terça-feira, 30 de junho de 2015

A Teoria da Relatividade

No dia 30 de junho de 1905 Albert Einstein publicou seu artigo intitulado "Zur Elektrodynamik bewegter Körper", na décima sétima edição do periódico Annalen der Physik. Neste artigo Einstein expõe sua Teoria da Relatividade Especial.

A partir do último quartel do século XIX, a Física e a Química viram avanços estupendos. Começando em 1873, Maxwell lança as bases sobre o eletromagnetismo. Tubos catódicos, a descoberta do raio-X e da radioatividade, dos elétrons e um modelo atômico fluído (o "pudim com passas" de Thomson, sucedido depois pelo modelo nucleado de Rutherford), emissões de corpos negros, descoberta de novos elementos químicos. Tudo aconteceu muito rápido, e todas essas descobertas seriam fundamentais para os avanços técnicos e científicos alcançados do século XX até hoje. Nomes como Mendeleev, Maxwell, Planck, Lorentz e Curie eram celebridades globais.

Contudo, o olho humano só consegue focar numa coisa de cada vez. Wilhelm Röntgen, por exemplo, descobriu o raio-X sem saber que se tratava de uma emissão de energia de alta frequência desprendida de um núcleo atômico instável em decaimento - a emissão derivada da instabilidade do núcleo, e a própria noção de núcleo atômico ainda não estavam formadas. Marie Curie passou anos fazendo experiências com radiação sem saber dos seus efeitos nocivos sobre o DNA. Darwin lançou as sua teoria da evolução das espécies pouco antes de Gregory Mendel escrever sobre hereditariedade, e um nunca teve contato com o trabalho do outro. A ciência produzia uma avalanche de resultados de obervações experimentais em campo ou laboratório de fenômenos naturais que demandavam teorias para dar sentido a tudo, o que se tornaria o meio perfeito para a proliferação de teóricos como Einstein.

1905 é o "Ano Milagroso" da Física. Neste ano Albert Einstein publicaria quatro artigos que revolucionariam a ciência para sempre. Einstein ainda era um funcionário num escritório de patentes em Berna, e seu acesso aos trabalhos científicos mais recentes, bem como seu acesso aos círculos científicos era restrito, o que torna o advento das suas teorias algo espantoso.

No primeiro artigo, de março, sobre o efeito fotoelétrico, ele lança a ideia de que a luz não é uma onda que viaja a esmo pelo espaço e pode ser dissipada infinitamente, mas um feixe de fótons, unidades indivisíveis de energia. A incidência de um feixe de luz de alta energia sobre um corpo seria capaz de ceder energia suficiente aos elétrons na sua superfície para que eles escapem. A ideia do fóton e do quantum de energia seriam as bases para a Física Quântica, que, curiosamente, seria superficialmente vista como oposta ou antagonista do modelo relativístico de universo que Einstein estava prestes a teorizar. Foi seu trabalho com o efeito fotoelétrico que lhe rendeu um Prêmio Nobel de Física em 1921.

O segundo artigo do ano foi sobre os Movimentos Brownianos, submetido a publicação em maio. O botânico Robert Brown, décadas antes, descreveu o movimento errático de pequenas partículas suspensas em líquido enquanto observava grãos de pólen num microscópio. Esse movimento errático não podia ser explicado satisfatoriamente com a mecânica newtoniana, porque o movimento podia ser tanto descendente como ascendente. Einstein supõe que partículas muito pequenas podem ter sua trajetória influenciada pela interação e colisão de partículas ainda mais elementares (átomos e moléculas), além de estabelecer um arcabouço teórico para descrever esse movimento. Até então o átomo era apenas um modelo teórico útil, e a explicação de Einstein provava a sua existência.

No terceiro, Einstein considera as equações de Maxwell sobre eletromagnetismo - que produzem resultados distintos sobre a interação entre ímãs e condutores quando aplicadas do ponto de vista de um ou do outro, embora o resultado prático seja o mesmo. Einstein então postula que todo fenômeno físico (inclusive o tempo) só pode ser descrito a partir de um ponto referencial inercial, para o qual as leis da Física são constantes. E que a luz tem velocidade constante c (cerca de 300000 km/s) para o observador inercial independente da velocidade do seu emissor ou do seu receptor.

No quarto trabalho, de novembro, Einstein discute que todo corpo massivo possui uma energia de repouso, ou uma quantidade total de energia inerente à sua massa. Essa energia de repouso de um corpo pode ser calculada multiplicando-se a massa pela velocidade da luz ao quadrado, traduzido da famosa equação E=mc².

Assim que publicou a Teoria da Relatividade Especial, Einstein se deteve na questão da permanência das leis físicas sob um observador inercial e da constância da velocidade da luz, pensando em como a luz poderia manter a velocidade constante quando o observador está em movimento acelerado, e as consequências disso. Demorou 10 anos, mas ao final desse tempo ele viria com a Teoria da Relatividade Geral, lançando a noção do espaço-tempo, uma quarta dimensão do universo que é distorcida sob a influência de corpos massivos, complementando, assim, a teoria da gravitação universal de Newton, e as observações práticas de desvios de feixes de luz ao passar perto de estrelas, planetas e buracos negros, a decomposição gravitacional da luz, a dilatação gravitacional do tempo. A confirmação da sua tese do espaço-tempo e a confirmação experimental das suas equações de campo viriam depois, com a observação dos desvios da luz de estrelas conhecidas ao passar pelo sol durante eclipses solares.

Einstein produziu tantas novidades em tão pouco tempo, algumas estruturadas em equações dificílimas de seres resolvidas, outras que exigem um pensamento abstrato muito complexo para serem compreendidas, que até hoje mesmo os estudantes de Física e alguns professores precisam se esforçar para compreender. A Física Relativística, no entanto, tem uma limitação. Ela consegue explicar fenômenos físicos em grande escala. A distorção do espaço-tempo pode ser observada ao redor de objetos maiores do que planetas, mas para objetos menores, como o corpo humano ou o átomo, isso é insignificante. Especialmente do ponto de vista do átomo, os modelos da Física Quântica são os mais apropriados para entender os seus fenômenos, sua estruturação e propriedades. Físicos quânticos como Neils Bohr esperavam que existisse nos seus modelos uma brecha para explicar os fenômenos descritos por Einstein, assim como Einstein esperava que sua Física Relativística pudesse ser adequada para explicar o nano universo. Até hoje essa "Teoria de Tudo" ainda não foi elaborada com sucesso.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

As mortes de Rasputin

Em 29 de junho de 1914, uma moça chamada Khioniya Guseva, possivelmente com problemas mentais, tentou assassinar Grigori Rasputin na sua aldeia natal, na Sibéria. Mal sabia ela que o tal Rasputin era um sujeito difícil de se matar.

Rasputin surgiu na cena política da Rússia imperial logo após a derrota russa na guerra Russo-Japonesa de 1905. Com uma reputação de homem santo, Rasputin foi apresentado pela primeira vez ao Tsar Nicolau II. Em 1906 ele teria visitado a vida da filha do Primeiro Ministro, cujos filhos morreram num atentado recente, o que lhe teria trazido grande conforto. Em 1907, ganhou o favor do Tsar ao supostamente curar o príncipe Alexei da sua hemofilia com poderes espirituais (seja lá o que fez não o curou propriamente, mas o ajudou de alguma forma a superar várias crises que poderiam ter sido fatais). A partir de 1914 ele se tornaria a voz mais influente da corte imperial, e, com o Tsar à frente do exército contra a Alemanha, a posição de Rasputin se tornou mais central do que nunca. Ele era um camponês da Sibéria com pesado sotaque, que não cortava o cabelo, não fazia a barba, não tomava banho, e tinha a família imperial nas mãos. Isso suscitou muitas rivalidades.

O caso de Guseva foi pontual. Fascinada por figuras religiosas, ela teria se tornado seguidora do monge Iliodor, um inimigo público de Rasputin e uma das fontes que, por exemplo, sugeriam seu relacionamento amoroso com a Tsarina Alexandra. Guseva o teria seguido por alguns meses até localizá-lo na sua aldeia natal, onde visitava sua família. Ela o atacou enquanto estava lendo um telegrama do lado de fora de uma agência de correios, perfurando seu abdômen com uma lâmina de meio metro de comprimento. Embora ela tivesse gritado "Matei o Anticristo!", Rasputin conseguiu se recuperar e fugiu correndo, tendo ainda disposição para pegar um pedaço de pau e golpear o rosto da agressora. Embora as agências de notícia da época tenham-no dado como morto, ele foi operado naquela noite, se recuperando depois de alguns meses. O monge Iliodor, que nada teve a ver com o atentado, fugiu para a Noruega disfarçado de mulher.

As circunstâncias do assassinato de Rasputin em 1916 são nebulosas, já que a polícia foi praticamente impedida de investigá-lo, pois, aparentemente, pessoas importantes estavam envolvidas. Além disso, grande parte da documentação foi destruída pelos soviéticos. O que se sabe hoje é a coleção de estudos feitos ao longo dos anos baseado em depoimentos e reportagens de época, fotos do corpo e pesquisa de documentos. Mas tudo converge para uma sequência impressionante de acontecimentos:

Rasputin teria sido convidado em dezembro a visitar Felix Yusupov, marido da sobrinha do Tsar, em seu palácio em São Petersburgo. Eles chegaram lá depois da meia noite e se acomodaram em sua adega. Primeiro Rasputin teria tomado chá com um pedaço de bolo contendo cianeto. Após saborear o doce (sua filha duvidava que ele tivesse comido o bolo, pois ele evitava doces desde que fora ferido no estômago), ele teria discutido com Yusupov sobre ocultismo, espiritualidade e política. O cianeto, que devia sufocá-lo em minutos, não surtiu efeito.

Como, de qualquer forma, Rasputin não dava sinais de intoxicação, o anfitrião então lhe ofereceu uma seleção de vinhos doces, que Rasputin passara a apreciar avidamente depois do seu atentado. Quando percebeu que o místico estava embriagado, Yusupov subiu as escadas e retornou com o revólver de um colega escondido no andar de cima (haveria uma meia dúzia de conspiradores escondidos no palácio naquela noite). Ele atirou à queima roupa no peito, a bala perfurando estômago, fígado e saindo do lado direito do corpo. Rasputin caiu sobre um tapete de urso branco. Com o tiro, os conspiradores teriam saído de seu esconderijo escada acima e deveriam estar discutindo o que fazer com o corpo.

Mas Rasputin não estava morto! Ele abriu os olhos e se levantou, ciente de que havia caído numa armadilha, e tentou fugir. Ele galgou as mesmas escadas, tentando sair da adega em direção ao jardim. Alarmado pelo barulho, um dos conspiradores apareceu e o alvejou mais uma vez, desta vez a bala se alojando na sua espinha. Ele caiu sobre a neve e foi arrastado de volta para dentro do palácio. Yusupov, nervoso, ainda chutou seu rosto a ponto de estourar um olho. Como o corpo ainda se movesse, um terceiro conspirador encostou o cano do revólver na sua testa e disparou.

A essa altura a polícia já estava questionando o que acontecia, e os assassinos precisavam se desfazer do corpo rapidamente. Eles o vestiram com seu casaco de peles, botas e luvas e saíram do palácio abraçados até o carro, para dar a impressão de que Rasputin saiu tão bem como entrou. Eles amarraram punhos e tornozelos e atiraram o corpo de uma ponte, mas seu casaco se encheu de ar, impedindo que ele afundasse.

O corpo foi encontrado dois dias depois, congelado, com as mãos desamarradas. É possível que Rasputin ainda tivesse retido alguma consciência e tentado escapar, para, depois de envenenado, baleado três vezes (inclusive na cabeça), espancado, amarrado, e jogado de uma ponte num rio congelado, morrer de hipotermia.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Guerras esdrúxulas

Em 26 de junho de 1740, cerca de trezentos espanhóis (muitos não eram soldados) derrotaram 170 britânicos que defendiam o Forte Mose, na Florida. Esta batalha foi parte da Guerra da Orelha de Jenkins.

É, a História é pontilhada de conflitos assim. Pode-se dizer que muitas guerras de larga escala tiveram as mesmas motivações das menores escaramuças, a diferença aparecendo na configuração das redes diplomáticas e interesses globais em cada momento.

A Guerra da Orelha de Jenkins veio na esteira de décadas de conflitos em que Espanha e Inglaterra estiveram em lados opostos, embora, em 1713, a Espanha tenha assegurado à Inglaterra o monopólio ("asiento") do tráfico de escravos para suas colônias na América, com o privilégio adicional de transportarem 500 toneladas de mercadorias por ano. Essa relação de morde-e-assopra entre os dois países veio ao fim quando, pressionado por um sentimento geral anti-hispânico, a Inglaterra moveu suas tropas para as Índias Ocidentais e Gibraltar. A Espanha exigiu reparação financeira, e como a Inglaterra se negou, o rei Filipe V da Espanha rasgou o contrato de asiento. Em outubro de 1739 veio a declaração de guerra. Eventualmente este conflito, onde a Espanha se saiu melhor, foi tolhido pela guerra generalizada na Europa pela sucessão do trono austríaco (onde os dois países novamente se colocaram em lados opostos).

O nome desse conflito específico deriva de um incidente em 1731, quando um barco espanhol abordou um navio inglês perto da Florida, e o comandante espanhol cortou a orelha do capitão Robert Jenkins, acusando-o de contrabando. Jenkins foi convocado em 1738 pelo Parlamento inglês a testemunhar sobre o caso, e exibiu a todos a própria orelha decepada. Com todos os problemas diplomáticos com a Espanha naquele momento, a orelha do capitão Jenkins teria sido a gota d'água para os ingleses.

Houve muitas guerras motivadas por motivos banais, e várias dessas acabaram conhecidas por nomes curiosos. Eu selecionei dez:

1: A Guerra do Cão Perdido entre Grécia e Bulgária em 1925 começou quando um cachorro fugiu e seu dono grego o perseguiu através da fronteira, sendo morto por soldados búlgaros. A Grécia exigiu reparação e chegou a tomar uma cidade fronteiriça da Bulgária, e precisou da Liga das Nações intervir para resolver o caso.

2: A Guerra da Lagosta foi travada entre Brasil e França 1961 e 1963, quando a marinha brasileira resolveu impedir que barcos franceses pescassem lagostas fora do espaço marítimo brasileiro, alegando que as lagostas migram, de maneira que os franceses estariam lesando os pescadores brasileiros. O Brasil, acreditem, nunca perdeu uma guerra, e saiu vitorioso desta, ampliando suas águas territoriais.

3: A Guerra do Banco de Ouro de 1900 aconteceu quando o imperador de Ashanti, já irritado pela presença britânica na região do atual Gana, se sentiu ultrajado quando a autoridade britânica exigiu que ele devolvesse o tal banco de ouro, que ele usava como trono e que fora presenteado ao seu país pelos europeus. O imperador declarou guerra, e Ashanti terminaria incorporado à colônia da Costa do Ouro. A comandante maior do exército ashante era a irmã do imperador.

4: A Guerra do Porco de 1859 começou quando um fazendeiro americano vivendo na ilha de San Juan, um território disputado na fronteira do Oregon com a Colúmbia Britânica, viu um porco comendo suas batatas e atirou nele. O dono do porco, um irlandês empregado de uma companhia britânica, foi tirar satisfação. Ele recusou a oferta de 10 dólares pelo porco morto. O fazendeiro, ultrajado, disse que o irlandês é quem tinha que pagar pela invasão do seu porco. Autoridades britânicas interviram para prender o fazendeiro, e colonos americanos pediram por uma ação militar. A única ação militar no conflito, que perdurou por 13 anos, foram as trocas de insultos entre os soldados dos dois países e nenhum morto (exceto o porco). Ao final os EUA ganharam os direitos sobre a ilha.

5: A Guerra das Laranjas foi travada entre Espanha e Portugal em 1801 quando quando a França, aliada da Espanha, que estava em paz com Portugal, exigiu que Portugal se aliasse a ela contra a Inglaterra, de quem Portugal também era aliado. A diplomacia portuguesa se atrapalhou toda (com razão). Um diplomata português foi enviado a Madri para acertar um acordo com a França sem saber que a Espanha estava declarando guerra (a Espanha, por sua vez, precisava decidir rápido se declarava guerra a Portugal ou se sujeitava a uma invasão francesa). O próprio governo português só ficou sabendo da declaração de guerra 10 dias depois da primeira invasão. A Espanha acabou ocupando (até hoje) a cidade de Olivença, enquanto portugueses tomaram parte do território espanhol na América, onde hoje é o oeste do Rio Grande do Sul e uma porção do Mato Grosso. Manuel de Godoy, ministro espanhol à frente do exército, ao chegar a Olivença pegou uma laranja de um pé e a enviou para a rainha da Espanha, com a mensagem de que marcharia para Lisboa. Quando a laranja chegou, um segundo diplomata português já tinha acertado um acordo de paz com espanhóis e franceses.

6: A Guerra dos 335 anos foi travada entre a Holanda e o minúsculo arquipélago inglês das Ilhas Scilly. Aconteceu que em 1651 os parlamentaristas completaram seu domínio sobre a Grã-Bretanha, e os monarquistas da Cornuália se refugiaram em Scilly. Os holandeses, por sua vez, ofereceram aliança à Inglaterra - porém, especificamente, aos parlamentaristas, que estavam vencendo a guerra civil. Como resultado, navios holandeses eram atacados por embarcações monarquistas baseadas em Scilly. Um almirante holandês foi tirar satisfação, e como os representantes de Scilly se recusassem a atendê-lo, ele declarou guerra contra o arquipélago. Com o tempo, os monarquistas voltariam ao poder, e a Holanda confirmaria sua aliança com a Inglaterra... esquecendo-se completamente das ilhas Scilly. Como um tratado de paz nunca foi formalizado, essa guerra, que não teve um tiro disparado, durou 335 anos.

7: A Guerra do Futebol começou numa partida de desempate pelas eliminatórias da Copa do Mundo em 1969 entre El Salvador e Honduras. Os dois países viviam em tensão por causa de imigrações ilegais do primeiro para o segundo, e reformas agrárias do segundo para controlar o primeiro, e o sentimento nacionalista era calculadamente inflamado pelos dois governos. O primeiro jogo, em Tegucigalpa, resultou em violência generalizada, pelo qual o governo salvadorenho exigiu uma retratação. Como ela não viesse, no segundo jogo, em San Salvador, houve mais quebra-quebra. Ao final do terceiro jogo, na Cidade do México, El Salvador alegou que a violência do primeiro jogo contra torcedores do seu país constituía genocídio e declarou guerra. O exército salvadorenho invadiu Honduras e por pouco não chegou à capital. A OTAN precisou intervir para provocar um cessar-fogo.

8: A Guerra de Lijar começou quando o rei Alfonso XII da Espanha foi agredido por populares numa visita a Paris. Embora o incidente não tivesse causado grandes problemas diplomáticos, por algum motivo o prefeito da cidade espanhola de Lijar se sentiu ultrajado, e declarou guerra à França. Nem os lijarenses marcharam os 800 km até a fronteira, nem a França deu bola, mas a declaração de guerra formal persistiu até que na década de 1970 o prefeito local, convencido das boas intenções da França após o tratamento cordial cedido ao novo rei Juan Carlos II em visita oficial, convidou o embaixador francês para selar a paz. Diz uma anedota que quando o Juan Carlos visitou Lijar, teriam lhe dito que "uma hora esses franceses iam desistir".

9: A Guerra do Barril de Carvalho ocorreu em 1325, depois de um longo período de rivalidade entre as cidades italianas de Modena e Bolonha, quando alguns soldados de Modena entraram em Bolonha e roubaram um balde de madeira que ficava num poço no centro da cidade. Os bolonheses formaram um exército de 32 mil homens (uma quantidade respeitável para os padrões da época) para atacar os vizinhos, que contavam com 7000 soldados. Mas, na única batalha travada, em Zappolino, Modena saiu vitoriosa. O tal balde está exposto na Torre da Ghirlandina, na Catedral de Modena. As facções rivais que controlavam as duas cidades só fariam as pazes definitivamente em 1529.

10: As Guerras do Bacalhau tiveram motivo semelhante à Guerra da Lagosta: embarcações inglesas que pescavam bacalhau foram abordadas pela guarda costeira da Islândia, que alegava estarem operando em águas suas por direito. A resposta britânica foi mais incisiva do que a francesa no caso anterior: em três episódios, a marinha inglesa moveu dezenas de navios de guerra para assegurar a segurança de seus pesqueiros contra meia dúzia de barcos de patrulha islandeses. Nenhum tiro foi disparado, e o atrito se resumia às embarcações dos dois países tomando posições de batalha, e chegando tão perto umas das outras quanto possível (a única vítima foi engenheiro islandês eletrocutado na casa de máquinas de seu barco quando este se chocou contra uma fragata britânica). A OTAN atuou persuadindo os britânicos a recuarem algumas vezes, mas a coisa ficou séria quando a Islândia ameaçou deixar a organização e comprar navios militares soviéticos para lidar com o problema. No final, a Islândia ampliou suas águas territoriais.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Massacre em Little Bighorn

No dia 25 de junho de 1876, uma coalizão de guerreiros Sioux das tribos Lakota, Cheyenne do norte e Arapaho, liderados por Touro Sentado e Cavalo Louco, combateram a 7ª Cavalaria do exército americano perto do rio Little Bighorn, no estado de Montana.

Na segunda metade do século XIX americanos vindos do leste começaram a se estabelecer no interior do país, pelos mais variados motivos (um deles, a promessa do governo americano em ceder terras públicas aos cidadãos que se comprometessem a ocupá-las e torná-las produtivas). Obviamente essas terras não estavam desocupadas: nas Grandes Planícies no norte do país diversas tribos iam e vinham caçando bisões ali havia cerca de 9 mil anos. Naquela época, eram dominadas principalmente por tribos Sioux.

Nessa região existe uma serra chamada Black Hills (He Sápa, em Sioux Lakota), considerada sagrada pelos nativos, mas que aos poucos vinha sendo explorada por garimpeiros atrás de rumores da existência de ouro. Em 1874, o general George Custer, um veterano da Guerra Civil de grande renome, anunciou oficialmente a descoberta de ouro ali, iniciando grande fluxo de garimpeiros e colonos em direção às Black Hills. Além da ocupação irregular nas colinas, colonos americanos atacavam os rebanhos remanescentes de bisões, principal fonte de alimento e proteção contra o frio dos Sioux, para remover sua valiosa pele, deixando montanhas de carcaças a apodrecer nos campos. Os nativos consideravam essa atividade uma afronta ao tratado de Fort Laramie, assinado após uma embaraçosa derrota do exército diante dos Lakota Oglala comandados por Nuvem Vermelha, e onde o governo dos Estados Unidos se comprometia a respeitar a autonomia da reserva indígena definida na ocasião, sobretudo as Black Hills. As ações do governo para deter o fluxo de mineradores foram tímidas.

Em 1875 uma delegação liderada por Cauda Pintada, dos Minneconjou, acompanhado do próprio Nuvem Vermelha e Chifre Solitário, signatários de Fort Laramie, foi a Washington se reunir com o presidente Ulysses Grant, exigindo a retirada dos colonos brancos de seu território. Como o Congresso fez uma contra-proposta de comprar as terras e realocar as tribos locais em uma reserva em Oklahoma, a comitiva se retirou insultada. Sem uma solução (mas sem o aval de seus chefes), em breve começariam os ataques a garimpos, fazendas, e caravanas. Uma estrada de ferro, a Northern Pacific Railroad, foi traçada para passar por dentro de território Lakota, e as obras estavam paradas por causa das hostilidades. Os guerreiros Touro Sentado, dos Hunkpapa, e Cavalo Louco, dos Lakota Oglala, se tornaram os líderes mais notórios dos bandos hostis aos colonos.

Para evitar uma declaração de guerra unilateral, o governo enviou, pelos funcionários das suas agências de assuntos indígenas, uma ordem para que todos os Sioux retornassem para a sua reserva no fim de janeiro de 1876, ou que enfrentassem ação militar. Parte atendeu o chamado, mas muitos ficaram imobilizados pelo inverno e não puderam comparecer a tempo. O bando de Touro Sentado simplesmente não mandou notícia, e isso já era esperado. Por causa disso, os Estados Unidos declararam guerra aos nativos.

Custer, liderando a 7ª Cavalaria, foi encarregado de patrulhar os vales dos rios Rosebud e Little Bighorn. Rosebud era um foco importante de resistência, onde o bando liderado por Cavalo Louco contivera uma coluna de cerca de 1300 homens sob o General George Crook no dia 17 de junho. Na manhã de 25 de junho, um batedor indígena avistou do alto de um morro uma grande aldeia perto do rio Little Bighorn Era uma aldeia formada por Lakota, Cheyenne do norte e Arapaho, três das maiores tribos das planícies. Custer divisou um ataque surpresa, e organizou seus homens em três batalhões. Em seguida, um vigia e o próprio Custer foram ao ponto de observação e tiveram dificuldade em localizar a aldeia, mas conseguiam ver ao longe as fogueiras dos soldados. Assumindo que seu acampamento seria visível também pelos índios, e com a notícia de que batedores viram guerreiros seguindo sua trilha, ele se apressou em lançar o ataque imediatamente.

Custer subestimou o número e a posição do inimigo. A companhia de Custer tinha 647 homens e havia sido planejada para lidar com o bando de Touro Sentado, que se imaginava ter 800 guerreiros montados. O que ele não sabia é que essa estimativa era acurada no inverno, quando a campanha foi planejada. Inspirados pelos assaltos bem sucedidos, muitos jovens se uniram ao bando durante a primavera, chegando a provavelmente mais de 2000 guerreiros.

O primeiro movimento foi um avanço de cavalaria até a boca do rio Reno (batizado em homenagem ao comandante desse pelotão), onde soldados abriram fogo a esmo sobre a aldeia, esperando atrair os guerreiros. Eles teriam matado ali mulheres e crianças, parentes de Bile, o chefe local. Após 20 minutos, cerca de 500 guerreiros se posicionaram no seu flanco esquerdo, e embora só tivessem uma baixa, os soldados recuaram para uma colina. Um reforço veio em seguida, sob comando do capitão Benteen, que estava passando por perto em uma missão de reconhecimento e recebera uma mensagem para se unir a Custer. As duas colunas passaram a tarde se posicionando para proteger os feridos de Reno, ouvindo um pesado tiroteio vindo do norte, mas sem visão do que estava acontecendo.

O tiroteio vinha de onde estava colocada a coluna comandada por Custer. Ele teria enviado Reno para uma primeira carga para atrair os guerreiros para fora da aldeia, enquanto ele avançaria com seus 210 homens para atacá-la sem resistência. Porém, como Reno ficou isolado, os guerreiros de Touro Sentado e Cavalo Louco se voltaram para a coluna de Custer, que tentava atravessar o Little Bighorn para alcançar a aldeia, sem proteção. O próprio Custer teria sido alvejado no início do ataque (os Cheyenne defendem que foi uma guerreira chamada em português Mulher Estrada Filhote de Bisão, ou Brava Mulher que derrubou Custer do seu cavalo). Os cavaleiros precisavam desmontar para proteger os feridos, que caíam rapidamente sob o fogo intenso. É possível que Custer tenha encontrado resistência ao longo do rio e optado por recuar para uma colina próxima antes de cair (que viria a ser conhecida como Colina do Confronto Final, Last Stand Hill), mas impedido de tomar uma posição defensiva por causa do grupo que deixava o ataque a Reno e Benteen.

Sem liderança, os soldados tentavam abrir caminho para fugir, apenas para regressar sob fogo. O pelotão de Cavalo Doido desbaratou o último foco de resistência organizada, e os indígenas passaram a perseguir e executar todos que ainda podiam correr. Ao fim da tarde, encurralados, absolutamente todos os homens de Custer estavam mortos. Toda a batalha é recontada em conjectura e com base em relatos de indígenas que podem ou não tê-la testemunhado, porque nenhum soldado americano a presenciou e sobreviveu para escrever um relatório. Os homens de Reno só vieram a ter noção do que havia acontecido quando, contornando o morro, viram os Lakota atirando nos últimos moribundos no chão. Durante a noite, e no dia seguinte, Touro Sentado e Cavalo Louco atacaram Reno e Benteen entrincheirados no morro, mas acabaram recuando quando chegaram reforços da terceira coluna organizada por Custer no dia anterior.

O massacre em Little Bighorn foi recebido com choque. Nos próximos meses a ação militar recrudesceria na área, e a guerra contra os índios duraria, de maneira intermitente, até a "desforra" no massacre em Wounded Knee em 1890. A grande congregação de Lakota, Cheyenne e Arapaho acabaria se dissolvendo por questões práticas - o pasto era incapaz de alimentar toda a sua montaria, e a caça se tornava escassa para alimentar toda aquela população. Desarticulados, desalojados e famintos, os indígenas não ofereceriam mais muita resistência. Sob a ameaça de terem suas rações cortadas, os líderes das tribos que viviam em reserva aceitariam um tratado de paz que cederia as Black Hills à jurisdição federal - até hoje os Sioux repudiam o acordo como ilegítimo e em 1980 chegaram a recusar uma generosa compensação em dinheiro. Touro Sentado fugiria para o Canadá, e mais tarde se juntaria à trupe de Buffalo Bill e seu famoso show itinerante. Cavalo Louco se entregou em meados de 1877, e sua rendição deu fim à guerra contra os Sioux de 1876-1877. Ele acabaria morto sob custódia.

Tanto George Custer como Touro Sentado e Cavalo Louco se tornariam parte da cultura popular americana, retratados, parodiados e emulados em livros, pinturas, filmes, desenhos animados, brinquedos e video games.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Morre Gardel

Em 24 de junho de 1935, uma colisão entre aviões na pista do aeroporto de Medelín, na Colômbia, tirou a vida de Carlos Gardel e vários empresários e músicos ligados a ele, entre eles o compositor paulista Alfredo Le Pera.

Gardel, nascido Charles Gardes na França em 1890, imigrou aos dois anos com sua mãe para a Argentina, estabelecendo-se em um cortiço na rua Uruguay, no bairro San Nicolas, onde hoje funciona um estacionamento em frente à uma concessionária de automóveis de propriedade de José Froilán Gonzalez, ex-piloto de Fórmula 1, em Buenos Aires. Ao longo da infância e adolescência, Gardel e sua mãe alugaram vários outros imóveis, sempre próximo ao eixo da Rua Corrientes, endereço boêmio onde havia vários teatros, bares e restaurantes.

Garoto ainda, Gardel ajudava sua mãe, que trabalhava como passadeira, empregando-se aqui e ali. Nos teatros trabalhou com uma companhia como claque - espectadores contratados para reagir conforme o número, influenciando a plateia - como figurante, e ajudando nos bastidores. Assim ele tinha a oportunidade de ver e conhecer artistas importantes, como o barítono espanhol Sagi Barba (com quem teve algumas aulas de canto) e o italiano Titta Ruffo, considerado um dos maiores da ópera italiana do seu tempo. Na adolescência seus amigos o levavam ao bar Traverso, onde os donos, impressionados com a qualidade da sua voz, lhe deram as primeiras oportunidades. Esta família Traverso estava associada Partido Autonomista Nacional, no poder havia muitos anos, e de certa forma dominava a vizinhança do bairro de Abasto, de maneira que Gardel conseguiu engrenar na carreira graças a sua relação com políticos conservadores.

O começo, de outra forma, teria sido difícil. O tipo mais popular de música portenha era a payada, uma espécie de repente de origem espanhola. Gardel não tinha a habilidade necessária para a improvisação em verso típica daquele estilo, mas pela sua voz, muita gente trabalhou para que o seu caminho se abrisse. Cantando da payada à ópera, Gardel se tornou figura conhecida Buenos Aires afora, se tornando um enorme sucesso no Uruguai ao lado do local José Razzano. Mas foi apenas em 1917 que ele cantou um tango pela primeira vez: La Noche Triste, de Samuel Castriota e Pascual Contursi. A sua gravação naquele ano é considerada o nascimento do tango-canção.

O novo estilo de tango foi recebido com ressalvas. Considerava-se o tango um estilo de música vulgar, uma "caricatura da música e da literatura", segundo o músico de tango tradicional Gabino Ezeiza. De fato, o tango estava associado às comunidades negras da periferia de Buenos Aires (Ezeiza era negro), e nem os artistas mais tradicionais e nem a alta sociedade portenha estavam preparadas para esse novo paradigma. Uma montagem teatral de 1918 incluía Manolita Poli, de 9 anos, cantando La Noche Triste à moda de Gardel, conquistando o público. A partir daí, Gardel investiu cada vez mais no tango, e em poucos anos já era o estilo mais popular de música na capital argentina.

A popularização recente dos discos de vinil permitiu que Gardel fosse ouvido e conhecido na Europa. Em 1923, com Razzano, fez um tour na Espanha. Pouco depois, sem Razzano (impossibilitado de cantar por causa de uma lesão nas cordas vocais), retornou à Espanha (onde gravou pela primeira vez com um microfone) e foi à França, onde o tango já era apreciado antes, e onde Gardel fez grande sucesso. Em 1933 apresentou-se em Nova Iorque.

Carlos Gardel, além de ter uma voz e uma interpretação de destaque, também era bem apessoado. Em 1930 ele estreou no cinema, com filmagens suas interpretando tango, e sua imagem se tornou um produto tão valioso quanto sua voz, sobretudo com o público feminino. No começo da carreira ele chegara a pesar 120 quilos, tratou de baixar para 76. Gardel tinha consciência de que sua aparência atraía público feminino, e, para dar a impressão de estar disponível, manteve quase em segredo seu relacionamento com Isabel del Valle, que começou em 1920 e durou até a sua morte.

Foi trabalhando com cinema que Gardel conheceu Le Pera, em Paris. O paulista se tornou roteirista dos seus filmes e letrista de suas músicas, e os dois trabalharam juntos na Europa e nos Estados Unidos. Da parceria surgiram tangos devastadoramente famosos, como Por Una Cabeza, El Día Que Me Quieras, e Mi Buenos Aires Querido (que você, leitor, deve ter lido entonando mentalmente a melodia dos seus respectivos versos). Os dois viajavam para promover o lançamento do filme El Día Que Me Quieras, produzido nos Estados Unidos, quando um problema na decolagem causou a colisão do seu avião em Medelín.

Após sua morte, Gardel se tornou um objeto de culto na Argentina e no Uruguai. Os uruguaios até hoje reivindicam o nascimento do cantor para a cidade de Tacuarembó, baseado em uma certidão de nascimento aparentemente forjada - Gardel, como era francês de nascimento, teria problemas com o governo da França por não ter se alistado durante a Primeira Guerra Mundial e tentou conseguir cidadania uruguaia com esse documento. Os lugares onde Gardel morou e se apresentou estão marcados com placas e monumentos em Buenos Aires, no chamado Circuito Gardel, e sua última residência, em Abasto, é um museu. Sua versão do tango se tornou um paradigma para esse estilo musical, e suas músicas parte da cultura popular no mundo todo; Por Una Cabeza é a música tema da icônica cena de dança interpretada por Al Pacino no filme Perfume de Mulher.

Neste dia também: A Batalha de Moira

terça-feira, 23 de junho de 2015

Cesarion, o último faraó

Em 23 de junho de 47 a.C. nasceu Cesarion, filho de Cleópatra e Júlio César.

Cesarion nasceu após uma visita de Júlio César a Cleópatra, no Egito. A faraó havia assistido César durante a guerra civil contra os partidários de Pompeu, que terminaria assassinado enquanto buscava refúgio no Egito. Cleópatra sustentava que ele era filho de César - então cônsul e a figura mais proeminente de Roma, de quem o Egito se tornara um Estado-satélite. Nos seus primeiros dois anos de vida, ele e sua mãe viveram em Roma como convidados de César. O general romano, contudo, nunca assumiu a paternidade do menino, tendo já se comprometido em testamento com a adoção de seu sobrinho-neto Otaviano como seu herdeiro. Cesarion seria o primeiro e único filho biológico de César. Cleópatra retornou com ele rapidamente para o Egito, e o proclamou Faraó.

O assassinato de César em março de 44 a.C. fragilizou a posição de Cleópatra e a soberania do Egito. Se seguiu uma guerra civil, onde o Triunvirato de Otaviano, Marco Antonio e Marco Emílio Lépido saiu vitorioso. A República foi provisoriamente repartida entre os três, ficando Antonio encarregado da administração das províncias orientais. Enquanto visitava suas novas possessões, Antonio encontrou-se com Cleópatra em Tarso, onde participaram de um grande banquete. Os dois passaram o inverno juntos, e o romance resultou em um par de gêmeos.

Já casado com a irmã de Otaviano, Otávia, e sentindo-se negligenciado por Roma quanto à sua campanha contra o Império Parta, Antonio partiu para o Egito em 37 a.C. em busca de suporte financeiro. Nesse momento, Otaviano expandia seu controle sobre a parte ocidental de Roma, forçando a aposentadoria de Lépido, assumindo seus domínios na África, e reforçando, com sua presença, seu favor diante do senado. Embora entre os dois não houvesse ainda uma ruptura política formal, parece que Antonio começou a se mover no sentido de fortalecer sua posição no oriente para fazer frente ao poder de Otaviano, apoiando-se no Egito.

Ele começou a distribuir províncias para os filhos de Cleópatra (Cesario e os seus). Em uma dessas medidas, em 34 a.C., ele também reconheceu Cesarion como filho legítimo e herdeiro de César. Além de receber como doação terras públicas, seu novo status oficial de "deus" e "filho de um deus" (porque César fora proclamado deus em 42 a.C.) irritou demais Roma. O senado vetou as doações e considerou um ultraje à dignidade do cidadão romano a deificação de um estrangeiro. Mas foi o reconhecimento de Cesarion como herdeiro de César que mais preocupou Otaviano, pois toda a sua popularidade derivava do testamento em que o general romano o tornava herdeiro por adoção. Um filho legítimo, mesmo fora do testamento, poderia ter mais apoio popular do que um adotivo (e que Antonio acusava de ter forjado os documentos da adoção).

Como o acordo do Triunvirato não seria renovado em 33 a.C., a guerra foi inevitável. Otaviano declarou guerra ao Egito (uma medida aceitável pelo senado, ao invés de declarar guerra contra outro romano), mas Antonio logo mobilizou o que pôde para defender Cleópatra e seus filhos. A enorme popularidade do jovem Otaviano, a despeito do prestígio de Antonio servindo ao lado de Julio César na gália, fez com que grande parte das tropas sob este desertassem em favor do rival. Após uma derrota naval em Actium em 30 a.C., Antonio voltou ao Egito e cometeu suicídio. Antes de fazer o mesmo, a rainha tentou negociar com Otaviano pela vida de Cesarion. Com o Egito conquistado, essa era uma questão que ainda o incomodava.

Cleópatra teria enviado Cesarion para a Índia, possivelmente anos antes, com soldados e tesouros. Mas quando estava para embarcar em um porto da Etiópia, teria sido convencido por um de seus guardiões a retornar a Alexandria, pois Otaviano o teria convidado a assumir o trono do Egito (Cesarion já tinha 17 anos). Segundo Plutarco, Cesarion retornou apenas para ser executado. "Dois Césares são demais", teria sido a resposta de Otaviano à súplica de Cleópatra.

Com a morte de Cesarion, Otaviano se tornou o único herdeiro legítimo de César disponível. Seguindo a conquista do Egito, Otaviano, no posto de cônsul, baixou uma série de decretos que mantinham uma aparência de república a Roma, mas que lhe atribuía poderes inigualáveis. Ele criou as fundações do Império Romano, do qual seria declarado imperador em 27 a.C.

Já o Egito caiu sob jugo romano, como ocorreu outras vezes no passado sob persas e macedônios (de cujo general Ptolomeu Cesarion descendia), mas mesmo os monarcas persas e macedônios seriam entronizados e reconhecidos pelo Egito como faraós das 27ª, 31ª, 32ª, e 33ª dinastias. Após cerca de 3200 anos, o Egito não existia mais como entidade política. Embora uma única lista tardia incluísse imperadores romanos na lista de reis do Egito até o século III d.C., Cesarion, conhecido também como Ptolomeu XV, foi o último faraó nativo.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

"Não obstante, ela se move"

Em 22 de junho de 1633, Galileu Galilei recebeu sua condenação da Santa Inquisição por causa da sua defesa da tese de que a Terra gira em torno do sol.

Durante a Renascença, a Europa viveu um período de rápido desenvolvimento filosófico, técnico e científico. Em parte graças à redescoberta de obras e autores gregos (além de Aristóteles, cujo conhecimento enciclopédico, porém engessado por convicções sem bases experimentais, sobreviveu muito bem durante a Idade Média), árabes, e ao intercâmbio comercial e intelectual com a Índia e a China. As navegações transoceânicas literalmente aumentaram o tamanho do mundo para o intelectual europeu - que, com o advento da imprensa, tinha agora à sua disposição muito mais literatura disponível do que jamais poderia ter na era dos manuscritos - e pensadores de todas as áreas se apressaram em investigar o que havia ainda a ser descoberto. Até fins do século XVII, autores europeus haviam conseguido avanços notáveis em ciências, como a matemática, a cartografia, a botânica, e a astronomia.

A astronomia deve muito a Nicolau Copérnico, cujas observações o levaram a concluir que o sol estava no centro de um sistema, em torno do qual os planetas, incluindo a Terra, gravitavam em órbitas mais ou menos constantemente concêntricas. Sua tese foi exposta minunciosamente, e em toda sua tecnicalidade, no seu livro Da Revolução dos Orbes Celestes, de 1543. Num mundo moldado em torno da crença de que o homem era o centro do universo, e a Terra o seu cenário permanente, a alegação de que a Terra era apenas mais um dentre vários mundos girando em torno do sol era uma ameaça franca à credibilidade da Igreja e ao status quo montado sobre ela - embora, fora do mundo cristão, e mesmo muito antes dele, muitos suspeitassem de que as coisas transcorriam de outra maneira. Com o recrudescimento da Santa Inquisição como parte da Contra-Reforma católica, em 1616 a Igreja moveu o Da Revolução para seu índice de livros proibidos.

Galileu teve acesso ao Da Revolução anos antes, e teria dado a entender que concordava com sua tese em carta a Johann Kepler enquanto lecionava matemática em Pádua. Em 1609, ele construiu seu próprio telescópio baseado nas descrições do telescópio inventado no ano anterior por Hans Lippershey, e além de passar usar o projeto geral para construir telescópios de boa qualidade para a venda (o que lhe rendeu alguma riqueza), com ele passou a observar mais intimamente as estrelas e os planetas que até então só podiam ser vistos a olho nu. Galileu observou luas em Júpiter (Ganimede, Calisto, Io e Europa, conhecidas hoje como "satélites galileanos"), o que por si só rompia com a cosmologia de Aristóteles, que não acreditava ser possível que "planetas" orbitassem outros planetas. Ele também avistou os anéis de Saturno, e o planeta Netuno, que ele não chegou a reconhecer como tal, devido à sua dificuldade em segui-lo o suficiente para caracterizar seu movimento como o dos outros planetas. Viu manchas solares, cometas, e descreveu crateras na Lua, que se achava ser, antes, uma esfera translúcida e perfeita.

Sua observação de Vênus o levou a confirmar a tese heliocêntrica de Copérnico. Em Vênus ele viu claramente a ocorrência de fases, como as da lua. Como o movimento de Vênus não era ao redor, e nem dependente, da Terra, ele provava experimentalmente que aquele planeta girava em torno do sol, e a existência do movimento de translação. Tycho Brahe, antes dele, propôs um sistema em que o Sol era orbitado por Mercúrio e Vênus, e esse pequeno "sistema solar" orbitava em torno da Terra, junto com os outros planetas conhecidos, o que Galileu e outros cientistas consideravam "insatisfatório". Em 1615, em um ensaio, Galileu cautelosamente propôs que a teoria heliocêntrica não se opunha à Bíblia (cujo salmo 104, por exemplo, explicitamente diz que "O Senhor colocou a Terra sobre suas fundações; ela não pode ser movida"), pois certos trechos do texto sagrado deviam ser lido como poesia ou alegorias. No ano em que Da Revolução foi proibido, Galileu foi intimado a renunciar à tese heliocêntrica pela Inquisição.

Galileu formalmente acatou a decisão da Inquisição, mas continuou trabalhando sobre suas observações e os cálculos deixados por Copérnico e outros que continuaram trabalhando em outros campos da astronomia. Ele dizia estar trabalhando num livro sobre a mudança das marés. Mas na realidade estava compondo uma tese na forma de um debate de quatro dias (em que cada dia ele se concentra em um assunto) entre um filósofo a favor do heliocentrismo, outro a favor das cosmologias ptolomaicas e aristotélicas, e um leigo neutro. Ali ele expõe as contradições dos resultados obtidos pela observação e experimentação contra o empirismo filosófico. Esse formato foi uma sugestão do próprio Papa Urbano VIII, um progressista que testemunhou a favor da obra de Copérnico em 1616, e seu amigo. O personagem leigo afinal inclina-se a favor do heliocentrista, indicando a posição de Galileu sobre o assunto. O aristotélico, Simplício (que em italiano também pode significar "simplório"), também não é dos mais brilhantes, e é uma espécie de crítica ao obscurantismo eclesiástico.

Diálogos Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo foi publicado em 1632. Em 1633 Galileu se apresentou diante do Santo Ofício. A Inquisição o acusava de heresia ao defender o copernicismo. O Papa particularmente não deve ter ficado feliz de encontrar suas próprias teorias astronômicas na voz de Simplício. Por quatro meses a Inquisição interrogou Galileu, que defendeu-se alegando que, desde 1616, não advogara mais publicamente a tese de Copérnico. Mas ao final desse período, doente e sob ameaça de tortura, Galileu cedeu. Além de uma pena de prisão perpétua, alterada para prisão domiciliar, e da proibição da publicação do Diálogos, o astrônomo foi obrigado a renunciar, negar, e depreciar publicamente a tese heliocêntrica. Contudo, uma anedota popular que corria ainda quando Galileu era vivo dizia que, ao final de sua exposição contra o seu modelo de sistema solar, ele teria dito a famosa frase em desafio:

"E pur si muove". "Não obstante, ela (a Terra) se move".

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Tragédias em Spa-Francorchamps

No dia 19 de junho de 1960, o australiano Jack Brabham venceu o Grande Prêmio da Bélgica em Spa-Francorchamps. Esta corrida foi marcada pelos acidentes fatais dos pilotos Chris Bristow e Alan Stacey, a primeira e única vez em que dois pilotos faleceram numa mesma corrida de Fórmula 1.

O circuito de Spa-Francorchamps usado atualmente possui 7004 metros de extensão, e é o maior circuito do calendário da Fórmula 1. No enanto, é um mero resquício do seu desenho original. Inicialmente, a pista de corridas de Spa-Francorchamps foi desenhada ao longo das estradas na região de Ardenes que perfaziam um triângulo, ligando nos seus três vértices as cidades de Francorchamps, Malmedy e Stavelot, passando por várias aldeias e vilas no caminho, como Masta, Mé, Burneville, Cheneux e Rivage, que davam nomes às curvas. Neste percurso, de mais de 15 km, os pilotos percorriam longuíssimas retas e curvas de raio longo. A primeira corrida oficial foi realizada em 1922, e a primeira edição das 24 Horas de Spa (em 1924 e disputada até hoje) tomou lugar nesse traçado.

Em 1960 a corrida seria disputada num traçado mais curto e mais veloz: a antiga subida até o topo do vale da Água Vermelha que terminava em uma curva fechada em U foi cortada por um S rápido em subida ligando diretamente o cotovelo da La Source com a reta Kemmel, tomando a forma da atual curva Eau Rouge; onde a estrada que vinha de Masta chegava em Stavelot, ela voltava através de um retorno fechado em direção a Francorchamps (trecho por onde passa a atual curva Blachimont e leva à reta dos boxes). Ali foi desenhada uma curva aberta e veloz ligando diretamente as duas retas.

Essa reforma da pista, feita nos anos 50, ainda conservava as características de uma estrada pública comum: a pista era bordeada por calçadas, postes, cercas e casas, ocasionalmente com alguns fardos de feno separando espectadores de carros atingindo 280 km/h. Em caso de acidente, as longas distâncias dificultavam o socorro, tanto na parte de comunicação, como no acesso de ambulâncias à pista e o transporte aos hospitais mais próximos. Era um circuito muito veloz, e muito perigoso, mas até aquele ponto, nenhum piloto da categoria havia se acidentado gravemente ali. E os pilotos de corrida daquele tempo aceitavam o perigo como parte do esporte.

Na vila de Burneville a estrada entre Francorchamps e Malmedy fazia uma longa curva à direita de cerca de 800 metros em descida. Perto do seu ápice e da sua saída, a pista era rodeada de barrancos dos dois lados. No lado de fora, o barranco chegava a 4 metros de altura, terminando numa casa e em uma passagem de carros, onde em 1966 a Cooper do suíço Jo Bonnier acabou pendurada depois de uma rodada. "Reta" é uma definição grosseira da pista que vinha antes da Burneville. Saindo da reta Kennel, a maior reta do traçado atual, onde hoje se faz um S fechado à direita antigamente se tomava à esquerda, e a pista seguia por mais de um quilômetro com leves desvios para um lado e para o outro, de maneira que o piloto tinha pouco tempo para alinhar a direção e fazer uma tomada segura no curvão. Num tempo em que os recursos aerodinâmicos eram basicamente inexistentes - os carros eram como charutos com rodas, cuja superfície de contato com o asfalto era bem menor do que o pneu de um carro de rua atual - a estabilidade do bólido nas curvas dependia do controle do piloto na direção, e no trabalho de freio, acelerador e câmbio, tracionando o tempo todo e forçando a parte traseira a orientar o carro no traçado correto.

Durante os treinos, o principal piloto de fábrica da equipe Lotus, o inglês Stirling Moss, rodou e bateu na Burneville devido a uma quebra na transmissão, sendo ejetado no gramado ao lado da pista, com fraturas nas duas pernas, no rosto e na coluna. À medida em que outros pilotos passavam pelo local, alguns paravam para prestar socorro. Àquela altura todos no circuito sabiam do acidente de Moss e o socorro estava sendo prestado, mas quase ao mesmo tempo, outro piloto da Lotus, Mike Taylor, se acidentara em outro ponto da pista, fraturando o pescoço. Demorou para darem falta dele, e mais de meia hora para uma ambulância chegar. Tanto Moss como Taylor sobreviveram, mas enquanto o primeiro voltaria a correr ainda naquele ano, o segundo ficou tetraplégico.

Ainda um jovem na época, Jim Clark, que viria a criar uma reputação de um piloto inabalável e infalível, tremeu nas bases ao ver dois companheiros de equipe correndo risco de morte por causa de falhas mecânicas. Ele largava na décima posição, no meio do grid. A largada foi autorizada com mecânicos ainda na pista. Na volta 13 ele viu outra Lotus, de Innes Ireland, rodar furiosamente no curvão Burneville, dando cinco giros antes de parar atravessado. Ao engatar a primeira, Ireland pensou que o câmbio tivesse quebrado. Ele acelerou fundo, e de repente as rodas giraram e ele foi catapultado para baixo do barranco. Ele nada sofreu.

Chris Bristow era um piloto jovem e ferozmente competitivo, que largara à frente de Clark no seu quarto Grande Prêmio Poucos minutos depois do abandono de Ireland, pilotando uma Cooper en perseguição à Ferrari de Willie Mairesse, Bristow entrou na Burneville pelo lado de fora. Ele teria tentado trazer o carro para dentro, mas perdeu o controle e capotou várias vezes, quase acertando Mairesse. Aparentemente, quando seu carro parou fora da pista, na parte de dentro da curva, em chamas, ele já estava morto - seu corpo todo quebrado foi arremessado na direção de uma cerca de arame farpado, que decepou sua cabeça. Clark disse que quase desistiu de correr de uma vez por todas quando viu seu corpo arrastado por um fiscal como um boneco de pano, e depois ao constatar sangue no seu próprio carro, não se sabe como. Ele passou a detestar o circuito de Spa até o fim da vida.

A fatalidade não interrompeu o Grande Prêmio. Jack Brabham seguia firme na liderança com outra Cooper seguido de longe pelo companheiro de equipe Bruce McLaren. Alan Stacey vinha em sexto, com mais uma Lotus. Stacey tinha ido com Ireland ao hospital na noite anterior visitar Mike Taylor. Taylor e Ireland estavam escalados para dividir um carro nas 24 Horas de Le Mans, e Taylor oferecera na ocasião seu lugar a Stacey. Este Alan Stacey tivera parte da perna direita amputada na adolescência por causa de um acidente de moto, e corria com uma prótese. Era muito difícil para ele acelerar e usar a embreagem com o mesmo pé, como faziam os outros pilotos. Mesmo tirar o pé do acelerador exigia que ele movimentasse todo o quadril dentro do cockpit.

Apenas 5 voltas depois do acidente fatal de Bristow, Alan Stacey saía da Burneville poucos metros depois dos destroços do carro de Chris Bristow, com aceleração total, a 190 km/h. Foi quando um pássaro passou na sua frente e acertou em cheio o seu rosto. Os pilotos usavam capacetes abertos (alguns usavam apenas gorros de couro) e óculos. Ele perdeu a consciência com o impacto. Seu carro deu uma guinada para a esquerda, atravessou alguns arbustos, e caiu numa ribanceira, pegando fogo. Quando o socorro chegou, ele estava morto.

A corrida seguiu até o final com vitória de Brabham, futuro campeão daquele ano. O mesmo traçado de Spa-Francorchamps seria usado continuamente até 1969, quando toda a organização do campeonato decidiu boicotar a corrida por falta de segurança. Em 1979 ele ganharia o seu traçado básico atual, excluindo toda a parte veloz entre Malmedy, Burneville, Masta e Stavelot. Em 1966 o futuro tricampeão Jackie Stewart sofreu um acidente na mesma curva Burneville - pilotando no seco, encontrou a pista subitamente molhada na curva devido à chuva naquele ponto e perdeu o controle do carro, caindo da ribanceira sobre o telhado de um celeiro - e a partir daquele momento ele lideraria o movimento dos pilotos pelo aumento da segurança nos carros e circuitos que levou ao desenvolvimento de um esporte automobilístico tremendamente mais seguro.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Início da colonização japonesa no Brasil

Em 18 de junho de 1908, o navio Kassato-Maru aportou em Santos, litoral de São Paulo, transportando 781 imigrantes japoneses. Foi a primeira onda migratória de caráter oficial de japoneses para o Brasil.

Em 1850 foi proibido o tráfico negreiro no Brasil. Com o tempo, outras restrições ao trabalho escravo tornaram cada vez mais difícil manter a mão de obra nas grandes propriedades rurais - a impossibilidade de aumentar a produção agrícola, especialmente de commodities como o café, sem aumentar a mão de obra escrava, e mesmo seu eventual colapso, era o principal argumento dos defensores do escravagismo. O trabalho escravo negro nas lavouras moldou a sociedade de tal forma que os brancos brasileiros ou portugueses se deslocaram para atividades liberais, e para atraí-los para o campo seria necessário pagar-lhes um salário maior do que os proprietários estavam dispostos a pagar.

Os fazendeiros voltaram suas atenções para a possibilidade de contratar imigrantes - trabalhadores sem ocupação, moradia, ou qualquer tipo de raiz que os faria aceitar trabalhar pelos mais baixos salários, mesmo com a mão de obra local escassa. Dessa forma, a imigração de europeus, majoritariamente da Itália, da Alemanha, e depois da Espanha e do leste europeu, começou a substituir os negros, em grande parte agora libertos e altamente qualificados para o serviço, como mão de obra rural. Políticos brasileiros e grande parte da sociedade viam com bons olhos o aporte especificamente de trabalhadores europeus no país. Em 1890, um decreto presidencial incentivava a imigração de europeus, mas quanto a asiáticos e africanos, sua entrada no país dependia de autorização do Congresso Nacional. Uma lei de 1892 anulou essa limitação.

Havia um movimento anti-asiático em toda a América, incluindo o Brasil, em grande parte devido às recentes Guerras do Ópio, na China. Eram vistos como indolentes e insubmissos. Os japoneses, cujo país abrira-se ao contato com o ocidente havia menos de 50 anos, especificamente, eram considerados inassimiláveis, devido às grandes diferenças culturais. Em "conversas de bar" (porém, na voz de intelectuais e políticos da época), o "asiático" era tido como uma raça inferior.

O Japão, por outro lado, tinha seus próprios problemas. Décadas de estabilidade interna após a queda do shogunato, e melhoras significativas na qualidade de vida derivadas do intercâmbio tecnológico com as nações ocidentais fizeram com que a população japonesa inflasse rapidamente. A superpopulação, a carência de terras agricultáveis e o desemprego causado pela mecanização da agricultura fizeram com que o governo incentivasse a emigração. As primeiras levas migratórias foram para Estados Unidos (inicialmente, Hawaii), Peru e México, e depois, com a conquista de parte da China e da Coréia, para estes países também (quase todos os colonos japoneses deixariam Coréia e Taiwan depois do fim da Segunda Guerra Mundial).

As necessidades dos dois países convergiram. Em 1905 um ministro japonês veio a São Paulo, principal estado produtor de café, avaliar a possibilidade de um acordo de imigração no Brasil. Em seu relatório, ele notou a crescente economia agrária e a receptividade do povo. Seu relatório foi divulgado em todo o Japão, acendendo um interesse na emigração. Em 1906, por conta própria, o advogado Saburo Kumabe reuniu um grupo de voluntários e apressou-se em vir com a família ao Brasil, estabelecendo uma colônia agrícola em Conceição de Macabu, no Rio de Janeiro, no ano seguinte. Enquanto isso, o governo japonês criava a Companhia Imperial de Colonização, encarregada de providenciar informação, trâmites legais e a logística para operar o transporte e estabelecimento de emigrantes.

O governo brasileiro firmou um acordo com a Companhia com duas exigências: uma sobre a contribuição do governo brasileiro para o pagamento das passagens e o seu ressarcimento posterior, e outra sobre o número de imigrantes que deveriam chegar aqui: 3 mil famílias. Isso criou um problema para o Japão, porque os inscritos para a viagem eram quase todos homens solteiros. O Brasil não abriria mão desta condição, porque queria imigrantes permanentes, e solteiros não se interessariam em fixar raízes por aqui (isso era tão importante que o governo depois abriu mão do número mínimo de imigrantes, desde que viessem em famílias). Então as prefeituras japonesas que recebiam os pedidos de emigração começaram a promover, em questão de semanas, casamentos de fachada e adoções forjadas para que o total de 600 homens e 181 mulheres inscritos constituíssem algo parecido com famílias. Apesar do recrutamento ser preferencialmente para o trabalho nas fazendas de café paulistas, poucos emigrantes tinham experiência no campo: havia policiais, professores, sacerdotes, advogados, operadores de máquinas.

O Kassato-Maru foi originalmente um navio-hospital da marinha russa batizado Kazan, que foi capturado ou oferecido como indenização ao término da guerra Russo-Japonesa de 1905. Passou a ser um navio de passageiros, usado para o transporte de tropas para a Manchúria, depois para o transporte de imigrantes para a América. Em 1908 foi fretado pela Companhia Imperial de Colonização para a viagem ao Brasil. O navio partiu em 28 de abril, viajando para o oeste, passando por Cingapura, África do Sul, e, finalmente, Santos. O mesmo navio acabou convertido em cargueiro, e depois requisitado pela marinha de guerra japonesa. Ele foi afundado por aviões russos em 1945.

Do porto de Santos, os imigrantes foram levados a São Paulo, onde foram distribuídos para seis fazendas no interior. Cada fazenda tinha seu intérprete. Mas a estrutura de acolhimento e o sistema de trabalho pode ter sido um choque: as acomodações eram precárias, pequenas cabanas sem mobília, algumas incapazes de acomodar mais de três pessoas, e o trabalho era supervisionado por capatazes, que até pouco tempo lidavam com escravos. O Kassato-Maru partiu do Japão com quase dois meses de atraso, de maneira que, quando os japoneses começaram a trabalhar nas fazendas, parte da colheita estava perdida. Os salários naquele primeiro ano foram tão baixos que as famílias mal conseguiam comida suficiente para sobreviver, quanto menos guardar dinheiro. Os colonos se queixavam de trabalhar em regime semelhante ao de escravidão. Por intervenção da Companhia, os colonos foram trazidos de volta a São Paulo e designados para outros trabalhos, como na construção de estradas de ferro, ou em outros tipos de fazenda. Mas poucos permaneceram trabalhando na terra. Em 1910, apenas 1/4 deles continuavam no interior de São Paulo. Os demais foram para a capital (onde trabalhavam como empregados domésticos e no comércio), para Santos, Rio de Janeiro, Minas, ou Argentina.

De qualquer maneira, foi a partir desta primeira leva de imigrantes que se iniciou um fluxo contínuo (com interrupções temporárias) de imigrantes japoneses para o Brasil. Hoje o país conta com a maior população de descendentes de japoneses fora do Japão, com cerca de 1,5 milhão de pessoas.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Drácula versus o sultão

Na noite do dia 17 de junho de 1462, Vlad III, príncipe da Valáquia (ninguém menos do que Vlad, o Empalador, a pessoa que inspirou o personagem do Conde Drácula) tentou pessoalmente assassinar o sultão otomano Mehmed II, o conquistador de Constantinopla, então o soberano mais poderoso do mundo, em algum lugar na atual Romênia.

Mehmed II assombrou o mundo ao tomar Constantinopla em 1453. Mesmo que o Império Bizantino definhasse a olhos vistos por séculos e estivesse praticamente restrito à cidade, existia uma crença na inexpugnabilidade da cidade, que já sofrera tantos cercos antes (inclusive dois assédios turcos) e conseguiu se sustentar. Então sua queda foi um choque, e Mehmed, agora com os dois pés fincados na Europa se tornou uma espécie de inimigo comum da cristandade. O Papa Pio II chegou a convocar uma cruzada em 1459 contra os turcos para retomar a cidade.

Os otomanos, na verdade, enfrentavam grandes problemas para manter a estabilidade nos territórios recém conquistados na Europa. Revoltas na Albânia e na Bósnia, focos de resistência na Grécia e na Sérvia. O sultão então optou por assegurar territórios estratégicos para facilitar as suas defesas. Vlad, então príncipe da Valáquia, havia sido o único soberano cristão a demonstrar entusiasmo com a ideia de uma cruzada contra os turcos. Ocorre que a Valáquia controlava a margem esquerda do rio Danúbio, e os turcos estavam na margem oposta, e Mehmed decidiu que seria estratégico controlar o rio, por cuja extensão navegável os cristãos poderiam enviar tropas desde a Áustria. A hostilidade de Vlad era o pretexto ideal para iniciar uma campanha.

A Valáquia mantinha sua independência à base de pagamentos anuais da Jizya, uma taxa específica para não-muçulmanos, os quais Vlad se recusava a pagar desde 1459. No ano seguinte, representantes turcos foram enviados ao país para cobrar a dívida e requerer o envio de mil rapazes para serem treinados como Janízaros, o corpo de elite do exército otomano. Vlad mandou executar os emissários. Forças turcas então atravessaram o Danúbio e começaram a raptar meninos por conta própria. Vlad os encontrou e mandou que os empalasse.

Quando Mehmed enviou mensagem solicitando que Vlad fosse a Constantinopla negociar, o príncipe respondeu dizendo que o não pagamento da Jizya se devia às baixas reservas por conta da sua guerra contra os colonos alemães da Transilvânia, e que ele não poderia deixar a Valáquia com medo de uma invasão húngara, mas que mandaria ouro assim que pudesse, e se encontraria com o sultão se ele enviasse um designatário turco de confiança para o seu lugar enquanto estivesse fora.

Vlad havia sido refém de Mehmed por 5 anos, e eles se conheciam muito bem. Era tudo uma encenação. Vlad contava com apoio do rei da Hungria. Mehmed sabia. Ele enviou o governador de Nicópolis para se encontrar com Vlad, mas secretamente com ordem de prendê-lo e levá-lo ao sultão. Suspeitando da boa vontade de Mehmed em atender seu pedido, Vlad emboscou a embaixada otomana, matou todos os seus cavaleiros e capturou o governador. Disfarçado de turco, cuja língua ele dominava, liderou seus soldados até a fortaleza onde seria realizado o encontro e a invadiu, destruindo-a e matando seus defensores. Em seguida, lançou uma invasão à Bulgária, matando soldados e civis turcos, vitimando mais de 23 mil pessoas, seus corpos empalados. Vlad contabilizou meticulosamente todas as suas vítimas em cartas para o rei da Hungria. Uma força de 18 mil turcos foi desbaratada, e mais 10 mil mortos entraram na sua conta.

Em 1462, Mehmed reagiu reunindo um exército de 90 a 150 mil homens (ou até 400 mil, dependendo da fonte) e 120 canhões para cruzar o Danúbio. Eles avançavam penosamente sobre uma terra devastada e abandonada deixada para trás pelo exército de Vlad. Além de escaramuças com sua cavalaria, Vlad enviava doentes de lepra, tuberculose, sífilis e peste para interagir com os turcos e disseminar doenças. Acumulando fracassos, os turcos, cansados da marcha e tendo que deixar para trás seus próprios doentes, acamparam a caminho da capital valaquiana de Targoviste.

Vlad, em pessoa, se utilizou novamente do disfarce para entrar no acampamento turco e localizar a tenda de Mehmed. Ao cair da noite, Vlad trouxe seus soldados, cerca de 30 mil, iluminando o acampamento com archotes, enquanto os turcos estavam dentro de suas barracas - aparentemente o sultão deixara ordem para que os soldados não saíssem de suas tendas, o que explicaria a demora em responder ao ataque. Os valáquios atacaram os animais que estavam ao relento e vários turcos que se apressaram para ver o que estava acontecendo, enquanto Vlad cavalgava diretamente em direção a Mehmed. Mas ele errou o caminho. Quando se revelou, percebeu que estava na tenda do Grão-Vizir. No final, Mehmed fugiu, e a hesitação de um comandante valáquio impediu uma vitória total. Ao amanhecer Vlad recuou para as montanhas.

Mesmo com a moral baixa (dizia-se que Mehmed fugiu correndo e, se não tivesse sido contido, teria ido até Constantinopla sem olhar para trás), os turcos marcharam para a capital. Ao chegarem lá, encontraram a cidadela deserta... mas com cerca de 20 mil turcos empalados diante das muralhas, ou na beirada das ruas (incluindo o governador de Nicópolis, que deveria ter capturado Vlad meses antes). Dizia-se que Mehmed retornou a Constantinopla doente por causa daquela visão.

Vlad ganhou enorme reputação (tanto como herói da cristandade, especialmente na Europa oriental, mas também como maníaco e assassino cruel entre turcos e alemães), mas nas idas e vindas da política nos Cárpatos, sem apoio adequado (pois Vlad executara e empalara vários nobres locais), ele não foi capaz de impedir o inexorável avanço otomano na região. Cronistas da época diziam que Vlad foi abandonado pelos seus aliados, capturado em batalha, decapitado, e sua cabeça, conservada em mel, levada para Constantinopla e exibida publicamente numa estaca, para provar que estava morto.

Ou será que não? :P

terça-feira, 16 de junho de 2015

As proezas do Sultão Murad IV

Em 16 de junho de 1612 nasceu Murad IV, o último sultão a seguir a tradição guerreira dos sultões otomanos.

Murad sucedeu seu tio, Mustafá I, um homem fraco de meia idade e com problemas mentais que era mantido no trono por uma facção de cortesãos sob o pretexto de ser o parente mais velho de seu irmão, Ahmed I. As últimas décadas antes da ascensão de Murad viram o Império Otomano descambar para a tirania de líderes locais, banditismo, e descontrole político e fiscal. Mustafá foi deposto quando o governador da cidade de Erzurum resolveu marchar para Istambul para vingar a morte de Osman II, um sobrinho de Mustafá que havia sido entronizado e assassinado durante seu reinado por causa de intrigas palacianas.

Murad era o irmão mais novo de Osman, e uma outra facção o elegeu o novo sultão. Ele tinha apenas 11 anos, e sua mãe assumiu a regência. Porém ela não foi capaz de debelar a corrupção e impor ordem no império A Pérsia havia tomado quase todo o atual Iraque quase sem resistência, e rebeliões internas pipocavam aqui e ali. Em 1632, um grupo de Janízaros - o corpo de elite do exército otomano, formado por garotos cristãos raptados ou "recrutados" nas províncias, criados como muçulmanos numa espécie de fraternidade, treinados e armados para serem absolutamente leais ao sultão - invadiu o palácio Topkapi, entrou no quarto do sultão e assassinou o Grão-Vizir. Murad, já um jovem adulto, resolveu que era hora de impor sua autoridade para deixar de ser um joguete e terminar como seu irmão Osman.

Ele começou a identificar e reprimir os que enriqueciam ilicitamente - sua repressão vinha na forma de humilhações públicas, prisões e execuções. Os militares foram disciplinados por meio de mais de 500 execuções, apenas de oficiais. Já os soldados que fossem vistos aceitando suborno deveriam ser executados na mesma hora, e não teriam sequer a dignidade de um enterro. O Grande Mufti, a maior autoridade da Lei Islâmica, teve o mesmo fim, assim como vários de seus parentes. Ele proibiu certas amenidades, como o consumo de álcool, tabaco e café, sob pena de morte - ele mesmo se encarregava de fiscalizar os estabelecimentos comerciais de Istambul, vestindo trajes civis. Ironicamente, o sultão era um amante de vinhos.

Murad, porém, devia ter muita dificuldade para se misturar: extraordinariamente forte, dizia-se dele que era um campeão na luta livre, conseguindo lutar contra sete oponentes de uma só vez. Apesar de exímio arqueiro e atirador, suas armas favoritas eram uma maça que pesava 60 quilos e ele empunhava com uma mão só, e uma espada gigantesca, pesando 50 quilos. Essas armas existem e estão expostas no Museu do Palácio Topkapi, em Istambul.

Em 1635 Murad se apresentou no front oriental, onde seu exército reestruturado tentava conter o avanço persa. Todo armado e paramentado, ele cavalgava com seus soldados, participava das batalhas, e acampava com eles, inspirando respeito e admiração. Assim ele retomou a Armênia e avançou até Tabriz, no atual Irã, retornando em triunfo a Istambul. Como seus comandantes não conseguissem manter os territórios, Murad voltou ao front três anos depois e tomou Bagdá, reassumindo controle otomano sobre todo o Iraque. O tratado de paz acordado em Zuhab em 1639 entre otomanos e persas praticamente definiu a fronteira ocidental do Irã com o Iraque e a Turquia como conhecemos hoje. A tomada de Bagdá também seria a última vez em que um sultão otomano participaria de uma batalha.

Enquanto isso, o reino formado por Lituânia e Polônia entrou em guerra com a Rússia. Murad mandou o governador da Bulgária pilhar o que pudesse na Ucrânia, sob influência polonesa, enquanto ele mesmo pagava nômades tátaros para saquear Moscou. Quando a Polônia-Lituânia saiu vitoriosa e mandou embaixadores se queixarem da Murad quanto às pilhagens na Ucrânia, o sultão alegou que o governador, que havia traído seu pai anos antes, havia agido por conta própria e mandou matá-lo, a contento de seus novos aliados.

Anos de descontrole com a bebida - dizia-se que, bêbado, Murad corria pelas ruas da cidade nu, com espada em punho, atacando quem aparecesse pela frente - o levaram a contrair cirrose. À beira da morte ele teria ordenado a execução de seu irmão mais novo Ibrahim, que havia vivido quase toda sua vida em confinamento (ele teria sido executado com seus irmãos por Murad, se sua mãe não tivesse intervindo por conta de sua fragilidade física e mental). Se isso tivesse sido levado a cabo, toda a dinastia otomana teria morrido junto, pois Murad não deixara filhos homens, e isso deve ter freado as mãos dos seus guardas. Ibrahim viveria para se tornar Ibrahim I ("O Louco"), sob cujo reinado - grandemente influenciado por cortesões e pelo seu harém - o Império mergulhou novamente no caos. Ibrahim seria deposto e executado com o aval de sua própria mãe.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

A Carta Magna

Em 15 de junho de 1215, há exatos 800 anos, o rei João da Inglaterra selou a Carta Magna, tornado oficial o corpo básico de leis que regularia o poder real, a legislação inglesa e suas relações institucionais pelos séculos seguintes.

Governar um país na Europa no início da Idade Média, sem a assistência de um sistema judicial baseado em leis uniformes e estáveis e jurisprudência, era uma faca de dois gumes. Por um lado, dava ao rei o direito de governar seu país conforme aprouvesse a si e a seus aliados da nobreza e do clero. Por outro lado, o rei precisava constantemente decidir (ou delegar juízes para fazê-lo sob seu próprio julgamento) sobre disputas pessoais, sobre propriedade, definir leis para casos específicos que nunca se repetiriam, ou reinterpretar leis antigas feitas para outros contextos históricos e sociais. Ou ele podia simplesmente deixar isso nas mãos de burocratas e ir caçar. Contudo, embora seu cargo tivesse legitimidade na bênção papal, a força do monarca e a estabilidade da sua posição dependiam da sua eficiência e equilíbrio como gestor, pois se negligenciasse os anseios da plebe, causaria revoltas populares; se resolvesse tomar medidas muito populares, perderia o suporte dos nobres; se fosse contra a Igreja, provavelmente perderia o apoio de ambos. Pois o seu próprio direito ao trono era uma questão de acordos de cavalheiros entre as forças dominantes. O poder, na teoria, estava todo nas mãos dos reis, mas a insegurança jurídica fragilizava enormemente todo o aparelho estatal e o próprio tecido social. Com o tempo, o Direito Romano, em pleno vigor no Império Bizantino e sobrevivendo em parte na forma de sistemas legais germânicos, foi sendo redescoberto e estudado no ocidente, levando ao desenvolvimento do sistema legal no mundo feudal de França, Inglaterra e Alemanha.

O que sucedeu com João foi mais ou menos decorrente do desequilíbrio e falta de clareza de limites entre poderes. João havia perdido grande parte dos territórios ingleses no oeste da atual França para o rei francês Filipe II (por causa disso, João ficou conhecido como "João Sem Terras"). Em parte, as sucessivas derrotas foram facilitadas pelos seus próprios aliados franceses, que reclamavam de taxações excessivas das suas propriedades em troca de proteção real e viam em João pouca boa vontade para com suas demandas particulares. As campanhas para retomar suas terras foram viabilizadas pelo aumento de impostos sobre propriedades. Mas seu fracasso - e os custos adicionais em tributos e compensações - fez com que os barões ingleses também se levantassem contra si.

Revoltas baronais não eram novidade na Inglaterra. Desde que Guilherme, o Conquistador tomou a coroa, todos os reis ingleses tiveram sua legitimidade questionada. O caso de João é que todos os seus irmãos estavam mortos (João era o mais jovem, assumindo depois que seu irmão Ricardo morreu a caminho de Jerusalém), e seus filhos muito jovens para liderarem uma revolta, então os barões tiveram que encarar a realidade de ter que fazer um acordo com o rei.

Para apaziguar os senhores de terras, João convocou um concelho em Londres e em Oxford para discutir reformas e tentar chegar a um acordo. Os rebeldes se apresentaram armados e desconfiados, trazendo consigo seus próprios soldados. João, por sua vez, contratou mercenários na França, mas hesitou em exibí-los para demonstrar força com medo de suscitar uma guerra civil na qual teria muito pouco apoio. Como os rebeldes recusassem a mediação do Papa (solicitada por João, e que não lhes seria vantajosa), o Arcebispo de Canterbury, Stephen Langton, assumiu a liderança das negociações, porém trabalhando junto a eles para a elaboração de demandas que fossem mutuamente interessantes.

Em 10 de junho, os rebeldes apresentaram o seu documento. Ele previa a proteção dos direitos da Igreja, providências contra prisões arbitrárias, acesso à justiça, e limitações às taxações e pagamentos dos senhores de terras à coroa. Versava sobre os direitos dos homens livres (basicamente, os próprios senhores de terras, excluindo servos e trabalhadores presos em semelhança à escravidão aos seus senhores por força de dívidas). Para colocar o poder real em cheque, foi proposta a criação de um concelho de 25 barões para monitorar a conformidade dos atos reais à lei. Em caso de transgressão, as propriedades reais seriam confiscadas até que seus erros fossem reparados.

O Papa Inocêncio III, por fim, respondeu aos apelos de João, excomungando os barões rebeldes e declarando-os pior do que os sarracenos, pois João declarara-se um cruzado, enfatizando sua posição de vassalo do Papa, dois anos antes. Mas já era tarde. No dia 15, João pressionou seu selo real sobre a Carta Magna, oficializando seu consentimento às demandas rebeldes.

O resultado imediato não foi bem o que as partes em contenda esperavam. Nem João nem os barões, cujo concelho de 25 racharia em questão de dias, se esforçaram em implementar as reformas. Uma das cláusulas inseridas no documento como parte do acordo de paz seria que os nobres deixassem Londres com seus soldados, o que eles se recusaram a fazer. Eles alegavam que o apelo de João ao Papa era uma transgressão, pois a cláusula 61 especificava que o rei " estava proibido de buscar algo de ninguém". Eles aproveitaram o momento para tomar o Castelo de Rochester, de propriedade do Arcebispo de Canterbury. João respondeu com seus mercenários franceses e vassalos leais, e a guerra civil eclodiu. Ela duraria cerca de um ano, sem solução clara, até a morte de João, por disenteria.

Porém, o efeito da Magna Carta se faria sentir aí. Os barões, em meio à guerra, convidaram o príncipe Luís, da França (futuro rei Luís VIII) para liderá-los e ofereceram-lhe a coroa. Mas com a morte do rei, o jovem Henrique III, de nove anos, foi coroado, e seus conselheiros compuseram uma nova versão da Carta Magna, menos conflituosa (extinguindo o concelho). Isso fez com que a aliança com o príncipe francês, que viria a ser mais um rei totalitário a quem os nobres ingleses teriam que se sujeitar no futuro, perdesse o sentido, e os fizesse voltar seu apoio a Henrique. A sua influência seria ainda mais duradoura, inspirando códigos de leis por toda Europa, e, depois, nos Estados Unidos, estruturando e regulando o Estado, dando autonomia à Igreja, e protegendo direitos civis. A Carta seria reescrita e ajustada várias vezes, e três das suas cláusulas originais estão até hoje em vigor nas leis da Inglaterra e do País de Gales.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A Declaração de Direitos da Virgínia

Em 12 de junho de 1776, em meio à Revolução Americana, representantes das colônias se congregavam clandestinamente em Williamsburg, na colônia da Virgínia. As Convenções da Virgínia pavimentaram legalmente o processo de independência dos Estados Unidos. Nesse dia, foi aprovada a Declaração de Direitos da Virgínia.

Durante a preparação da Constituição da Virgínia e da Declaração de Independência dos Estados Unidos, George Mason, um patriota durante a revolução americana, levou a votação um documento à parte, inspirado em parte na Declaração de Direitos de 1689, na Inglaterra, e na obra de Jonh Locke. Mais tarde, a Declaração de Direitos da Virgínia foi incorporada ao primeiro artigo da Constituição daquele estado, vigente até hoje.

Originalmente, a Declaração continha 10 artigos, posteriormente acrescidos de mais seis. O documento versa sobre os direitos do homem, e dos fundamentos de um governo republicano democrático. Resumindo muito, e com alguns comentários:

1- Todos nascem iguais e livres, e têm, e não lhes podem ser negados, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança e à felicidade (uma emenda à primeira seção introduziu a condição "when they enter into a state of society", ou "quando eles - os homens - entram num estado de sociedade", o que isentava donos de escravos a observarem esses direitos, já que escravos não participavam da sociedade, e podiam ser encarados como propriedade)

2- O poder emana do povo, e deve ser exercido para o povo;

3- Um governo deve ser instituído para benefício comum, proteção e segurança do povo. E em caso de falha em algum desses propósitos, a maioria da comunidade tem o direito inalienável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli-lo;

4- Nenhum homem ou grupo deve receber tratamento excepcional ou privilégios, e nenhum cargo deve ser hereditário;

5- Deve existir separação e independência entre poderes executivo, legislativo e judiciário (o documento previa provisões especiais para os membros desses, já que estavam em plena revolta contra o domínio britânico, e operavam na ilegalidade sob o ponto de vista da metrópole);

6- A participação política é livre, e todo homem tem direito ao voto, e o voto deve ser livre e expresso sem consequências ao eleitor ("todo homem", "all men", e aí a redação não deixa claro se se refere apenas aos homens, ou a todo ser humano. Isso fez com que o direito feminino ao voto precisasse de mais 200 anos para ser implementado em sua plenitude nos Estados Unidos);

7- A suspensão ou execução de quaisquer leis, por qualquer autoridade, sem o consentimento dos representantes do povo, não deve ser exercida;

8- Todo homem tem direito à ampla defesa, ao julgamento imparcial, a não produzir provas contra si mesmo, e a não ser privado de liberdade sem julgamento;

9- Nenhum tipo de tortura ou restrição excessiva ou impeditiva à liberdade (como a cobrança de fianças em valores impossíveis de serem pagos) deve ser permitida;

10- Nenhum tipo de mandado de busca, apreensão ou prisão deve ser expedido sob suspeita ou acusações sem evidências;

11- Querelas a respeito de propriedades, ou ações de homem contra homem, devem ser levados a juri, cuja decisão será sagrada;

12- A liberdade de imprensa é um dos bastiões da liberdade, e nunca poderá ser restringido;

13- Uma milícia regulada, composta pelo povo, treinado em armas, é a defesa apropriada e segura de um Estado livre. Exércitos em tempos de paz devem ser evitados como um perigo à liberdade, e sua subordinação e comando devem emanar do poder civil;

14- Nenhuma forma paralela de governo deve ser estabelecida dentro dos limites da Virgínia;

15- Nenhum governo livre pode ser preservado sem a firme aderência à justiça, moderação, temperança, frugalidade e virtude;

16- A religião e a prática religiosa podem ser dirigidas apenas por razão e convicção, não por força ou violência, e portanto todos os homens tem iguais direitos de exercer livremente sua religião, e é dever mútuo de todos praticarem a tolerância, amor e caridade uns aos outros (o texto insere isso num contexto cristão, mas a proposta original desta seção, de James Madison, previa um contexto mais amplo).

A Declaração dos Direitos da Virgínia foi o primeiro documento inserido em uma constituição de um Estado moderno a proteger direitos individuais gerais, defendendo a igualdade entre todos os cidadãos, a proteger o direito à propriedade, e a definir um Estado servidor em que seus governantes não estejam acima dos direitos civis. A Declaração foi usada como base para a Carta de Direitos de 1789, incorporada à Constituição dos Estados Unidos na forma das suas dez emendas originais, e também serviu de inspiração para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada na França revolucionária também em 1789, por sua vez, precursora da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

A morte de Alexandre, o Grande

O dia 10 de junho (mas possivelmente no dia 11) de 323 é a data de falecimento de Alexandre III, rei da Macedônia, conhecido na posteridade como Alexandre, o Grande, pouco mais de um mês antes de completar 33 anos de idade.

Alexandre, filho do competente Filipe II da Macedônia, foi um rolo compressor que conquistou e unificou em torno de si, pela força ou pela persuasão, as cidades-estado, ligas e alianças regionais da Grécia continental e insular (Esparta se recusou a fazer parte e foi deixada em paz), além de conquistar a Trácia, grande parte da atual Bulgária, historicamente fora do mundo grego propriamente dito. Em seguida, partiu com 40 mil soldados e 120 navios em direção às cidades helênicas sob domínio persa na Ásia, com vitórias decisivas contra os exércitos de Dario III em Granicus e Issus. Conquistou a inexpugnável cidade fenícia de Tiro. "Libertou" o Egito, onde foi coroado faraó. Avançou em direção ao coração da Pérsia, derrotando definitivamente Dario em Gaugamela, perto do Rio Tigre. Foi coroado rei e libertador na Babilônia. Enfrentou focos de resistência persa aqui e acolá enquanto tomava cidades, fundava outras, e marcava seu território pelo interior da Ásia. Expandiu seu domínio até as proximidades de Fergana, na fronteira com a China. Atravessou o rio Indo, onde foi finalmente rechaçado pelo rei Porus. Depois de enfrentar dissenções entre os soldados cansados da guerra, finalmente marchou de volta pelo sul, alcançando a Babilônia, onde morreu. Tudo isso em apenas 11 anos.

A causa da morte de Alexandre segue em mistério. As fontes antigas concordam que ocorreu de 10 a 15 dias após uma bebedeira, pouco tempo depois da morte de Hefestion, seu amante. Alguns insinuaram que ele tivesse sido envenenado. Outros, que tenha contraído alguma doença (o quadro descrito por Plutarco, por exemplo, sugere meningite). O fato é que Alexandre morreu sem herdeiros (seu filho com a princesa bactriana Roxana ainda não havia nascido). Seu testamento incluía exigências como a conquista da Arábia, a circunavegação da África, e a promoção do deslocamento de populações asiáticas para a Europa e vice-versa, visando o seu enriquecimento cultural e fortalecimento de laços de amizade (ideia que os gregos detestavam), e por isso, segundo o historiador Diodoro Sículo, teria sido descartado entre os altos comandantes alexandrinos. No seu leito de morte, eles teriam perguntado ao rei quem deveria governar no seu lugar, ao que ele teria respondido "o mais forte". Já outros alegam que Alexandre estava incapacitado de falar perto da morte; ele teria, num último gesto, passado seu anel a seu segurança Perdicas.

Perdicas defendia que todos deveriam esperar o nascimento do filho de Roxana, do qual ele e outros companheiros próximos de Alexandre seriam seus guardiões. Meleagro, comandante da infantaria, defendia que Filipe, meio-irmão de Alexandre, deveria ser o herdeiro. Os dois partidos entraram em acordo, e eventualmente Alexandre IV e Filipe III foram apontados reis. Contudo, como um era um bebê e o outro um nobre pouco reconhecido entre os militares, possivelmente com problemas mentais (embora Alexandre tivesse muito apreço por ele), este equilíbrio de forças foi capaz de evitar uma guerra civil apenas até o assassinato de Perdicas, o guardião do bebê e regente. Então, vários generais, cada um encastelado em uma parte do império, começaram a guerrear entre si.

O vasto império alexandrino foi, por fim, dividido em quatro partes leais a cada um dos seus companheiros: o Egito sob controle de Ptolomeu I, a Ásia Menor e a Trácia sob Lisímaco, Macedônia e Grécia sob Cassandro, e a maior parte da Ásia sob Seleuco. Embora desses, Ptolomeu e Seleuco tenham conseguido estabilizar seus territórios e governar com eficiência grandes porções de terras, nenhum dos reinos nascidos do império de Alexandre resistiria ao avanço de Roma, no oeste, e da Pártia, no leste. No ano 30 a.C., a última soberana descendente dos herdeiros de Alexandre, Cleópatra VII, cujo poder no Egito já dependia da boa vontade de Roma, cometeu suicídio.

A efemeridade do império de Alexandre contrasta com a permanência do seu legado em diferentes formas. Muitas cidades, algumas habitadas até hoje (Alexandria, no Egito, Iskenderun, na Turquia, e Kandahar, no Afeganistão, por exemplo), foram por ele fundadas para que seus soldados pudessem se estabelecer se assim quisessem. Até hoje, várias comunidades nos vales do Afeganistão traçam sua ancestralidade a soldados macedônios que ficaram para trás. A cidade de Tiro, que no momento da sua conquista era uma ilha inexpugnável, passou a ser permanentemente ligada ao continente por um istmo artificial de terra e entulho construído pelos homens de Alexandre para alcançá-la, e sobre o qual a moderna Tiro está assentada. A imagem e o símbolo de Alexandre como o conquistador do mundo que morreu jovem, com a coroa de louros, reproduzida em moedas, altos relevos e estátuas, passou a ser a inspiração para futuros imperadores - os cristãos dos primeiros séculos, antes de definirem Jesus como um homem branco com barba e cabelo comprido, usavam a efígie de Alexandre para representá-lo. A vastidão do seu império, e de seus herdeiros, proporcionou ao helenismo - o modo de vida grego, com sua filosofia, sua religião, sua arte, sua língua, suas técnicas - circulassem pela Ásia e influenciassem enormemente o novo mundo desfraldado para os gregos. A filosofia grega também influenciou de maneira indelével o hinduísmo e o budismo na Índia.

Diz-se que quando Julio César, ao se perceber com 32 anos como mero questor na Espanha, teria chorado diante de uma estátua de Alexandre, em Cádiz, ao perceber que, naquela idade, Alexandre já havia conquistado o mundo.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A derrocada de Nero

O dia 9 de junho foi uma data auspiciosa na vida do imperador romano Nero. No ano 53 ele se casou com Claudia Octávia, uma prima e irmã adotiva, filha do seu tio-avô e antecessor Claudio. No ano 62, Claudia, exilada pelo próprio marido, foi levada ao suicídio. E em 68 foi a vez de Nero dar fim à própria vida.

Nero foi o último imperador da dinastia Júlio-Claudiana, que começa com o herdeiro legal de Júlio César, Augusto, que se casou com Lívia Drusila, da família Claudiana, e teve como herdeiro seu enteado Tibério. Dizia-se que a família Claudiana tinha uma veia boa e uma veia má. Além da própria Lívia, uma conspiradora extremamente astuta que provavelmente influenciou na morte dos filhos legítimos de Augusto debaixo do seu nariz para levar Tibério ao poder, e de Tibério, um político cortês que levava uma vida particular chocantemente depravada, a família ainda gerou Calígula, de má fama eterna como um tiranete impiedoso e suscetível a ímpetos de loucura. Da veia boa, existiram Cláudio Druso, primeiro filho de Lívia, um militar de carreira ilibada que morreu (ou talvez tenha sido morto) jovem, seu segundo filho Germânico, também militar extremamente popular por sua beleza, habilidade, vitórias e boa reputação (pai de Calígula, diga-se de passagem), e Claudio, seu irmão mais novo que se tornaria imperador, um sujeito modesto, sem ambições, com problemas físicos e que se dedicava às letras, embora tivesse seus deslizes. E Nero, neto de Germânico por sua filha Agripina, irmã de Calígula.

Nero herdou uma má reputação como imperador louco que faz sombra sobre a de Calígula. Porém, ao contrário deste, Nero soube tomar as rédeas do governo e usar o assassinato como recurso para a manutenção de sua posição - e não por mera extravagância como de seu tio. Sobretudo, entendia a necessidade de ser popular junto ao povo, para o qual implementou diversas obras de utilidade pública, como teatros, ginásios, banhos, templos, promovendo festivais e espetáculos para o povão. O próprio Nero participava de corridas, competições musicais e teatrais, para deleite do público. Em uma ocasião, quase morreu ao ser atirado de sua carruagem enquanto participava dos Jogos Olímpicos na Grécia. Por causa disso, a aristocracia romana, incluindo alguns cronistas da época, pintava o demônio em Nero, atribuindo a ele atos de loucura injustificada, como o incêndio em Roma, e o assassinato de sua segunda mulher enquanto estava grávida. Contudo, ele reinou por 14 anos, notavelmente mais do que políticos equilibrados apenas sobre a volúvel influência sobre o exército ou o senado (cujo poder foi lentamente minado ao longo do reinado de Nero).

Mas Nero tem no seu currículo atitudes suficientes para ter uma reputação controversa sem a necessidade de difamações. Várias fontes contemporâneas atestam que Nero teria sido responsável pelo assassinato de seu primo Britânico, filho de Claudio, nos primeiros meses de reinado. Sua mãe Agripina, então com grande influência em seu governo, escapou de um atentado em que seu navio teria afundado ou encalhado propositadamente, mas quando ela sobreviveu, Nero teria ordenado sua execução de maneira que parecesse suicídio. Sêneca, o poeta estoico que servia a Nero como conselheiro, e com quem ele passou, em determinado momento, a discordar sistematicamente, foi acusado de participar de uma conspiração para assassiná-lo e condenado ao suicídio, embora não haja evidência de que ele tenha tomado parte na conspiração.

Quanto a Claudia Octávia, seu casamento com Nero foi arranjado enquanto Claudio ainda era vivo, para consolidar a posição de Nero como herdeiro. Octávia, aparentemente, era da veia boa dos Claudianos: uma jovem dama, educada e "virtuosa". Nero a achava uma chata, a acusava de ser estéril, e a teria agredido várias vezes em público. Apesar de infeliz no casamento, ela era bastante popular entre os plebeus, provavelmente por incorporar essa "virtude" da mulher romana. Nero acabaria desistindo de levar uma vida com ela, e se interessou por Popeia Sabina, esposa do futuro imperador Oto. Por causa desse affair, e da gravidez de Popeia, Nero se divorciou de Octávia e a baniu para a ilha atualmente conhecida como Ventatene, uma ilha rochosa que servia de prisão para onde seus antecessores baniram suas parentes por comportamento impróprio (incluindo a mãe e a avó de Nero). Porém, ao saber disso, o povo foi às ruas com estátuas e mensagens de Octávia pedindo o seu retorno. Assustado, Nero concordou, apenas para ordenar o seu suicídio. A exemplo de Sêneca, Octávia abriu as veias dos braços e mergulhou numa banheira quente, como os romanos ritualmente faziam e consideravam a maneira digna de tirar a própria vida.

O destino de Popeia é incerto. Ela foi a esposa que Nero teria matado quando estava grávida, mas a tomar pelo desespero do imperador pela sua morte, o assassinato é pouco provável. O historiador Cassio Dio (um dos difamadores de Nero) supõe que ele possa ter se deitado sobre ela e causado o aborto que teria levado sua vida junto por acidente. A reação de Nero após sua morte foi exacerbada - Popeia foi embalsamada e depositada no Mausoléu de Augusto com honras divinas. Dois anos depois, Nero ordenou que um jovem liberto parecido com Popeia fosse castrado e se casasse com ele.

Em 68, Caio Vindex, governador da província da Galia Lugdunensis, apoiado por Sérvio Galba, governador da Espanha, se rebelou contra a política fiscal de Nero. Lúcio Vergínio, governador da Germania Superior, venceu Vindex, e suas tropas tentaram aclamá-lo imperador. Como Vergínio se recusava a atuar contra Nero, as tropas se voltaram a favor do rival Galba. O prefeito pretoriano abandonou Nero e jurou lealdade ao governador rebelde. Com a situação instável, Nero tentou fugir de Roma, mas seus oficiais se recusaram a ajudá-lo. O imperador ruminou sobre o que fazer, considerando pedir asilo ao império rival da Pártia, entregar-se a Galba, ou pedir perdão ao povo. Nero então foi dormir. Ele teria acordado no meio da noite e encontrado o palácio deserto. Nenhum amigo respondia aos seus chamados, nem sequer um gladiador que pudesse matá-lo. Um liberto chamado Phaon ofereceu sua vila para que Nero pudesse se esconder. Lá, ele ordenou que outros libertos lhe preparassem uma cova. Antes de anoitecer, um mensageiro chegou com a notícia de que o senado havia declarado Nero inimigo público e que era procurado (segundo Tácito, o senado, na verdade, esperava que com isso Nero se apresentasse, e juntos pudessem discutir uma solução, já que ele era o último imperador da sua dinastia, à qual quase todos os senadores haviam servido a vida inteira). Mas, desesperado, Nero então decidiu pelo suicídio. Primeiro pediu que um dos libertos se matasse na sua frente para lhe dar coragem. Conforme o som de cavalos se aproximasse, Nero, sem coragem ainda para tirar a própria vida, pediu a seu secretário que o preparasse abrindo suas veias.

No final, o senado, de fato, declarou Nero inimigo público. Galba foi prudentemente declarado imperador pelo senado, mas sua autoridade foi questionada em outras partes do império. Vitellius, governador da Germania Inferior foi aclamado pelas legiões estacionadas no rio Reno, e Oto, amigo de Nero a despeito do seu relacionamento com Popeia, tinha a Guarda Pretoriana ao seu lado. Os três se sucederam em menos de um ano, e a guerra civil só terminou quando o veterano general Vespasiano levou suas legiões do oriente a Roma e foi aclamado imperador no final do ano 69 (o Ano dos Quatro Imperadores), iniciando uma nova dinastia, a dinastia Flaviana.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Um tiro no vazio

Em 8 de junho de 1959, a marinha americana e o sistema postal dos Estados Unidos fizeram um teste de lançamento de correspondência via foguete guiado do tipo Regulus, lançado a partir de um submarino situado no norte da Flórida, em direção à base naval de Jacksonville, naquele estado. O foguete chegou com sucesso ao seu destino em 22 minutos.

 Comunicação a distância sempre foi um desafio para a humanidade. A capacidade de enviar e captar informações rápida e eficientemente determinava, por exemplo, o sucesso de uma batalha (sabendo de antemão a aproximação de um exército, seus números e sua composição, enviando mensagens de auxílio a aliados, interceptando informações da rede de inteligência inimiga, ou enviando mensagens de paz antes que os soldados cheguem às vias de fato), ou a possibilidade de adoção calculada de métodos, estratégias, tecnologias antes desconhecidas para o bem comum. A necessidade das pessoas de enviar mensagens para outras que poderiam colaborar (ou impedir) com seus planos também sempre foi uma preocupação.

 A comunicação direta à distância na pré-história sempre foi limitada a curtas distâncias, basicamente circulando e se difundindo lentamente de uma aldeia ou tribo nômade para outra conforme houvessem contatos casuais. Criar sinais que pudessem ser vistos à distância, como piras em chamas no alto de montanhas, bandeiras, reflexos de luz, soar de tambores ou outros instrumentos, ou colunas de fumaça nítidas e controladas configurando sinais pré combinados no céu, tiveram seu momento e sua utilidade, mas pecavam na confidenciabilidade do seu conteúdo e na necessidade de se capturar e interpretar com precisão um sinal que não poderia ser repetido. A eletricidade permitiu transmissão de sinais por fio (códigos sonoros, como o Morse, telefonia por fios de cobre e fibra ótica) ou por ondas eletromagnéticas (rádio, satélite), mas isso já no nosso tempo, e com seus próprios problemas. 

Mesmo dessa forma rudimentar, antes da invenção da escrita populações no Mediterrâneo obtinham obsidiana produzida em minas no Oriente Médio a 900 km de distância. Eles sabiam que havia obsidiana lá, e comerciantes chegavam até eles com mercadoria para atender uma demanda local porque viajantes levavam essa informação entre um lugar e outro enquanto se deslocavam de acordo com seus próprios interesses. O Egito Antigo foi um ávido consumidor de lápis lázuli extraído no Afeganistão.

As redes de informação à distância evoluíram com as rotas comerciais - era por aí que fluíam as informações sobre novos materiais, novas tecnologias, novas armas e táticas, mesmo movimentos de povos e guerras distantes. O ferro, por exemplo, era um metal conhecido, embora raro e difícil de se trabalhar, encontrado no Oriente Médio e usado como ornamento, até que por volta de 1200 a.C., no centro da Anatólia, começou a se desenvolver novos métodos para a fundição de ferro. As armas de ferro usados pelos hititas para enfrentar as civilizações da baixa Idade do Bronze no rio Eufrates, na Palestina e, sobretudo, o Egito, provocaram uma revolução mundial na indústria bélica, na agricultura e na produção de instrumentos domésticos que definiram uma era inteira, a Idade do Ferro.

 Se as informações fluíam pelas rotas comerciais, elas fluíam na velocidade que era possível. A pé, em carroças, barcos, caravanas, ou sobre o lombo de cavalos, sempre houve uma limitação para a velocidade com que uma informação gerada num ponto podia chegar a outro. O Império Persa construiu um sistema que explorava e otimizava a velocidade do seu veículo mais rápido disponível (o cavalo) para fazer com que mensagens circulassem o mais rapidamente possível, o que foi crucial para o estabelecimento e manutenção do Império Aquemênida, o maior do mundo até então. As estradas, ligando as principais cidades do império, eram pavimentadas, traçadas de maneira a evitar passagens muito intrincadas. Entre as capitais de Susa, a leste do rio Trigre, e Sardis, na atual Turquia, havia 111 estações, constantemente abastecidas com comida, água, acomodações para pernoite, e cavalos alimentados e descansados, de maneira que um mensageiro poderia fazer seu cavalo correr o mais rápido possível o tempo todo, trocá-lo por um cavalo descansado na próxima parada e seguir viagem a toda velocidade. Esse sistema, melhorado depois pelos romanos, foi o sistema de correios mais rápido do mundo até a invenção da locomotiva a vapor. Em alguns lugares em que sistemas semelhantes foram estabelecidos, muitos entrepostos acabaram evoluindo para novas cidades.

 A invenção das locomotivas e barcos a vapor aceleraram a forma com que informação passou a ser trocada, mas, logicamente, ainda tinha suas próprias limitações de velocidade, especialmente num tempo em que o telégrafo já estava se desenvolvendo. Uma locomotiva a vapor no início do século XX era o meio de transporte mais rápido que se conhecia, mas ainda não era o objeto mais rápido. Projéteis impulsionados por explosões de pólvora gradualmente suplantaram o arco e a flecha no campo militar, e também inspiraram ideias. Em 1810 o escritor alemão Heinrich von Kleist propôs que se instalassem canhões ou morteiros fixos que atirassem projéteis ocos contendo cartas em locais abertos onde seriam recolhidos e distribuídos - ou levados ao próximo canhão e atirados a outra localidade, assim sucessivamente até se chegar ao seu destino. Ele calculava que era possível transpor uma distância de 300 km em metade de um dia desta maneira.

 Foguetes, com propulsão própria, começaram a ser usados ainda no século XIX, e conforme sua autonomia de voo e precisão avançavam, eles se tornavam candidatos óbvios como veículos de correio rápido e de longa distância. Engenheiros alemães no final da década de 1920 calculavam ser possível percorrer um arco de 5 mil km com um foguete, cuja cápsula estaria equipada com um para-quedas, para evitar danos materiais e a integridade da correspondência. Existiam até esquemas para o lançamento sobre montanhas. Áustria, Alemanha, Inglaterra, Holanda, até Cuba fizeram seus testes. Um engenheiro inglês chamado Stephen Smith fez cerca de 270 testes com cerca de 20 foguetes providos pelo governo britânico na Índia - embora tenha tido algum progresso, o grande desafio ainda era acertar o alvo com segurança e efetivamente entregar a mensagem.

Como ficaria evidente durante a Segunda Guerra Mundial e os embaraçosos projetos de foguetes de longo alcance na Alemanha nazista, a ciência de foguetes ainda estava longe de produzir um meio rápido, seguro e preciso de envio de correspondência a longa distância. A aviação, por outro lado, avançava a passos largos, e mesmo na década de 1920 o correio aéreo era o meio pelo qual mensagens eram transportadas a médias e curtas distâncias na Europa e na América. Não obstante, os Estados Unidos continuaram perseguindo o desenvolvimento do correio via foguetes. A propulsão, a autonomia de vôo, e o relativo controle da rota só começaram a dar mostras de que isso seria viável já avançando nos anos 50.

Quando os americanos testaram o "rocket mail" via submarino, os aviões comerciais de grande porte já cruzavam o Atlântico regularmente, com capacidade para entregar toneladas de cartas e embrulhos de um continente a outro em menos de um dia. Por mais que os oficiais responsáveis pela operação tenham louvado a façanha como o início de uma nova era, a ideia do "rocket mail" foi logo depois abandonada em favor do correio aéreo. No final, foi um tiro no vazio.