quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A volta para casa

Em 29 de outubro de 539 a.C., o rei Ciro II da Pérsia foi recebido na Babilônia como seu conquistador e libertador, após ter vencido em batalha e aprisionado o antigo imperador Nabonido. Neste dia, entre seus primeiros decretos, Ciro autorizou os judeus mantidos cativos na Babilônia a retornarem a suas terras e reconstruírem seu templo em Jerusalém.

Ciro era um nobre da tribo dos parsas, que habitavam o sudoeste do Irã e se submetiam aos seus primos medas do norte, que fundaram um império poderoso o suficiente para entrar em franca competição com os rivais do Império Neo-Babilônico, na Mesopotâmia, e da Lídia, no centro-oeste da atual Turquia. Ciro, com astúcia quase legendária, subjugara os dois. Em ambos os casos, após as vitórias militares, procurou manter intactas as estruturas físicas, sociais e religiosas locais, concedendo perdão e empregando em seu conselho mais próximo seus próprios adversários (o rei Creso, da Lídia, seria um deles). Impiedoso na guerra e magnânimo na vitória, excepcionalmente tolerante e receptivo com a pluralidade dos povos conquistados, criativo e industrioso como governante, Ciro, mesmo sendo um estrangeiro, seria quase sempre aceito como seu novo senhor.

Na Babilônia não foi diferente. Depois de Nabucodonosor II expandir seu império até a fronteira com o Egito, conquistando o que restava da Palestina, seu filho foi morto e o trono usurpado um punhado de vezes. A administração imperial ruiu diante da displicência de Nabonido. Os babilônicos podem ter percebido essa decadência associando-a ao fato de Nabonido ser um devoto do deus lunar Sîn, negligenciando Marduque, o deus patrono da cidade da Babilônia. Como ele passasse a maior parte do tempo retirado em um oásis longe da cidade, seu filho Belsazar atuava como regente. A arrogância de Belsazar se mostra no momento em que Babilônia está sitiada pelos exércitos persas, e o soberano resolve promover um enorme banquete, enquanto os persas cavavam para desviar o rio Eufrates do seu curso e abrir caminho a pé até os portões da cidade. Nabonido estava lá, impotente, e fora preso no começo de outubro, quando o general Gobrias entrou na cidade sem resistência. No dia 29 Ciro chegava da sua vitória mais recente, em Opis, no rio Tigre (Nabonido estava na capital fugido do avanço persa), e proclamava-se "Rei da Babilônia, Suméria e Acade, Rei dos quatro cantos do mundo".

Ciro foi um personagem celebrado ao longo da História. Ao forjar um império na Pérsia que se tornaria um centro de irradiação de cultura para metade da Ásia, suas obras, seus editos e seus feitos foram cuidadosamente preservados. Seu túmulo é uma das últimas estruturas ainda de pé onde antes existia a antiga capital de Pasárgada. Mesmo que, depois de séculos, a escrita cuneiforme (com a qual os documentos persas eram registrados em mais de uma língua) deixasse de ser inteligível, a memória de Ciro como fundador de impérios, pai de nações, libertador e salvador continuaria a ser perpetuada. E um dos conduítes em que a memória do reinado de Ciro, especialmente da sua conquista da Babilônia, atravessou o tempo e perdurou na cultura ocidental é o Antigo Testamento. A documentação produzida pelos babilônicos e pelos persas é uma oportunidade rara de contextualizar uma parte significativa do Antigo Testamento e da História do Judaísmo e fixá-las no tempo.

Os judeus emergiram como uma das doze tribos hebraicas que habitavam a Palestina, e, por razões religiosas e políticas, individualizou-se das demais tribos, emancipando-se do antigo reino de Israel após a morte do rei Salomão. O reino de Judá, com capital em Jerusalém, perdurou firmando ou quebrando alianças alternadamente com seus vizinhos do norte (Israel), do oeste (Moabe e Amon) e do sul (Edom e Egito, do qual, boa parte do tempo, era um reino-cliente). 

Para os poderes da Ásia, a Palestina era vital para manter em cheque a influência do Egito na região, bem como uma possível cabeça-de-ponte para ambições maiores no antigo reino africano. Em cerca de 734 a.C. o rei assírio Tiglate-Pileser conquistara Israel e destruíra sua capital Samaria. Este é um evento relatado duplamente nos segundos livros de Reis e Crônicas. Os livros também falam da captura do povo e sua deportação para a Assíria. A Assíria, segundo suas próprias fontes (que detalham que foram precisamente 27290 israelitas deportados), realizava deportações em massa sistematicamente, com o objetivo de diluir qualquer unidade étnica que poderia ajudar os povos cativos a se organizarem em revoltas contra o poder vigente. É uma lógica que perdurou por longo tempo, com finalidades diversas. Os escravos africanos na América tiveram dificuldade em articular algum tipo de resistência contra seus senhores por terem sido dispersos nas colônias, e colocados juntos de indivíduos de outras etnias, com línguas e tradições diversas, e frequentemente alguma rivalidade histórica. 

Os israelitas foram levados a Assíria em pelo menos duas grandes levas, com talvez uma terceira ocorrendo já dentro do território Assírio para o leste, eliminando qualquer possibilidade de articulação entre eles. As tribos do norte começam a desaparecer do registro bíblico a partir deste evento, embora a Mishná dê a entender que, séculos depois, os judeus ainda tivessem notícia das tribos israelitas no exterior. As Tribos Perdidas de Israel se tornariam tema de lendas espalhadas pela Ásia. Em 1605 o missionário jesuíta Matteo Ricci encontrou uma comunidade de judeus vivendo na China com cerca de 10 a 12 famílias, cuja notícia na Europa rapidamente fez crescer a crença popular de que haviam sido encontradas as Tribos Perdidas.

Judá sobreviveu à Assíria, e fez o jogo diplomático do novo império caldeu que a sucedera (o Império Neo-Babilônico). Em troca da proteção da Babilônia, o rei de Judá Joaquim concordou em enviar filhos da nobreza judaica como reféns à corte de Nabucodonosor. Este estado de coisas durou até que uma revolta pró-Egito irrompeu em Judá e provocou uma expedição punitiva dos caldeus. O rei Jeconias, filho de Joaquim, foi deposto pelas armas e sucedido pelo seu tio Zedequias. Zedequias também procurou apoio no Egito e provocou uma segunda invasão babilônica, na qual Nabucodonosor tomou Jerusalém e destruiu o Templo de Salomão (e neste momento chama a atenção que a Arca da Aliança, a relíquia máxima dos antigos hebreus, guardada no centro do Templo não é mencionada na narrativa, nem seu paradeiro é citado posteriormente). Os sobreviventes, entre eles Zedequias, o profeta Jeremias, bem como os cativos de todas as outras cidades de Judá arrasadas nas semanas anteriores, foram conduzidos à Babilônia. Nem todas as cidades foram destruídas, e uma parte dos judeus pode ter ficado para trás, mas um contingente significativo de cerca de 20 mil pessoas foi levado. Isto aconteceu provavelmente em 586 a.C.. Quatro anos depois o administrador de Judá apontado pela Babilônia para manter a terra produtiva, Gedalias, um judeu, foi assassinado, causando uma fuga em massa para o Egito e, possivelmente, mais deportações.

Porém, diferente do que aconteceu na Assíria, de alguma forma os judeus conseguiram manter-se coesos enquanto unidade étnica e nacional. Durante o exílio a tradição oral começou a ser transcrita (com a invenção do alfabeto hebraico), e surgem aí os primeiros livros da Torá e a estabilização da teologia hebraica, que vinha por muito tempo oscilando entre o politeísmo e o monocultismo, fato lamentado no próprio texto bíblico como razão para a queda de Jerusalém e o cativeiro na Babilônia. A exemplo da hierarquia religiosa babilônica, os escribas se tornam doutores e autoridades na religião, e assumem um papel elevado na sociedade judaica. Os judeus tinham uma certa autonomia nos domínios neo-babilônicos, participando ativamente da vida econômica do império. Alguns, como Daniel (um dos jovens nobres levados no primeiro momento) e Ester tiveram seu lugar na corte. Mesmo assim, os judeus eram cidadãos de segunda classe em uma terra estranha, e assim permaneceram por mais de quarenta anos.

Os judeus tinham confiança em seus profetas. O último de seus grandes profetas, Isaías (cujo livro parece ter sido escrito, se não por três autores, pelo menos em épocas diferentes), previra o fim do cativeiro na Babilônia e a restauração do Templo em Jerusalém. Quando Ciro tomou a cidade, aprisionou seu rei, e autorizou os judeus a retornarem a Judá (a província babilônia de Yehud, incorporada ao império persa), ele se tornou um salvador também para eles. Mesmo Ciro observando rigorosamente os ritos religiosos locais enquanto esteve na cidade (algo lembrado num texto babilônico conhecido como Crônicas de Nabonido), e retendo para si uma firme fé no Zoroastrismo, o cumprimento da profecia do início do livro de Isaías fez com que ele, Ciro, viesse a ser chamado no mesmo livro por Messias:

Assim disse o SENHOR ao seu Messias, a Ciro, de quem tomo pela mão direita para abater as nações diante de si, e afrouxar os cinturões dos reis, a abrir as portas diante dele, e as portas não se fecharão” (Is 45.1)

Messias significa “ungido pelo Senhor”, e é uma palavra associada aos reis hebraicos ou seus sumo-sacerdotes, que eram ungidos com óleo sagrado durante a coroação. Ciro é o único personagem não hebraico a ser chamado Messias em toda a Bíblia, não apenas por ser um rei, mas por ser um ungido espiritualmente pelo Senhor. Era o salvador que redimira os judeus dos seus pecados e os reconduziriam à Terra Prometida, como as profecias previram. O profeta Esdras vai adiante, e descreve o que teria sido o Edito de Ciro, em que libertava os judeus do cativeiro. Ele abre seu livro alegando ter sido o Edito obra de inspiração do seu Deus:

No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia (para que se cumprisse a palavra do SENHOR, pela boca de Jeremias), despertou o SENHOR o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito...” (Ed 1:1)

Eventualmente, em períodos mais tardios, vivendo sob administradores menos piedosos, entre persas e gregos, os profetas novamente se voltaram para a promessa da vinda de um Messias entre eles, que redimiria pecados, unificaria as tribos, reconstruiria o Templo e operaria milagres, mas, do ponto de vista dos judeus, este ainda está por vir.

Ciro era engenhoso, e sempre tinha um plano em mente. Sua política de tolerância e promoção das identidades dos povos sob seu domínio, e pesados investimentos em infraestrutura e melhorias na qualidade de vida, resultava em populações leais e satisfeitas, minimizando a necessidade de uma presença militar repressiva em um território que se transformava no maior império que o mundo vira até então. Existe um registro na Babilônia de uma ordem sua para que todos os povos retornassem às suas terras. Os judeus em particular retornariam para um território tradicional que, convenientemente, era a porta de entrada para o Egito. Ciro precisava desse território para fortificar suas defesas contra o reino rival com o menor custo possível (era preferível ter a estreita faixa de terra do deserto do Negueve entre ele e o Egito do que, por exemplo, ter que defender toda a linha a leste dos rios Jordão e Orontes, ou do Eufrates), ou para usá-lo como base para uma campanha na África. Para firmar a aliança com os judeus, autorizou a construção do Templo em Jerusalém.


De qualquer forma, os judeus tinham negócios na Babilônia, e eles não retornaram todos ao mesmo tempo. O afluxo de judeus para Yehud foi gradual ao longo de cerca de vinte anos. Quando chegaram lá, tiveram que disputar espaço com as populações locais, judeus e samaritanos remanescentes ou caldeus e demais estrangeiros que ocuparam aquele vazio, que viviam entre as ruínas de Jerusalém e nas outras cidades que existiam. Por esta razão, passaram-se quase vinte anos até que a situação se estabilizasse. Foi apenas durante o reinado de Dario, em 521 a.C., e sob o estímulo financeiro do governador local Zorobabel, que as obras de reconstrução do Templo começaram (ele foi terminado em 516 a.C.). A pedra fundamental do Segundo Templo, colocada no exato local onde repousava a Arca da Aliança, ainda está lá, no interior do Domo da Rocha, mesquita construída em 691 sobre os seus escombros. Teria sido naquele local, ainda em escombros, que Maomé teria recebido a visita em sonho do anjo Gabriel, revelando-lhe os mistérios o Islã.

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