quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A conquista normanda

Em 14 de outubro de 1066, o exército comandado por Guilherme II, Duque da Normandia, derrotou o exército saxão do rei Haroldo II na Batalha de Hastings, no sul da Inglaterra, mudando para sempre a História daquele país.

A ascensão dos normandos como senhores da Inglaterra começou com o assentamento de um bando de vikings sob o comando de Rolo na Normandia. "Normando" é uma corruptela de como os franceses chamavam os nórdicos ("nortmann", "homens do norte" na antiga língua francônia) que atacavam seu litoral e as terras do interior subindo seus rios. O rei Carlos, o Simples, com dificuldade em controlá-los, ofereceu-lhes terras em troca de lealdade. A Normandia, convertida em ducado mais tarde, se tornou próspera, e os normandos ali adotaram a língua, a religião, e os costumes dos franceses, integrando-se à vida social e política dos seus suseranos. E, integrando-se à vida política, o Duque da Normandia tornou-se uma figura significante o suficiente para estabelecer laços com a nobreza saxônica. Em 1002, o rei Etelredo II da Inglaterra se casou com Ema, irmã do duque Ricardo II da Normandia.

A Inglaterra era um antigo amálgama de tribos ânglicas e saxônicas que vieram da Europa para ocupar o vácuo de poder deixado pela retirada dos romanos da ilha. Na virada do milênio, a Inglaterra era algo parecido, mas mais sofisticado do que uma confederação de senhores de reinos saxões mais antigos, sob um rei eleito em comum acordo por esses nobres. A Inglaterra ainda não tinha assegurada a supremacia sobre a toda a ilha da Grã-Bretanha, restrita na verdade às suas regiões centrais, o sul e o leste, dividindo fronteiras com pequenos reinos célticos no País de Gales e na Escócia, e colônias dinamarquesas resistindo aqui e ali.

A questão dos invasores dinamarqueses era antiga Nos séculos anteriores, a presença ostensiva de senhores dinamarqueses colocou grande parte da Inglaterra sob o que seria conhecido como Danelaw, ou literalmente "Lei dos Dinamarqueses", que na prática era todo território sob jugo dinamarquês na ilha ou no continente. No mesmo ano de 1002, Etelredo decretou que todo dinamarquês que fosse encontrado na Inglaterra seria executado (o que foi realmente levado a cabo no Massacre do Dia de São Brício). As invasões vikings, contudo, continuaram a ser um problema, e os normandos eram chamados para reforçar as linhas saxônicas. Em 1013 Etelredo teve de fugir para a Normandia diante de uma invasão dinamarquesa maciça, deixando provisoriamente o trono inglês para o rei Sven Barbafendida (os epônimos dos reis nórdicos merecem um artigo à parte), e três anos depois para seu sucessor Canuto, o Grande, que incorporou toda a Inglaterra anglo-saxônica aos seus domínios.

Em 1042 o filho de Etelredo e sua esposa normanda, Eduardo, assumiu o trono inglês. Ele passara vários anos com o pai no exílio na Normandia, e, sendo meio normando, a presença normanda entre clérigos e seus cortesãos à sua volta era grande. Sua posição na Inglaterra não era estável. Contava com a competição de Godwin, conde de Wessex, e dependia do apoio normando para impor sua autoridade. A estabilidade do trono inglês ruiu quando Eduardo morreu em 1066, sem deixar descendentes. Um dos filhos de Godwin, Haroldo II, tomou a coroa para si.

Na Normandia, Guilherme II ascendera ainda jovem ao título de duque, e passara os últimos 30 anos defendendo-se contra parentes rivais, usurpadores e invasores de todos os lados. Durante alguns anos ofereceu guarida ao príncipe Eduardo, seu parente, e aparentemente era seu favorito à sucessão ao trono inglês. Guilherme chegou a viajar à Inglaterra em 1051, aparentemente para se apresentar à corte ou sondar as condições políticas que o esperavam. Veio a conhecer Haroldo enquanto ainda era duque de Wessex. Ele teria naufragado na costa normanda enquanto viajava por alguma razão incerta e trazido à presença de Guilherme. Teria marchado e lutado ao seu lado na Bretanha, e jurado defender seu direito ao trono inglês. A verdade era que a sucessão ao trono inglês era decidida por escolha dos nobres saxões. Não era automática, e nem Eduardo deixara explícito em decreto quem deveria sucedê-lo, de maneira que Haroldo, naquele momento, era o nome mais forte. Quando Haroldo subiu ao trono, os normandos teriam considerado o ato uma traição. Isso serviu de pretexto para Guilherme lançar sua expedição à Inglaterra. Por precaução, Haroldo posicionou um exército na Ilha de Wight, no Canal da Mancha, mas como os normandos se demorassem, os trouxe de volta logo porque seus suprimentos estavam se esgotando.

Antes da expedição normanda, que atrasava devido a ventos desfavoráveis, Haroldo teve que se mobilizar novamente para resistir a uma invasão norueguesa no norte no país. Harald Hardrada havia se aliado com um irmão rebelde do rei saxão. Embora tenha sido bem sucedido e provocado a morte do rei norueguês em batalha, Haroldo perdera homens e aliados importantes. Esta batalha crucial, a Batalha da Ponte de Stamford, aconteceu no dia 20 de setembro. Sete dias depois, até 700 embarcações normandas navegavam em direção à costa inglesa. Haroldo teve que trazer seu exército do norte, provavelmente 7 mil soldados, marchando por mais de 380 quilômetros até a costa de Sussex, no sul, para encontrar os invasores normandos perto de Hastings (é provável que ele estivesse marchando para Londres quando soube, no caminho, que os normandos haviam chegado).

Uma das principais fontes sobre a Batalha de Hastings é a formidável tapeçaria de Bayeux, uma peça 70 metros de comprimento por meio metro de largura, de linho e lã, bordada com extraordinários detalhes em cores vívidas, retratando em cerca de 60 cenas separadas os eventos da batalha, sua contextualização histórica, com suas respectivas legendas. Há inclusive com uma passagem que sugere a aparição provavelmente do cometa Halley prenunciando a vitória de Guilherme (o cometa foi avistado na Europa em abril daquele ano). A tapeçaria parece ter sido elaborada pela esposa de Guilherme e outras damas após a sua vitória, exaltando-o particularmente. De qualquer forma, na falta de crônicas contemporâneas de testemunhas da batalha (as que sobreviveram são bastante contraditórias), a tapeçaria continua a ser uma das melhores fontes de informação sobre Hastings.

Os dois exércitos se encontraram ao norte de Hastings, na atual cidade de Battle ("Batalha", batizada segundo a Abadia da Batalha erguida no local posteriormente), pela manhã do dia 14 de outubro. Os saxões, em menor número devido às batalhas contra Hardrada semanas antes e pela desmobilização das tropas no sul no mês anterior, se posicionou sobre a colina de Caldbec, colocando-se em um semicírculo compacto protegido nos flancos por árvores, formando uma parede com seus escudos. Guilherme dispôs seus homens, cerca de 10 mil, em três companhias (bretões à esquerda, normandos no meio, franceses à direita). A posição e disposição dos saxões anulou o ataque dos arqueiros normandos (atirando para cima, suas flechas ricocheteavam na parede de escudos, ou voavam por sobre o morro). A investida seguinte dos lanceiros de Guilherme foi repelida com dardos e pedras (os saxões tinham poucos arqueiros). A cavalaria também não conseguiu alcançá-los. A divisão dos bretões começou a recuar, e entre os saxões surgiu o rumor de que Guilherme havia morrido, e eles começaram a abandonar a formação e perseguir os inimigos, possivelmente a despeito das ordens de Haroldo de manterem sua posição. Guilherme teve que cavalgar até a linha de frente para mostrar que ainda estava vivo, e, com moral renovada, os normandos deram meia volta e retornaram à carga contra as linhas saxônicas fragmentadas. Dois irmãos de Haroldo foram mortos nesse momento.

As lutas diminuíram de intensidade no começo da tarde, enquanto os soldados almoçavam, mas mesmo assim os arqueiros continuavam atirando e os saxões continuavam perseguindo unidades isoladas. Pelo menos duas vezes os normandos fingiram bater em retirada para induzir a novas perseguições desorganizadas (na segunda vez, já sem efeito). Dois cavalos foram mortos enquanto eram montados pelo duque normando. No final do dia, os normandos pareciam frustrados, pois Haroldo mantinha sua posição segura sobre a colina e não parecia haver meios de tirá-lo dali. Mas, no momento crítico, uma flecha atingiu rei Haroldo bem no olho, e talvez quatro cavaleiros normandos se aproximaram e o mataram. Sem seu rei, os saxões entraram em pânico. Muitos fugiram, outros se atiraram temerariamente sobre os inimigos, e alguns defenderam o corpo do seu rei até o fim. Ao anoitecer, os normandos haviam vencido. Os corpos dos soldados mortos foram deixados no campo. O corpo de Haroldo foi identificado, e seu estandarte entregue a Guilherme.

O duque normando prosseguiu Inglaterra adentro, esperando ser aclamado rei pelos duques saxões, pelo direito que ele achava que tinha. Mas ao saber que Edgar de Wessex foi eleito para o lugar de Haroldo, Guilherme abriu caminho pelo fio da espada até Londres. Quando chegou à capital inglesa, os nobres que apoiavam Edgar se renderam, obrigando-o a fugir do país. Guilherme foi coroado rei da Inglaterra em dezembro - Guilherme, o Conquistador, como ele ficaria conhecido na posteridade.

A conquista de Guilherme da Normandia teve repercussões tão profundas no equilíbrio geopolítico da Europa que podem ser sentidas até hoje. Muitos saxões deixaram o país nos anos que se seguiram e se assentaram na Escócia, na Irlanda, ou foram empregados como mercenários pelo Império Bizantino, ao passo que cerca de 8 mil normandos chegaram à Inglaterra no primeiro momento. Os casamentos entre os dois povos gradualmente geraram uma identidade nacional que não era mais saxônica, nem tampouco francesa ou normanda. O francês foi, até relativamente pouco tempo, a língua da corte inglesa (Guilherme e seus descendentes nem sequer entendiam a língua nativa; até hoje, o lema oficial da monarquia é "Dieu et mon droit", "Deus e o meu direito" em francês), e serviu como elemento modificador da antiga língua anglo-saxônica, ou inglês antigo, de matriz germânica, para transformá-la gradualmente no inglês atual, a lingua franca do século XXI. A escravidão, instituição que predatava a conquista romana da ilha, foi substituída pelas relações de servidão e vassalagem típicas do feudalismo francês, modelo econômico e administrativo que foi importado e adaptado ao contexto político inglês pelos conquistadores.

Talvez de forma mais significativa, a substituição dos saxões pelos normandos como a classe dominante na Inglaterra também teve um efeito duradouro. Agora o rei da Inglaterra era o Duque da Normandia, ou seja, um vassalo do rei da França. Os reis franceses, para diminuir o poder do vizinho sobre suas próprias terras, reduziram gradualmente suas possessões no continente, extirpando-os até da Normandia. Em certo momento, por questões dinásticas, o rei da Inglaterra também passou a ser um herdeiro possível do trono francês. Essa ambiguidade do direito ao trono inglês e vice versa serviu de pretexto para as várias guerras entre Inglaterra e França ao longo de toda a Idade Média e além, como a Guerra dos Cem Anos, o envolvimento mútuo nas guerras de independência na América, as Guerras Napoleônicas, e a partilha da África e da China. Esse abismo diplomático, agravado pela prosperidade competitiva dos dois países em relação aos vizinhos a sul e a leste e sua consequente rivalidade econômica e militar (atenuados apenas a partir do século XIX), também levou a uma rivalidade étnica que perdura até os dias atuais.

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