terça-feira, 11 de agosto de 2015

Tensão Brutal

Em 11 de agosto de 1965, uma abordagem policial a um motorista embriagado no bairro de Watts, no sul de Los Angeles, degenerou rapidamente em conflitos raciais que durariam quase uma semana.

Tudo começou quando o jovem negro Marquette Fryes foi parado por um patrulheiro enquanto dirigia aparentemente embriagado. Enquanto era autuado e o carro apreendido, seu irmão, Ronald, que vinha de carona, correu até a sua casa na vizinhança e trouxe sua mãe, Rena Price, proprietária do carro, para ver o que podia fazer. Rena repreendeu veementemente Marquette por dirigir alcoolizado. Mas neste momento, alguém (ninguém sabe precisar quem) empurrou Rena e golpeou Marquette. Rena reagiu pulando sobre um policial, enquanto outro sacou sua arma. Vários policiais chegaram para prender os três. Nisso, rumores na vizinhança de que policiais estavam agredindo Rena e uma outra mulher grávida fizeram com que os moradores locais, todos negros, se juntassem em volta. Alguns insultos foram seguidos de pedras e outros objetos jogados contra os policiais, evoluindo para confronto generalizado. Durante aquela noite, a polícia foi chamada várias vezes para conter a turba enfurecida. Ao longo dos 6 dias seguintes, cerca de 30 mil negros ocuparam as ruas em Watts, alguns depredando, queimando e saqueando estabelecimento de comerciantes brancos, além de seus carros (motoristas brancos eram parados, arrancados de seus carros e surrados na rua), causando destruição num raio de quase 120 km². Reuniões entre o governo e representantes da comunidade fracassaram. A Guarda Nacional enviou milhares de soldados para conter os tumultos. Foram 34 mortos, mais de mil feridos e 3400 presos.

O que gerou uma reação tão violenta, e racialmente direcionada (embora o ato da abordagem policial inicial, incidentemente de um oficial branco, tenha sido legítima) é debatido até hoje. Mas pelo menos um processo é fácil de distinguir: a segregação racial e social na cidade de Los Angeles desde pelo menos a década de 1920, gravemente acentuada por uma permissividade do poder público local quanto à ocupação urbana dos migrantes negros vindos do sul do país, e a tendência da polícia a atuar com violência contra minorias étnicas.

Em 1940, devido à II Guerra Mundial, muitos negros do sul dos Estados Unidos foram convocados e levados para o oeste do país para treinamento e embarque de tropas para o cenário do Pacífico, ou para trabalhar na indústria bélica (6 companhias de aviação tinham suas sedes na cidade). Los Angeles, que possuía pouco mais de 30 mil habitantes negros (num universo de quase 1,5 milhão de habitanteS), teve essa população quintuplicada em apenas uma geração.

Los Angeles era uma cidade majoriariamente branca, onde as minorias negra e latina viviam em regime de segregação por baixo dos panos: embora não existissem leis que proibissem negros ou latinos de usufruir dos mesmos espaços públicos, o poder público local se mantinha passivo quanto a atividade de gangues brancas intimidando e atacando outras etnias que estivessem circulando em áreas majoritariamente brancas.

O súbito influxo de imigrantes negros começou a despertar o interesse do mercado imobiliário. Inicialmente, os proprietários brancos se recusavam a vender ou alugar imóveis para negros, restringindo aos negros (e latinos e asiáticos) o acesso a no máximo 5% dos imóveis disponíveis na cidade, de maneira que os negros eram forçados a morarem em regiões subdesenvolvidas na periferia. A carência de serviços públicos, a insegurança e a insalubridade nessas comunidades eram notórias. Com a imigração nos anos 40, algumas empresas imobiliárias começaram a investir em bairros pouco populosos ocupados por brancos e construir casas e apartamentos abertos aos negros. Os vizinhos brancos, então, aceitavam vender suas propriedades abaixo do preço de mercado, que eram revendidas pelo valor mais alto possível, devido à alta procura, aumentando os lucros dessas imobiliárias, ao mesmo tempo em que alimentava um ressentimento entre brancos "que restringiam e oprimiam", e negros "que estavam tomando seu lugar". A parte sul de Los Angeles, onde essa tendência foi muito acentuada, ocorreram inúmeros casos de violência racial ao longo dos anos 50 - atentados a bomba, casas de negros incendiadas ou marcadas com cruzes em chamas em seus quintais. A polícia tendia a ser mais delicada em casos de violência perpetrados por moradores brancos do que negros ou latinos (em 1951, na noite de natal, cinco jovens latinos e dois amigos brancos foram presos e duramente espancados durante uma abordagem policial onde o grupo, acusado de beber ilegalmente, já havia provado aos policiais terem idade suficiente para isso).

Em 1963, foi aprovada uma lei proposta pelo deputado negro William Rumford pretendia proibir donos de imóveis brancos de recusarem a venda ou aluguel a clientes negros, latinos ou asiáticos. Porém, em 1964, durante um plebiscito que incluía entre os ítens a serem consultados junto à população uma proposição ("Proposição 14", devido à sua posição na cédula) que acrescentaria uma emenda à Constituição da Califórnia, impedindo que o estado ou qualquer órgão público, interferisse ou limitasse venda ou aluguel de propriedades no estado (incluindo aí critérios baseados em raça, estado civil, religião, orientação sexual e condição física, com base no princípio da liberdade de associação), neutralizando a lei anterior e restabelecendo a segregação de fato. Após os eventos em Watts, o governador Pat Brown apoiou junto à Suprema Corte do estado a revisão da Proposição 14. Ela foi julgada inconstitucional em 1966 - isso rendeu a Brown a derrota nas eleições seguintes para o conservador Ronald Reagan.

O que quer que possa ser apontado como a causa direta para a explosão de violência em Watts, o relatório de uma comissão liderada por um ex-diretor da CIA recomendou que, para evitar futuros problemas semelhantes, Los Angeles deveria resolver com urgência problemas de educação infantil, melhorar as relações entre polícia e a comunidade, investir em moradia para população de baixa renda, qualificação profissional, saúde, transporte público, além de parcerias com o setor privado no desenvolvimento econômico e no acesso a informação e com lideranças das próprias comunidades para a implementação de planos de melhoria locais.

As recomendações da comissão não foram seguidas imediatamente, nem em todos os seus pontos. Em 1992 Los Angeles, especificamente a parte sul da cidade, seria palco de outra explosão de violência racial, de maiores proporções. A senhora Price morreu em 2013 aos 97 anos sem nunca ter recuperado seu carro guinchado. Os eventos de Watts foram retratados sob a ótica de uma equipe de jornalistas no filme Tensão Brutal, de 1990, com James Earl Jones.

Nenhum comentário:

Postar um comentário