao é tratado pela historiografia chinesa tradicional como um reino estrangeiro, mas seu sucessor, a Dinastia Jin, teria tratamento diferente. Como os kitai, os jurchen, nativos da Manchúria, emergiram como tribos mais ou menos independentes, embora submetidas a Liao. Porém, conforme o poder central afrouxava, os jurchen rebelavam-se, realizando ataques pontuais e saques a cidades. Depois de uma campanha bem sucedida ao lado dos coreanos, os jurchen uniram-se sob um governante comum, e a partir de 1115, forjariam seu próprio império sobre as ruínas de Liao, a Dinastia Jin. Os kitai manteriam sua soberania por mais algum tempo no reino de Qara Kitai, no noroeste da China.

Os Song haviam firmado aliança com os Jin contra Liao, mas nunca forneceram os exércitos prometidos. Logo após o fim da Dinastia Liao - pela captura do seu Imperador Tianzuo em 1125 - a Dinastia Jin rompeu a aliança e partiu para a ofensiva sobre o nordeste do domínio Song. Em dois anos, a capital Song, Kaifeng, cairia sob domínio Jin. Uma conspiração de nobres centrados em Beijing contra os Song foi instrumental para o sucesso dos Jin no norte da China. Os Imperadores Jin, agora controlando partes da China de facto, só poderiam tê-lo feito sob o Mandato dos Céus, o que os legitimaria, portanto, como governantes chineses. Na prática, os jurchen, à medida em que migravam para as novas áreas conquistadas, incorporavam para si características culturais chinesas, e sua nobreza era educada nos clássicos chineses.

Jin e Song passaram mais de uma década numa guerra de atrito, interrompida temporariamente por intrigas palacianas, rebeliões internas, e questões de sucessão. Para os Song a situação ainda era mais crítica, pois a crise levava oficiais chineses (tanto leais aos Song, como os que estiveram a serviço de Liao) a preferirem oferecer seus serviços aos conquistadores estrangeiros do que ao seu próprio imperador.

A corte Song (ou o que restava dela após a captura de Kaifeng) havia cruzado o rio Yantse e reagrupado na atual cidade de Hangzhou, virtualmente abandonando todas as terras ao norte do rio Huai para os Jin. Porém, há evidência de que o novo Imperador Song eleito, Gaozong (um usurpador, mas o usurpador que a nobreza Song precisava), preferia evitar o conflito com os Jin para impedir a restauração do imperador deposto em Kaifeng, Qinzong. Manobras políticas conduziram a acusação de importantes militares Song por traição, responsabilizando-os pelas derrotas dos Song. Um deles, Yue Fei, estava prestes a retomar Kaifeng quando foi chamado a Hangzhou, onde foi preso e executado. A política de conciliação dos Song do sul com o Jin conduziu ao Tratado de Shaoxing, em que os Song abdicavam de todas as terras ao norte do Huai e se comprometiam a pagar tributo anual aos rivais do norte. Os Song sobreviveram no sul graças ao investimento na construção de uma marinha mercante e uma marinha de guerra, já que manteve controle sobre algumas das principais cidades portuárias da China.

Já os Jin precisaram desviar energia para conter revoltas dos remanescentes kitai em seus domínios, bem como de clãs jurchen que se opunham à sinificação, e conflitos com o reino tangute de Xi Xia no leste. A guerra com os Song foi suspensa não apenas por força de tratado (rompido em algumas ocasiões, porém em batalhas inconclusivas), mas pela incapacidade dos Jin de direcionar recursos para esta frente. Mas a queda começou quando as tribos mongóis começaram a se movimentar pela unificação em torno de Genghis Khan. Genghis arrasou Xi Xia entre 1205 e 1209, e em 1211 invadiu o império Jin com 50 mil guerreiros montados, dez vezes menos do que o estimado para o exército Jin - e mesmo assim, em 1214, os Jin assinaram um tratado desfavorável com os mongóis. O filho de Genghis, Ogedei, comandando um exército engordado por chineses insatisfeitos, esmagou tanto Xi Xia quanto Jin entre 1232 e 1234.

Já os Song resistiram até 1279. Foi durante a campanha de expansão para o sul que Kublai Khan, que acumulava para si o cargo de Grande Khan do imenso Império Mongol e de administrador da China, instaurou a si mesmo Imperador chinês, fundando a dinastia Yuan em 1271. Uma batalha naval em Yamen (com enorme superioridade numérica Song, e um exército invasor composto praticamente todo por soldados e marinheiros chineses) resultou na morte do último imperador Song e sua corte, ou por suicídio, ou por afogamento.

Ironicamente, a China como existia precisou ser destruída por outro invasor estrangeiro para ser, enfim, reunificada. Após o estabelecimento da Dinastia Yuan, a China, embora tenha sido invadida e repartida entre administradores estrangeiros e estados-fantoches algumas vezes, nunca mais foi dividida.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Assalto a Santiago

Em 11 de setembro de 1541, um jovem chefe picunche, criado e educado entre os incas no Peru, chamado Michimalonco, liderou um exército de mais de 10 mil homens contra a recém construída colônia espanhola de Santiago, no Chile.

Em 1540, o espanhol Francisco Pizarro, tendo conquistado o Peru, enviou Pedro de Valdivia para percorrer os Andes ao sul e sondar locais para o estabelecimento de colônias em regiões de produção de metais preciosos. Naquele ano, Valdivia alcançou uma antiga aldeia de desterrados de diversas tribos andinas periféricas ao império inca, que os incas conheciam coletivamente como promaucaes, e os espanhóis dali em diante como picunches. Sem resistência, os picunches locais aceitaram que os espanhóis administrassem as minas nas quais já trabalhavam em troca de proteção. Em fevereiro de 1541 foi fundada a colônia de Santiago de Nova Extremadura.

Para os picunches as coisas não foram tão simples. Os novos senhores espanhóis exigiam um esforço sobre-humano dos trabalhadores nas minas de ouro e na construção da colônia. O próprio Michimalonco estava empregado como capataz, e ao se ver obrigado a colocar a segurança de seus conterrâneos em risco por senhores que não se importavam muito, rapidamente tornou-se um líder rebelde, cuja reputação crescia a cada dia. Valdivia, para assegurar a obediência de seus novos súditos e, no fim das contas, garantir a segurança das cargas transportadas entre as minas e a colônia, ordenou a prisão dos seus chefes, mantidos em cativeiro para persuadir os picunches a se manterem na linha.

Os picunches rebeldes realizavam assaltos e escaramuças. Outro líder picunche, Trangolonco, irmão de Michimalonco, realizou um assalto à antiga cidade inca de Quillota (então sob controle espanhol), matando a todos os espanhóis, escravos negros, incas e demais nativos peruanos, restando apenas um colono e seu escravo. O ataque atraiu a atenção de Valdivia, que mobilizou 80 soldados estacionados em Santiago para reprimir o bando de Trangolonco mais ao sul. Na colônia, deixara 50 homens sob o comando de Inés de Suárez.

Inés era uma jovem senhora com 34 anos, que teria ido à América atrás de seu marido, que teria se aventurado ao novo continente na expedição de Pizarro (ele teria morrido no mar, antes de desembarcar no Peru). Como viúva, ela recebeu uma pequena doação em terras, e se tornou criada e, possivelmente, amante de Valdívia, conquistador incumbido de construir uma capital no Chile, salvando sua vida pelo menos em duas ocasiões e participando de pequenas batalhas.

A movimentação de Trangolonco era um chamariz. Enquanto Valdivia caçava picunches no sul, Michimalonco trazia consigo cerca de 10 mil homens, que cercavam as paliçadas de uma Santiago quase desguarnecida. Os ataques, contudo, não eram muito sistemáticos devido à posição da antiga colônia, numa ilha fluvial elevada. Além disso, os colonos tinham armas de fogo e treinamento militar, e Michimalonco entendia que um confronto direto poderia colocar tudo a perder. Mesmo assim, os picunches avançavam sobre os espaços deixados pelos espanhóis na defensiva.

À noite, como boa parte da colônia estava perdida e os poucos homens desmoralizados, Inés reuniu um conselho de guerra e decidiu executar os chefes picunches para aterrorizar os invasores e dispersá-los. Um dos soldados que vigiavam os presos lhe perguntou: "como a senhora quer que os matemos?", ao que ela respondeu "assim", tomando a espada do homem e cortando as cabeças ela mesma. As cabeças foram atiradas sobre os picunches.

Com os atacantes chocados e desorientados, Inés cavalgou em direção à praça central, à frente dos soldados que faziam uma linha de frente, e comandou um avanço final que desbaratou os milhares de picunche apavorados, salvando o que restava de Santiago. No momento, a aparição de Inés, vestida em armadura sobre um cavalo branco aterrorizando milhares de inimigos, fez os espanhóis acreditarem se tratar de São Tiago, padroeiro da cidade e da própria Espanha, descendo do céu.

Quanto a Michimalonco, após a batalha, se retirou para os domínios dos incas. Mas esquecido e pobre, resolveu voltar ao Chile, disposto a fazer as pazes com os espanhóis, cuja bravura em batalha o havia impressionado. Valdívia o recebeu de bom grado, e o teve como aliado numa expedição contra os araucanos, no sul. Ele ainda serviria de embaixador entre os araucanos, convencendo-os naquele momento a se unirem aos colonos espanhóis para fundar uma nova nação. A relativa cooperação dos povos chilenos seria crucial para o sucesso da colônia.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Colombo

Em 3 de agosto de 1492 Cristóvão Colombo, no comando da nau Santa Maria, zarpou do porto de Palos de la Frontera, na Espanha, para a viagem que o levaria à América.

Desde que os mongóis conquistaram tudo entre a Hungria e a Coréia, produtos de origem asiática, como especiarias e seda, se tornaram artigos de grande demanda na Europa. Com a ascensão dos turcos otomanos e a sua conquista de Constantinopla em 1453, as rotas comerciais pela Ásia ficaram muito restritas para os mercadores europeus, de maneira que estes artigos se tornaram escassos, ou proibitivamente caros no Ocidente. Enquanto potências marítimas, como Veneza e Gênova, tentavam, por meio de acordos ou persuasão, furar o bloqueio turco, e Inglaterra e França, outras potências europeias voltadas para o oceano, viam-se presas a conflitos internos e externos, as pequenas nações ibéricas tomaram a dianteira da navegação oceânica, buscando uma alternativa às rotas tradicionais para se chegar ao mercado asiático. Assim, Portugal, independente desde 1139, lançou-se primeiro ao mar e desenvolveu uma escola de navegação e cartografia incomparáveis na Europa quatrocentista. Mas alguns pequenos eventos chave fariam com que a balança começasse a pender para os seus vizinhos, os jovens reinos de Castela e Aragão.

Cristóvão Colombo nasceu em território genovês, filho de um tecelão que complementava a renda familiar com uma banquinha onde vendia queijos com o pequeno Cristóvão. As circunstâncias da vida pessoal de Colombo (como a própria data precisa e local de nascimento) são nebulosos, mas sabe-se que em 1873, possivelmente inspirado pelo negócio do pai, Cristóvão se tornou aprendiz de importantes famílias de negociantes genoveses, e teria embarcado em algumas expedições comerciais pelo Mediterrâneo visitando algumas colônias genovesas. Em 1476 ele navegou pelo Atlântico até a Irlanda, talvez até a Islândia. No retorno da Irlanda, entrou a serviço de um navio português e viajou a Lisboa, onde encontrou seu irmão mais novo, Bartolomeu.

Bartolomeu Colombo foi uma pela fundamental para os eventos que levaram Cristóvão à América. Enquanto o irmão mais velho começara a trabalhar com o comércio em Gênova, Bartolomeu se tornou aprendiz de uma oficina de cartografia em Lisboa. O conhecimento cartográfico na Europa medieval era muito baseado num mapa muito fragmentário do mundo conhecido pelo cartógrafo grego Ptolomeu, elaborado originalmente no século II e reproduzido exaustivamente por copistas medievais. Este mapa separava fisicamente os oceanos Índico e Pacífico, estabelecendo a África como uma barreira de terra que ia até os confins da Terra ao sul. Contudo, desde a década de 1460 Portugal vinha tomando a iniciativa de tatear a costa da África à procura de uma passagem marítima para as "Índias" (termo que se referia não apenas à Índia em si, mas a todo sudeste asiático), desviando das rotas conhecidas dominadas pelos turcos otomanos no Mediterrâneo e na Ásia por terra. Estudando os clássicos (direta ou indiretamente, através do trabalho de estudiosos muçulmanos sobre clássicos gregos) e coligindo o as novidades trazidas por navegadores e astrônomos, Bartolomeu estava convencido de que uma rota para o oeste, Atlântico adentro, seria uma rota mais curta para as Índias do que o contorno da África, cuja extensão ainda não era totalmente conhecida. A ideia de que a rota do Atlântico seria mais curta não era novidade: ela havia sido proposta pelo astrônomo florentino Paolo Toscanelli ao rei Afonso V de Portugal quando Bartolomeu ainda era um aprendiz (porém o rei a rejeitou). Bartolomeu apresentou sua proposta ao rei João II em 1485, mas um corpo de especialistas avaliou que a distância proposta seria insuficiente para chegar à Ásia pelo oeste, e o projeto foi recusado.

O encontro dos irmãos em Lisboa levou Cristóvão a se estabelecer em Portugal. Bartolomeu o convenceu de que era possível alcançar a Índia pelo Atlântico, e Cristóvão viu nisso uma possibilidade de levar vantagem no estabelecimento do comércio entre Portugal e Índia. Quando Cristóvão reapresentou o projeto a João II em 1488, Bartolomeu Dias, navegador português, havia acabado de regressar da expedição onde encontrara o Cabo da Boa Esperança, o ponto mais setentrional da África de onde os portugueses poderiam se lançar diretamente à Índia. O rei português não demostrou mais interesse em Colombo. A proposta inicial dos irmãos Colombo (que incluía armar três naus e nomear Cristóvão "Grão Almirante do Oceano" e governador de todas as terras que encontrasse) foi rejeitada por uma comissão nomeada pelo rei João II, porque a distância estimada pelos Colombo era curta demais para se chegar à Ásia (e de fato era).

Cristóvão deixou Lisboa e tentou por conta própria financiamento para a sua expedição em Gênova e Veneza, sem sucesso. Bartolomeu tentou o rei Henrique VII da Inglaterra (quando foi assaltado por piratas) e depois Carlos VIII da França, em vão.

Em 1486, antes da recusa final de João II, Cristóvão ofereceu o projeto à corte unida de Castela e Aragão. Tanto num como noutro, o projeto foi recusado por causa da distância subestimada até a Ásia. Contudo, os reis Fernando e Isabel foram cativados pelo conceito de uma rota oceânica, e, para evitar que Colombo levasse o projeto a outro país, decidiram pagar-lhe um estipêndio anual e oferecer-lhe hospedagem e alimentação no país. Entusiasmado, Cristóvão continuou negociando com os reis católicos até conseguir sua aprovação em janeiro de 1492. A Reconquista estava completa, e os reinos espanhóis podiam direcionar seus investimentos em outras direções. Contudo, na audiência decisiva, Isabel recusara a última proposta de Colombo, e ele estava deixando o castelo de Alcázar no lombo de um burro quando Fernando interveio e pediu que Isabel enviasse um soldado para buscá-lo de volta. Nos seus escritos, Cristóvão creditava a Fernando a "razão pela qual aquelas ilhas (as Antilhas) foram descobertas". Seu segundo filho foi batizado Fernando em sua homenagem.

De janeiro a agosto as três naus foram armadas e preparadas, e sua tripulação contratada. Colombo capitanearia a caraca Santa Maria (anteriormente batizada "Galega"), a maior das três, enquanto Martin Alonso Pinzón e seu irmão Vicente Yáñez (que em 1498 chegaria à costa do nordeste brasileiro a caminho do Orinoco) pilotariam as caravelas Pinta e Nina, respectivamente. No dia 3 de agosto, a flotilha partiu o porto de Palos de la Frontera, no sudoeste espanhol, em direção à possessão espanhola das Ilhas Canárias, onde renovaram as provisões e fizeram reparos. De lá partiram em 6 de setembro para uma jornada de 5 semanas para o oeste até avistarem terra (a costa da ilha de Hispaniola, na atual República Dominicana). O contato com os nativos foi amistoso (com a bênção do cacique Guacanagari, Colombo deixou para trás uma pequena colônia com parte de seus homens no Haiti), exceto pelo encontro com os ciguayos no noroeste de Hispaniola, que, se recusando a fazer negócios com os estrangeiros, acabaram ferindo dois tripulantes. Porém, os relatos que trazia da existência de ouro e outras riquezas em potencial (como os próprios nativos que contactara, que lhe pareceram dóceis e facilmente conquistáveis) seriam de grande valia aos seus patronos. Para Colombo, a concretização da sua posse sobre aquelas terras, o direito a 10% de toda a produção e de 8% sobre todo o comércio com a coroa, ou seja, a garantia de uma vida de fartura para si e seus filhos.

A história da colonização das Américas ainda não estava selada. Na sua viagem de retorno, Colombo, pilotando a Niña, se viu obrigado por uma tempestade a buscar abrigo em Cabo Verde, possessão portuguesa. Depois de rezarem em uma igreja por terem sobrevivido à tormenta, a tripulação foi presa por dois dias por suspeita de pirataria. Mais uma tempestade desviou o navio para Lisboa. Ali Colombo conheceu Bartolomeu Dias, que o entrevistou antes de encaminhá-lo ao rei. João II, no entanto, não estava na cidade, e demoraria uma semana até Colombo encontrá-lo em Vale do Paraíso. Aos relatos do navegador sobre as terras encontradas do outro lado do oceano, João apenas considerou a expedição uma violação de tratados (o tratado de Alcáçovas de 1479 concedia a Portugal a posse de todas as terras a serem descobertas a oeste e ao sul das Canárias, sugerindo que os portugueses, de alguma maneira, já soubessem da existência da América embarreirando a passagem marítima para a Índia). Apenas depois disso Colombo revelou suas descobertas os reis espanhóis.

Colombo retornou à América (que só receberia este nome em um mapa impresso na Suíça em 1507, em homenagem a Américo Vespúcio, que acompanhou Colombo nas viagens seguintes e depois entraria a serviço da coroa portuguesa) mais três vezes, atingindo o continente de fato apenas na terceira viagem, quando margeou a costa venezuelana e desceu na Península de Paria. De fato, recebera o título de governador e Almirante do Oceano. Contudo, as desventuras de Colombo depois da quarta viagem merecem um artigo à parte, e gradualmente a coroa espanhola tomou e redistribuiu as terras prometidas à família (até fins do século XVIII, descendentes de Colombo ainda tentavam judicialmente recuperar a herança de Cristóvão).

Até o fim em 1506 Colombo estava convencido de que as ilhas que descobrira faziam parte do extremo oriente asiático (não a Índia propriamente dita, já que as pessoas que viviam ali não correspondiam às expectativas de "civilização" que esperavam da Índia). No seu plano de viagem, os irmãos Colombo davam como certo de que a Eurasia cobria 225° de longitude da curvatura terrestre (tese de Marino de Tiro, antecessor de Ptolomeu), e subestimava o comprimento longitudinal de um grau (adotavam a medida do cartógrafo árabe Alfraganus, sem se darem conta de que o autor se referia à milha arábica, mais curta do que a romana que os Colombos adotavam), de maneira que a América estava mais ou menos onde os Colombos previam que estaria a Ásia. Contrariando a crença popular de que, antes de Colombo, os europeus acreditavam que a Terra era plana, os especialistas que avaliavam e reprovavam o plano dos Colombo intuíam que a distância era curta demais - apenas não previam a existência de um continente desconhecido bem ali.

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