quinta-feira, 4 de junho de 2015

Quando o gigante soviético temeu os anarquistas

No dia 4 de junho de 1919, Leon Trotsky, então ocupando o que seria o Ministério da Defesa da União Soviética, publicou uma ordem proibindo ao Território Livre, uma associação anarquista localizada no leste da Ucrânia, de eleger seu próprio congresso, difamando ainda o seu principal líder militar, Nestor Makhno, acusando-o de criminoso e incapaz. O Território Livre foi a primeira tentativa moderna e concreta de formação de uma comunidade anarquista em meio à Revolução Ucraniana, agregando comunas libertárias, sovietes e comunistas não alinhados com os bolsheviques.

Makhno, então um jovem anarquista, foi preso em 1907 e condenado à morte, pena convertida depois a prisão perpétua. Com a Revolução Russa, ele e outros presos políticos foram libertados. Makhno então organizou uma associação de camponeses, invadindo grandes propriedades rurais e redistribuindo as terras. A reputação de Makhno decidiu a sua sorte quando, em 1918, o comitê comunista que governava a Ucrânia revolucionária perdeu o controle, e um ex-general tzarista tentou assumir o poder. Como os camponeses se recusassem a apoiar tanto um como outro, boa parte deles se voltou para Makhno, de forma que, de repente, ele tinha boa parte do leste da Ucrânia sob seu alcance.

Nestor Makhno uniu-se a outros anarquistas e organizou um exército de voluntários, o Exército Revolucionário Insurrecional da Ucrânia (ou Exército Negro, por causa da bandeira preta anarquista), se opondo ativamente ao Exército Branco contrarrevolucionário, nacionalistas, alemães e austríacos (apoiadores do antigo regime ucraniano, mas ocupados demais no front da Primeira Guerra para dar suporte efetivo) e senhores locais com seus próprios pequenos exércitos que executavam raids contra camponeses e judeus. Nas regiões onde o Exército Negro atuava, os camponeses e trabalhadores da indústria decidiram abolir as regras do capitalismo, organizando-se em comunas, assembleias e conselhos livres, definindo-se como comunidades autogovernadas. As fileiras anarquistas cresceram na região devido às duras perseguições promovidas pelo novo governo bolshevique na Rússia.

Em 1918, as comunidades anarquistas se reuniram na cidade de Kharkov, num congresso que ficaria conhecido como Nabat ("Tambor"), para estabelecer uma plataforma unificada para promover as transformações sociais necessárias, aproveitando o vácuo de poder deixado na Ucrânia e o tumulto da guerra civil russa. O Nabat também optou por Makhno e seu bando para garantir a sua segurança. Os homens de Makhno, que chegaram a 15 mil, também atuaram na distribuição de panfletos e folhetins de divulgação das diretrizes do Nabat pelo país.

Sem a interferência de poderes externos, entre 1918 e 1920, o Nabat estabeleceu-se como o esqueleto básico de um Estado funcional, com secretários supervisionando sessões, contabilizando seus membros, e operando na divulgação de propaganda, além de representantes de cada comunidade votando em seu nome. Mas o funcionamento prático, as pautas, as votações, a aplicação das resoluções eram feitas respeitando um sentido fundamentalmente federalista, de maneira que as decisões votadas pela maioria serviam de guia para associações locais, mas não as obrigava a adotá-las se não fossem compatíveis com seus interesses. A independência e a liberdade de ação era vista como a forma mais alta de justiça social, e o ideal a ser perseguido e mantido. O Nabat contava com um intelectual conhecido como Volin, cujo trabalho era tecer uma teoria anarquista que contentasse as diversas e muitas vezes conflitantes correntes do movimento. Isso ajudou a confederação a manter o rumo.

A participação no Nabat também era voluntária e espontânea: os representantes eram escolhidos diretamente pelos membros de suas comunidades, e os membros do secretariado eram voluntários, pois o dinheiro envolvido, quando havia, era empregado apenas no custeio de operações específicas, caso fosse necessário contratar serviços não associados a alguma federação participante. De fato, a economia que se desenvolveu dentro das comunidades e entre si se baseava na troca livre e espontânea de bens - as comunidades rurais trocavam seus produtos com o que as comunidades urbanas tinham a oferecer, sem que houvesse dinheiro envolvido necessariamente. O território sob influência do Nabat ficou conhecido como Território Livre, englobando cerca de 7 milhões de pessoas.

O Nabat, em vista da sua oposição às "forças reacionárias" na Ucrânia, se alinhava com os bolsheviques, embora denunciasse seu aspecto totalitário. Os bolsheviques toleravam a existência e a oposição do Nabat por causa da força do Exército Negro de Makhno (também ele um crítico do Estado policial corrente na Rússia) no combate aos seus inimigos comuns na região, chegando a realizar operações em conjunto contra os Brancos. De fato, a autonomia do Nabat se expressava na forma de críticas à atuação do próprio Makhno e seu exército. Mas, quando a derrota dos contrarrevolucionários se mostrou inevitável, os russos começaram a se voltar contra os anarquistas. Os soviéticos temiam que o sucesso da experiência anarquista na Ucrânia inspirasse outras iniciativas semelhantes que pudessem fragilizar o poder de Moscou e colocar a revolução em risco. Foi neste momento em que Trotsky declarou ilegal o Nabat e iniciou uma perseguição a Makhno, acusando-o pessoalmente se ser um tiranete e um bandido, e que usava a sua influência para nomear amigos como líderes comunitários, tentando assim enfraquecer a sua influência junto aos camponeses. Ainda assim, Makhno manteve uma posição firme no Território Livre, e ainda realizou outras operações conjuntas com o Exército Vermelho.

Após a derrota final do Exército Branco em novembro de 1920, os vermelhos imediatamente se voltaram contra os negros. Em 26 de novembro, os soviéticos ucranianos prenderam e executaram companheiros próximos a Makhno. Como o Exército Vermelho avançasse maciçamente, assim como as Brigadas Punitivas das forças especiais de segurança soviéticas, prometendo a prisão e a execução não apenas de Nestor Makhno como de todos os anarquistas e simpatizantes, ele optou por recuar. Isso permitiu aos soviéticos prenderem e executarem lideranças do Nabat, virtualmente dando fim à sua existência ainda em dezembro.

Makhno continuou lutando contra o Exército Vermelho até meados de 1921, quando ele e 77 sobreviventes do Exército Negro fugiram para a Polônia, em direção à França. Ele publicou suas experiências na organização e funcionamento de federações anarquistas, enquanto trabalhava como carpinteiro. O intelectual Volin foi preso e expulso do país, passando a viver na Alemanha. Nenhuma experiência anarquista semelhante, antes ou depois do Nabat e do Território Livre, sobreviveu ou prosperou da mesma maneira ou com um alcance tão vasto, notavelmente sem violência na sua estrutura.

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