sexta-feira, 26 de junho de 2015

Guerras esdrúxulas

Em 26 de junho de 1740, cerca de trezentos espanhóis (muitos não eram soldados) derrotaram 170 britânicos que defendiam o Forte Mose, na Florida. Esta batalha foi parte da Guerra da Orelha de Jenkins.

É, a História é pontilhada de conflitos assim. Pode-se dizer que muitas guerras de larga escala tiveram as mesmas motivações das menores escaramuças, a diferença aparecendo na configuração das redes diplomáticas e interesses globais em cada momento.

A Guerra da Orelha de Jenkins veio na esteira de décadas de conflitos em que Espanha e Inglaterra estiveram em lados opostos, embora, em 1713, a Espanha tenha assegurado à Inglaterra o monopólio ("asiento") do tráfico de escravos para suas colônias na América, com o privilégio adicional de transportarem 500 toneladas de mercadorias por ano. Essa relação de morde-e-assopra entre os dois países veio ao fim quando, pressionado por um sentimento geral anti-hispânico, a Inglaterra moveu suas tropas para as Índias Ocidentais e Gibraltar. A Espanha exigiu reparação financeira, e como a Inglaterra se negou, o rei Filipe V da Espanha rasgou o contrato de asiento. Em outubro de 1739 veio a declaração de guerra. Eventualmente este conflito, onde a Espanha se saiu melhor, foi tolhido pela guerra generalizada na Europa pela sucessão do trono austríaco (onde os dois países novamente se colocaram em lados opostos).

O nome desse conflito específico deriva de um incidente em 1731, quando um barco espanhol abordou um navio inglês perto da Florida, e o comandante espanhol cortou a orelha do capitão Robert Jenkins, acusando-o de contrabando. Jenkins foi convocado em 1738 pelo Parlamento inglês a testemunhar sobre o caso, e exibiu a todos a própria orelha decepada. Com todos os problemas diplomáticos com a Espanha naquele momento, a orelha do capitão Jenkins teria sido a gota d'água para os ingleses.

Houve muitas guerras motivadas por motivos banais, e várias dessas acabaram conhecidas por nomes curiosos. Eu selecionei dez:

1: A Guerra do Cão Perdido entre Grécia e Bulgária em 1925 começou quando um cachorro fugiu e seu dono grego o perseguiu através da fronteira, sendo morto por soldados búlgaros. A Grécia exigiu reparação e chegou a tomar uma cidade fronteiriça da Bulgária, e precisou da Liga das Nações intervir para resolver o caso.

2: A Guerra da Lagosta foi travada entre Brasil e França 1961 e 1963, quando a marinha brasileira resolveu impedir que barcos franceses pescassem lagostas fora do espaço marítimo brasileiro, alegando que as lagostas migram, de maneira que os franceses estariam lesando os pescadores brasileiros. O Brasil, acreditem, nunca perdeu uma guerra, e saiu vitorioso desta, ampliando suas águas territoriais.

3: A Guerra do Banco de Ouro de 1900 aconteceu quando o imperador de Ashanti, já irritado pela presença britânica na região do atual Gana, se sentiu ultrajado quando a autoridade britânica exigiu que ele devolvesse o tal banco de ouro, que ele usava como trono e que fora presenteado ao seu país pelos europeus. O imperador declarou guerra, e Ashanti terminaria incorporado à colônia da Costa do Ouro. A comandante maior do exército ashante era a irmã do imperador.

4: A Guerra do Porco de 1859 começou quando um fazendeiro americano vivendo na ilha de San Juan, um território disputado na fronteira do Oregon com a Colúmbia Britânica, viu um porco comendo suas batatas e atirou nele. O dono do porco, um irlandês empregado de uma companhia britânica, foi tirar satisfação. Ele recusou a oferta de 10 dólares pelo porco morto. O fazendeiro, ultrajado, disse que o irlandês é quem tinha que pagar pela invasão do seu porco. Autoridades britânicas interviram para prender o fazendeiro, e colonos americanos pediram por uma ação militar. A única ação militar no conflito, que perdurou por 13 anos, foram as trocas de insultos entre os soldados dos dois países e nenhum morto (exceto o porco). Ao final os EUA ganharam os direitos sobre a ilha.

5: A Guerra das Laranjas foi travada entre Espanha e Portugal em 1801 quando quando a França, aliada da Espanha, que estava em paz com Portugal, exigiu que Portugal se aliasse a ela contra a Inglaterra, de quem Portugal também era aliado. A diplomacia portuguesa se atrapalhou toda (com razão). Um diplomata português foi enviado a Madri para acertar um acordo com a França sem saber que a Espanha estava declarando guerra (a Espanha, por sua vez, precisava decidir rápido se declarava guerra a Portugal ou se sujeitava a uma invasão francesa). O próprio governo português só ficou sabendo da declaração de guerra 10 dias depois da primeira invasão. A Espanha acabou ocupando (até hoje) a cidade de Olivença, enquanto portugueses tomaram parte do território espanhol na América, onde hoje é o oeste do Rio Grande do Sul e uma porção do Mato Grosso. Manuel de Godoy, ministro espanhol à frente do exército, ao chegar a Olivença pegou uma laranja de um pé e a enviou para a rainha da Espanha, com a mensagem de que marcharia para Lisboa. Quando a laranja chegou, um segundo diplomata português já tinha acertado um acordo de paz com espanhóis e franceses.

6: A Guerra dos 335 anos foi travada entre a Holanda e o minúsculo arquipélago inglês das Ilhas Scilly. Aconteceu que em 1651 os parlamentaristas completaram seu domínio sobre a Grã-Bretanha, e os monarquistas da Cornuália se refugiaram em Scilly. Os holandeses, por sua vez, ofereceram aliança à Inglaterra - porém, especificamente, aos parlamentaristas, que estavam vencendo a guerra civil. Como resultado, navios holandeses eram atacados por embarcações monarquistas baseadas em Scilly. Um almirante holandês foi tirar satisfação, e como os representantes de Scilly se recusassem a atendê-lo, ele declarou guerra contra o arquipélago. Com o tempo, os monarquistas voltariam ao poder, e a Holanda confirmaria sua aliança com a Inglaterra... esquecendo-se completamente das ilhas Scilly. Como um tratado de paz nunca foi formalizado, essa guerra, que não teve um tiro disparado, durou 335 anos.

7: A Guerra do Futebol começou numa partida de desempate pelas eliminatórias da Copa do Mundo em 1969 entre El Salvador e Honduras. Os dois países viviam em tensão por causa de imigrações ilegais do primeiro para o segundo, e reformas agrárias do segundo para controlar o primeiro, e o sentimento nacionalista era calculadamente inflamado pelos dois governos. O primeiro jogo, em Tegucigalpa, resultou em violência generalizada, pelo qual o governo salvadorenho exigiu uma retratação. Como ela não viesse, no segundo jogo, em San Salvador, houve mais quebra-quebra. Ao final do terceiro jogo, na Cidade do México, El Salvador alegou que a violência do primeiro jogo contra torcedores do seu país constituía genocídio e declarou guerra. O exército salvadorenho invadiu Honduras e por pouco não chegou à capital. A OTAN precisou intervir para provocar um cessar-fogo.

8: A Guerra de Lijar começou quando o rei Alfonso XII da Espanha foi agredido por populares numa visita a Paris. Embora o incidente não tivesse causado grandes problemas diplomáticos, por algum motivo o prefeito da cidade espanhola de Lijar se sentiu ultrajado, e declarou guerra à França. Nem os lijarenses marcharam os 800 km até a fronteira, nem a França deu bola, mas a declaração de guerra formal persistiu até que na década de 1970 o prefeito local, convencido das boas intenções da França após o tratamento cordial cedido ao novo rei Juan Carlos II em visita oficial, convidou o embaixador francês para selar a paz. Diz uma anedota que quando o Juan Carlos visitou Lijar, teriam lhe dito que "uma hora esses franceses iam desistir".

9: A Guerra do Barril de Carvalho ocorreu em 1325, depois de um longo período de rivalidade entre as cidades italianas de Modena e Bolonha, quando alguns soldados de Modena entraram em Bolonha e roubaram um balde de madeira que ficava num poço no centro da cidade. Os bolonheses formaram um exército de 32 mil homens (uma quantidade respeitável para os padrões da época) para atacar os vizinhos, que contavam com 7000 soldados. Mas, na única batalha travada, em Zappolino, Modena saiu vitoriosa. O tal balde está exposto na Torre da Ghirlandina, na Catedral de Modena. As facções rivais que controlavam as duas cidades só fariam as pazes definitivamente em 1529.

10: As Guerras do Bacalhau tiveram motivo semelhante à Guerra da Lagosta: embarcações inglesas que pescavam bacalhau foram abordadas pela guarda costeira da Islândia, que alegava estarem operando em águas suas por direito. A resposta britânica foi mais incisiva do que a francesa no caso anterior: em três episódios, a marinha inglesa moveu dezenas de navios de guerra para assegurar a segurança de seus pesqueiros contra meia dúzia de barcos de patrulha islandeses. Nenhum tiro foi disparado, e o atrito se resumia às embarcações dos dois países tomando posições de batalha, e chegando tão perto umas das outras quanto possível (a única vítima foi engenheiro islandês eletrocutado na casa de máquinas de seu barco quando este se chocou contra uma fragata britânica). A OTAN atuou persuadindo os britânicos a recuarem algumas vezes, mas a coisa ficou séria quando a Islândia ameaçou deixar a organização e comprar navios militares soviéticos para lidar com o problema. No final, a Islândia ampliou suas águas territoriais.

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