Em 29 de outubro de 539 a.C., o rei Ciro II da Pérsia foi
recebido na Babilônia como seu conquistador e libertador, após ter vencido em
batalha e aprisionado o antigo imperador Nabonido. Neste dia, entre seus
primeiros decretos, Ciro autorizou os judeus mantidos cativos na Babilônia a
retornarem a suas terras e reconstruírem seu templo em Jerusalém.
Ciro era um nobre da tribo dos parsas, que habitavam o
sudoeste do Irã e se submetiam aos seus primos medas do norte, que fundaram um
império poderoso o suficiente para entrar em franca competição com os rivais do
Império Neo-Babilônico, na Mesopotâmia, e da Lídia, no centro-oeste da atual Turquia. Ciro, com astúcia quase legendária, subjugara os dois. Em ambos
os casos, após as vitórias militares, procurou manter intactas as estruturas
físicas, sociais e religiosas locais, concedendo perdão e empregando em seu
conselho mais próximo seus próprios adversários (o rei Creso, da Lídia, seria
um deles). Impiedoso na guerra e magnânimo na vitória, excepcionalmente
tolerante e receptivo com a pluralidade dos povos conquistados, criativo e
industrioso como governante, Ciro, mesmo sendo um estrangeiro, seria quase
sempre aceito como seu novo senhor.
Na Babilônia não foi diferente. Depois de Nabucodonosor II expandir seu império até a fronteira com o Egito, conquistando o que restava da
Palestina, seu filho foi morto e o trono usurpado um punhado de
vezes. A administração imperial ruiu diante da displicência de Nabonido. Os babilônicos podem ter percebido essa decadência associando-a ao
fato de Nabonido ser um devoto do deus lunar Sîn, negligenciando Marduque, o
deus patrono da cidade da Babilônia. Como ele passasse a maior parte do tempo
retirado em um oásis longe da cidade, seu filho Belsazar atuava como regente. A
arrogância de Belsazar se mostra no momento em que Babilônia está sitiada pelos
exércitos persas, e o soberano resolve promover um enorme banquete, enquanto os
persas cavavam para desviar o rio Eufrates do seu curso e abrir caminho a pé
até os portões da cidade. Nabonido estava lá, impotente, e fora preso no
começo de outubro, quando o general Gobrias entrou na cidade sem resistência.
No dia 29 Ciro chegava da sua vitória mais recente, em Opis, no rio Tigre
(Nabonido estava na capital fugido do avanço persa), e proclamava-se "Rei
da Babilônia, Suméria e Acade, Rei dos quatro cantos do mundo".
Ciro foi um personagem celebrado ao longo da História. Ao
forjar um império na Pérsia que se tornaria um centro de irradiação de cultura
para metade da Ásia, suas obras, seus editos e seus feitos foram cuidadosamente
preservados. Seu túmulo é uma das últimas estruturas ainda de pé onde antes existia a antiga capital de Pasárgada. Mesmo que, depois de séculos, a escrita cuneiforme (com a qual os
documentos persas eram registrados em mais de uma língua) deixasse de ser
inteligível, a memória de Ciro como fundador de impérios, pai de nações,
libertador e salvador continuaria a ser perpetuada. E um dos conduítes em que a
memória do reinado de Ciro, especialmente da sua conquista da Babilônia,
atravessou o tempo e perdurou na cultura ocidental é o Antigo Testamento. A documentação
produzida pelos babilônicos e pelos persas é uma oportunidade rara de
contextualizar uma parte significativa do Antigo Testamento e da História do
Judaísmo e fixá-las no tempo.
Os judeus emergiram como uma das doze tribos hebraicas que
habitavam a Palestina, e, por razões religiosas e políticas, individualizou-se
das demais tribos, emancipando-se do antigo reino de Israel após a morte do rei Salomão. O reino de Judá, com capital em Jerusalém,
perdurou firmando ou quebrando alianças alternadamente com seus vizinhos do
norte (Israel), do oeste (Moabe e Amon) e do sul (Edom e Egito, do qual, boa parte do
tempo, era um reino-cliente).
Para os poderes da Ásia, a Palestina era vital
para manter em cheque a influência do Egito na região, bem como uma possível
cabeça-de-ponte para ambições maiores no antigo reino africano. Em cerca de 734 a.C. o rei assírio Tiglate-Pileser
conquistara Israel e destruíra sua capital Samaria. Este é um evento relatado
duplamente nos segundos livros de Reis e Crônicas. Os livros também falam da
captura do povo e sua deportação para a Assíria. A Assíria, segundo suas
próprias fontes (que detalham que foram precisamente 27290 israelitas
deportados), realizava deportações em massa sistematicamente, com o objetivo de
diluir qualquer unidade étnica que poderia ajudar os povos cativos a se
organizarem em revoltas contra o poder vigente. É uma lógica que perdurou por
longo tempo, com finalidades diversas. Os escravos africanos na América tiveram
dificuldade em articular algum tipo de resistência contra seus senhores por
terem sido dispersos nas colônias, e colocados juntos de indivíduos de outras
etnias, com línguas e tradições diversas, e frequentemente alguma rivalidade
histórica.
Os israelitas foram levados a Assíria em pelo menos duas grandes
levas, com talvez uma terceira ocorrendo já dentro do território Assírio para o
leste, eliminando qualquer possibilidade de articulação entre eles. As tribos
do norte começam a desaparecer do registro bíblico a partir deste evento, embora
a Mishná dê a entender que, séculos depois, os judeus ainda tivessem notícia
das tribos israelitas no exterior. As Tribos Perdidas de Israel se tornariam
tema de lendas espalhadas pela Ásia. Em 1605 o missionário jesuíta Matteo Ricci
encontrou uma comunidade de judeus vivendo na China com cerca de 10 a 12
famílias, cuja notícia na Europa rapidamente fez crescer a crença popular de
que haviam sido encontradas as Tribos Perdidas.
Judá sobreviveu à Assíria, e fez o jogo diplomático do novo império caldeu que a sucedera (o Império Neo-Babilônico). Em troca da proteção
da Babilônia, o rei de Judá Joaquim concordou em enviar filhos da nobreza
judaica como reféns à corte de Nabucodonosor. Este estado de coisas durou até que
uma revolta pró-Egito irrompeu em Judá e provocou uma expedição punitiva dos
caldeus. O rei Jeconias, filho de Joaquim, foi deposto pelas armas e sucedido pelo seu tio
Zedequias. Zedequias também procurou apoio no Egito e provocou uma segunda
invasão babilônica, na qual Nabucodonosor tomou Jerusalém e destruiu o Templo
de Salomão (e neste momento chama a atenção que a Arca da Aliança, a relíquia
máxima dos antigos hebreus, guardada no centro do Templo não é mencionada na
narrativa, nem seu paradeiro é citado posteriormente). Os sobreviventes, entre
eles Zedequias, o profeta Jeremias, bem como os cativos de todas as outras
cidades de Judá arrasadas nas semanas anteriores, foram conduzidos à Babilônia.
Nem todas as cidades foram destruídas, e uma parte dos judeus pode ter ficado
para trás, mas um contingente significativo de cerca de 20 mil pessoas foi
levado. Isto aconteceu provavelmente em 586 a.C.. Quatro anos depois o
administrador de Judá apontado pela Babilônia para manter a terra produtiva,
Gedalias, um judeu, foi assassinado, causando uma fuga em massa para o Egito e,
possivelmente, mais deportações.
Porém, diferente do que aconteceu na Assíria, de alguma
forma os judeus conseguiram manter-se coesos enquanto unidade étnica e
nacional. Durante o exílio a tradição oral começou a ser transcrita (com a
invenção do alfabeto hebraico), e surgem aí os primeiros livros da Torá e a
estabilização da teologia hebraica, que vinha por muito tempo oscilando entre o
politeísmo e o monocultismo, fato lamentado no próprio texto bíblico como razão
para a queda de Jerusalém e o cativeiro na Babilônia. A exemplo da hierarquia
religiosa babilônica, os escribas se tornam doutores e autoridades na religião,
e assumem um papel elevado na sociedade judaica. Os judeus tinham uma certa
autonomia nos domínios neo-babilônicos, participando ativamente da vida
econômica do império. Alguns, como Daniel (um dos jovens nobres levados no primeiro
momento) e Ester tiveram seu lugar na corte. Mesmo assim, os judeus eram
cidadãos de segunda classe em uma terra estranha, e assim permaneceram por mais
de quarenta anos.
Os judeus tinham confiança em seus profetas. O último de
seus grandes profetas, Isaías (cujo livro parece ter sido escrito, se não por três
autores, pelo menos em épocas diferentes), previra o fim do cativeiro na
Babilônia e a restauração do Templo em Jerusalém. Quando Ciro tomou a cidade, aprisionou seu
rei, e autorizou os judeus a retornarem a Judá (a província babilônia de Yehud,
incorporada ao império persa), ele se tornou um salvador também para eles.
Mesmo Ciro observando rigorosamente os ritos religiosos locais enquanto esteve
na cidade (algo lembrado num texto babilônico conhecido como Crônicas de
Nabonido), e retendo para si uma firme fé no Zoroastrismo, o cumprimento da profecia do início do livro de Isaías fez com que
ele, Ciro, viesse a ser chamado no mesmo livro por Messias:
“Assim disse o SENHOR ao seu Messias, a Ciro, de quem tomo pela mão direita para abater as nações diante de si, e afrouxar os cinturões dos reis, a abrir as portas diante dele, e as portas não se fecharão” (Is 45.1)
Messias significa “ungido pelo Senhor”, e é uma palavra
associada aos reis hebraicos ou seus sumo-sacerdotes, que eram ungidos com óleo sagrado durante a
coroação. Ciro é o único personagem não hebraico a ser chamado Messias em toda a Bíblia, não
apenas por ser um rei, mas por ser um ungido espiritualmente pelo Senhor. Era o
salvador que redimira os judeus dos seus pecados e os reconduziriam à Terra
Prometida, como as profecias previram. O profeta Esdras vai adiante, e descreve
o que teria sido o Edito de Ciro, em que libertava os judeus do cativeiro. Ele abre seu livro alegando ter sido o Edito obra de inspiração do seu Deus:
“No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia (para que
se cumprisse a palavra do SENHOR, pela boca de Jeremias), despertou o SENHOR o
espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino,
como também por escrito...” (Ed 1:1).
Eventualmente, em períodos mais tardios, vivendo sob administradores menos piedosos, entre persas e gregos, os profetas novamente se voltaram para
a promessa da vinda de um Messias entre eles, que redimiria pecados, unificaria
as tribos, reconstruiria o Templo e operaria milagres, mas, do ponto de vista
dos judeus, este ainda está por vir.
Ciro era engenhoso, e sempre tinha um plano em mente. Sua
política de tolerância e promoção das identidades dos povos sob seu domínio, e pesados investimentos em infraestrutura e melhorias na qualidade de vida, resultava em populações leais e satisfeitas, minimizando a necessidade de uma
presença militar repressiva em um território que se transformava no maior
império que o mundo vira até então. Existe
um registro na Babilônia de uma ordem sua para que todos os povos retornassem às
suas terras. Os judeus em particular retornariam para um território tradicional
que, convenientemente, era a porta de entrada para o Egito. Ciro precisava
desse território para fortificar suas defesas contra o reino rival com o menor
custo possível (era preferível ter a estreita faixa de terra do deserto do
Negueve entre ele e o Egito do que, por exemplo, ter que defender toda a linha
a leste dos rios Jordão e Orontes, ou do Eufrates), ou para usá-lo como base
para uma campanha na África. Para firmar a aliança com os judeus, autorizou a
construção do Templo em Jerusalém.
De qualquer forma, os judeus tinham negócios na Babilônia, e
eles não retornaram todos ao mesmo tempo. O afluxo de judeus para Yehud foi
gradual ao longo de cerca de vinte anos. Quando chegaram lá, tiveram que
disputar espaço com as populações locais, judeus e samaritanos remanescentes ou
caldeus e demais estrangeiros que ocuparam aquele vazio, que viviam entre as
ruínas de Jerusalém e nas outras cidades que existiam. Por esta razão, passaram-se quase vinte anos até que a situação se estabilizasse. Foi apenas durante o
reinado de Dario, em 521 a.C., e sob o estímulo financeiro do governador local
Zorobabel, que as obras de reconstrução do Templo começaram (ele foi terminado
em 516 a.C.). A pedra fundamental do Segundo Templo, colocada no exato local
onde repousava a Arca da Aliança, ainda está lá, no interior do Domo da Rocha,
mesquita construída em 691 sobre os seus escombros. Teria sido naquele local,
ainda em escombros, que Maomé teria recebido a visita em sonho do anjo
Gabriel, revelando-lhe os mistérios o Islã.
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