segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Um cardeal a menos

Em 17 de agosto de 1498, Cesare Borgia renunciou ao cardinalato em Roma. Foi a primeira vez na História em que um cardeal renunciou espontaneamente ao cargo.

No século XV, o Papado era, como hoje, uma instituição religiosa, a liderança espiritual do catolicismo, cujo alcance e influência, em termos proporcionais, eram muito mais abrangentes do que a atualidade na Europa. Além disso, o Papado também era uma instituição política importante: como hoje, o Papa também é o chefe de Estado de uma monarquia eletiva, que hoje é a pequena cidade-estado do Vaticano, mas que, naquele tempo, compreendia uma faixa de terra que atravessava a Itália de costa a costa (e alguns enclaves feudais aqui e ali), com capital em Roma, os Estados Papais. Como senhor de terras, as relações seculares entre o Papa e os demais reis, duques, doges e etc. podia chegar facilmente às vias de fato, e não poucas vezes o Papa teve que liderar exércitos para defender seu território contra invasores, ou confirmar sua autoridade, sempre contra outros católicos.

A confusão entre as relações institucionais talvez tenha sido, se não a causa, um veículo para o estado de coisas em que o Papado se encontrava no final do século XV: membros do clero, a quem o celibato era obrigatório, tinham suas amantes e seus filhos, e essas relações pessoais e familiares influenciavam pesadamente na ordenação, na indicação de cargos, e na própria eleição do Papa - apenas 4 dos 27 cardeais aptos a votar no Conclave eram clérigos de carreira quando Alexandre VI foi eleito, sendo os demais indicados ao cardinalato por relações de parentesco, por indicação de algum nobre (ou eles mesmos nobres), ou em reconhecimento pelos serviços de suas famílias à Igreja. Além disso, uma grande parte da verba arrecadada com impostos sobre as atividades econômicas das terras submetidas ao Papado sustentava, como em qualquer outro reino europeu, luxos incompatíveis com o que se esperava dos mensageiros de Cristo. Reformistas se levantaram dentro da Igreja repetidas vezes, e estes foram alguns dos fatores que finalmente levaram ao movimento da Reforma Protestante.

Nesses meandros emergiu a família Borgia (originalmente, "Borja"), cujo patriarca, Alfonso, filho de um nobre espanhol, foi apoiador do Papa de Roma durante o Cisma da Igreja em 1429, sendo eleito mais tarde Papa Calixto III. Calixto era tio de Rodrigo Borgia, cuja carreira na Igreja avançou rapidamente após a eleição do tio, chegando a vice-chanceler apostólico aos 26 anos. Rodrigo também "herdara" o bispado de Valência, deixado vago por Alfonso, e poucos dias antes da morte de um de seus sucessores, Inocente VIII, ele conseguiu transformá-la em uma sé metropolitana, tornando-o arcebispo.

Rodrigo Borgia acabaria eleito Papa, sucedendo Inocente VIII como Alexandre VI em 1492. Acontecia que Alexandre, desde pelo menos 1470, quando já era cardeal, tinha um caso notório com Giovanna de Cattanei, com quem teve pelo menos 4 filhos (os quatro reconhecidos por Alexandre como seus). Cesare era o segundo deles, nascido em 1475. Apesar do escândalo (além de tudo, Giovanna era casada), Alexandre VI não tinha embaraços para lidar com o assunto. Ao ser eleito, ele criou 12 novos cardeais, nomeando seus filhos Giovanni (o mais velho) e Cesare, além de Alessandro Farnese, irmão de outra amante, Giulia, e futuro Papa Paulo III. Cesare tinha 18 anos. Assim mantinha a cúria sob controle, o que lhe foi de grande utilidade quando tanto Milão quanto a França ameaçaram intervir contra ele (ambos tinham outros candidatos a Papa em mente).

Cesare crescia à sobra do irmão Giovanni, nomeado Duque de Gandia e Condestável do reino de Nápoles, um jovem e capaz comandante militar. Cesare mesmo demonstrava potencial, de modo que cronistas contemporâneos e historiadores posteriores conjecturavam uma rivalidade entre os dois. Os dois compartilhavam da mesma amante, que também era esposa de seu irmão mais novo Gioffre. Um dia, Giovanni saiu para cavalgar, mas o cavalo retornou sozinho com um estribo cortado, e seu corpo foi resgatado do rio Tibre com a garganta cortada. Rumores insinuavam o envolvimento de Cesare, mas investigações na época indicavam roubo (embora uma bolsa com moedas de ouro tenha sido encontrada com o corpo). É mais provável que Gioffre tenha sido o mandante do crime. De qualquer maneira, com o caminho aberto para sua carreira militar, Cesare optou por renunciar ao cardinalato para servir no norte da Itália, no recém conquistado Ducado de Milão (o rei da França, seu aliado, lhe concedeu o título nobiliárquico de Duque de Valentinois, em referência à sua ascendência valenciana, embora isso não lhe concedesse direito a terras, já que Valência não pertencia à França). Ele atuou com muito sucesso em várias campanhas das guerras italianas do seu tempo, em Milão e em Nápoles. Seu prestígio atraiu os serviços de Leonardo da Vinci, de quem foi patrono durante alguns anos.

Cesare ainda se envolveria em outro caso de assassinato, desta vez de Perotto, um camarista, amante de sua irmã Lucrécia. Seu corpo também foi resgatado sem vida do rio Tibre depois que Cesare descobriu que ela estava grávida. Ele também teria planejado a morte por envenenamento do cardeal Adriano de Corneto, mas teria envenenado acidentalmente seu próprio pai, causando sua morte em 1503 (ele mesmo se envenenara na mesma ocasião, mas se recuperara meses depois). A morte de Alexandre e do seu sucessor Pio III (eleito enquanto mercenários leais a Cesare ocupavam o Conclave) tirou o apoio político do qual gozava. O Papa Júlio II e o rei Fernando II de Aragão conspiraram de todas as formas contra ele. Cesare foi preso, se tornou um fugitivo, e terminou morto em uma emboscada aos 29 anos.

Embora continuassem perseguidos pela nobreza italiana (que via os Borgia, de origem espanhola, com desdém e invejava sua influência) os Borgia continuariam, nominalmente, ou através de seus casamentos, parentes e afilhados, como membros da nobreza européia e atores da alta política e dos negócios durante todo o Renascimento e a Era dos Descobrimentos

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