quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Breves alianças e uma guerra sangrenta

Em 10 de dezembro de 1508, o Papa Júlio II, o rei Luis XII da França, o imperador Maximiliano I do Sacro Império Romano, e o rei Fernando II de Aragão firmaram, mediante seus representantes legais, a formação da Liga de Cambrai, aliança militar originalmente contra a República de Veneza.

A passagem do século XV para o XVI apresenta muitos eventos dramáticos que transformaram a antiga Europa feudal numa região economicamente dinâmica, levando a um expansionismo comercial e colonial e a uma crescente proeminência nos negócios em escala global, alcançando África, Américas, Índia e China. Um dos eventos-chave que desencadearam vários desses processos foi, curiosamente, um revés: a perda de Constantinopla para os turcos otomanos em 1453. O Império Bizantino definhava havia séculos, mas ainda gozava da posição privilegiada da sua bem defendida capital, guardando o Estreito de Bósforo, que liga o Mediterrâneo ao Mar Negro, e permitia a passagem segura de navios até um trecho da Rota da Seda que não passava por território controlado por muçulmanos hostis. Quando os turcos tomaram a cidade, esta via se fechou. Na verdade continuou aberta, mas à mercê do humor do sultão e de piratas turcos e árabes, e acessível sob o pagamento de taxas que diminuíam a competitividade dos preços dos produtos que saíam e entravam na Europa. Apenas os venezianos, então senhores de um vasto império comercial marinho com possessões pontuais ao redor do Mediterrâneo, tinham o direito de operar o comércio nos domínios turcos. Veneza já tinha uma colônia comercial logo ao norte de Constantinopla, em Pera, quando ainda era controlada pelo Império Bizantino, e manteve os mesmos direitos depois da sua conquista.

Com a ligação com a Ásia via Mediterrâneo comprometida, as nações europeias tinham três opções: aliar-se aos turcos (como fazia Veneza, porém, com graves consequências no campo religioso), tentar quebrar seu domínio à força, ou lançar-se no desconhecido Oceano Atlântico em busca de novas rotas para o leste. Neste novo cenário, os reinos mais ocidentais de Portugal, Castela e Aragão tomaram a iniciativa. Portugal lançou repetidas expedições que tateavam a costa da África à procura de uma passagem ao sul até o Oceano Índico. O genovês Cristóvão Colombo convenceu os reis de Espanha a financiarem uma expedição que desbravaria uma rota alternativa para a Índia navegando para o oeste (adotando e convencendo-os da tese de que a Terra era esférica, embora não tivesse certeza do seu tamanho). Colombo nunca chegou à Índia, pois a América estava no caminho. Eventualmente essas nações, seguidas depois pela França e por aventureiros holandeses e ingleses, descobririam o potencial econômico da América e da África recém-descobertas, além de estabelecer rotas comerciais com a Ásia que evitavam os turcos e venezianos, guardando os lucros do comércio para si.

Países mais no interior, como a própria Veneza, os reinos e repúblicas italianos e o Sacro Império Romano, continuaram por muito tempo a insistir no Mediterrâneo como essencial às suas próprias aspirações econômicas. Veneza mesmo já estava vendo os recém consolidados reinos espanhóis, por exemplo, graças ao comércio oceânico, assumirem uma proeminência política sobre a cristandade que os venezianos só poderiam ambicionar em sonho. Mas na Itália, Veneza ainda era uma potência econômica considerável, talvez a única capaz de fazer frente à França, por exemplo, e uma atriz principal no cenário político local, que incluía o Papa. Na virada do século, quando cada nação estabelecia e adaptava seu próprio modelo de desenvolvimento, as alianças flutuavam de acordo com as conveniências de momento. Outra influência forte sobre a política italiana era a dos reis franceses, que herdaram, com ajuda do Papa, o reino de Nápoles (região pobre ocupada basicamente por pastores de ovelhas, mas que cobria praticamente metade da península).

Em 1494 explodiu uma guerra na Itália entre Ludovico Sforzza (extraoficialmente, senhor de Milão), Alfonso II (príncipe aragonês que reivindicava o direito ao trono de Nápoles) e Carlos VIII da França (que ainda pensava se aceitava ou não a oferta do Papa). Ao invadir a Itália para combater a resistência napolitana, Carlos destruiu a fortaleza de Mordano, próximo a Bolonha, e massacrou seus habitantes, deixando os italianos em choque. Rapidamente formou-se contra ele uma aliança capitaneada por Veneza (que pretendia, com o respaldo de potências ocidentais, romper relações com os otomanos e competir diretamente com eles), que incluía, entre outros, os aliados iniciais dos franceses, Milão e os Estados Papais. Também entraram na disputa o irmão de Alfonso, Fernando II de Aragão (cujo domínio incluía a Sicília), o Sacro Império Romano (aliado tradicional do Papa), e a Inglaterra.

Esta primeira guerra se estendeu até 1498, quando Carlos retornou com seu exército para a França, com receio de que a aliança no norte o encurralasse em Nápoles. Carlos morreu e foi sucedido por Luis XII. Veneza, vendo a possibilidade de partilhar as conquistas francesas no norte da Itália (especialmente o Ducado de Milão), mudou de lado. Os reis de Espanha também mudaram de lado, com a promessa francesa de repartir também o reino de Nápoles entre eles (Luís temia, com razão, uma guerra em duas frentes se invadisse a Itália sem o consentimento de Fernando II). O Papa Alexandre VI (um Borgia) também esperava apoio francês para as aspirações de seus filhos bastardos e consentiu com suas manobras. Quando o então rei de Nápoles Frederico IV abdicou em favor de Luís, franceses e aragoneses entraram em disputa sobre quem levaria o que, e Fernando II mudou de lado. A França perdeu o apoio dos Borgia com a morte de Alexandre VI e a ascensão de Júlio II (que prendera Cesare Borgia, um dos principais comandantes ao lado dos franceses na Itália). Com soldados mais experientes devido à Reconquista, Fernando acabou com as pretensões de Luis e o mandou de volta à França em 1504.

A aliança geral contra a França se dissolveu com a morte de Alexandre e da rainha Isabela de Castela. O sacro imperador arranjara um casamento de um príncipe alemão com uma filha de Luis. Mesmo Veneza aceitaria reconhecer a soberania do papado sobre a Itália e pagar tributo por cada cidade italiana sob domínio da república. Porém, a recusa de Veneza de entregar as cidades em si se tornaria novo foco de tensão. Júlio costurou uma aliança frouxa com França e Sacro Império Romano contra Veneza, e persuadiu o sacro imperador Maximiliano a atacar a república em 1508, sem sucesso. Veneza ainda desafiaria o papado indicando seu próprio candidato ao bispado de Vicenza, então vago. O Papa então convocou França, Sacro Império, e os reinos unidos de Castela e Aragão para uma aliança formal especificamente contra Veneza, firmada na cidade de Cambrai, no norte da França, prevendo a partilha de territórios venezianos aos seus signatários. O Ducado de Ferrara, ao sul de Veneza, também entrara como aliado da França, e até a Hungria oferecera auxílio. A França se moveu primeiro e rapidamente obliterou a resistência veneziana no norte. A república se rendeu ao Papa sob duros termos para manter sua independência. Porém, a França continuou a atacar a região do Veneto no ano seguinte.

O jogo de poder estava apenas começando. A França, que ocupava militarmente o norte da Itália, insistia em uma atitude agressiva contra Veneza, que já havia se rendido. O Papa Júlio II começou a se agitar contra essa ameaça comum. Ele decidiu invadir o Ducado de Ferrara com ajuda de Veneza. O pontífice deixara mercenários suíços lutando contra os franceses perto de Milão, contando que isso os deteria tempo suficiente para tomar Ferrara sem grandes problemas. Mas os franceses subornaram os suíços e marcharam para o sul, tomando Bolonha e quase encontrando o Papa na cidade. A França seguiu na ofensiva, encurralando o Papa em Ravena. Sem saída, Júlio II proclamou uma Santa Aliança contra os franceses, atraindo para seu lado o Sacro Império Romano (que tinha pretensões em território francês), a Espanha, e a Inglaterra (Henrique VIII casara-se com a princesa espanhola Catarina de Aragão e via a oportunidade de empreender conquistas conjuntas na França com seu colega Fernando II). A Liga de Cambrai passou a existir sem a França.

Embora as forças combinadas da Liga comprometessem as posições francesas, seus aliados divergiam quanto a quem deveria ficar com qual território. Não havia consenso sobre quem deveria ser nomeado duque de Milão, nem sobre a anexação de Ferrara aos Estados Papais. Ninguém queria que um dos seus aliados subitamente se tornasse mais poderoso do que os outros. Maximiliano se recusava a desocupar o Veneto, exigência de Veneza. Vendo-se marginalizada nas negociações da Liga, Veneza buscou aliança com a França, e ambos voltaram a atacar no norte da Itália em 1513. Ingleses e espanhóis atacavam diretamente a França, que respondia através de seus aliados escoceses. Com cada lado praticamente lutando por si, houveram muitas escaramuças e saques, mas nenhum ganho real para qualquer um deles. Henrique assinou uma trégua com Luis. O Papa morreu em 1513, deixando a Liga de Cambrai (ou no que ela havia se transformado) sem liderança.

A morte de Luis XII em 1515 desmobilizou os esforços de guerra na Itália... mas apenas momentaneamente. Seu filho Francisco I assumiu o trono, reivindicando também o Ducado de Milão, Ainda em aliança com Veneza, Francisco expulsou os suíços do norte da Itália. Todas as partes, exauridas, concordaram com as pretensões de Francisco, com a devolução de territórios a Veneza, com a cessão de Nápoles ao rei da Espanha, e com a autoridade dos Estados Papais sobre seus vassalos na Itália. A região veria alguma estabilidade apenas até 1521, quando Carlos V é eleito sacro imperador, e arrasta toda a Itália e a Inglaterra consigo para um novo round contra a França, culminando (mas não terminando) com o horrendo saque a Roma de 1527 e o cativeiro do Papa Clemente VII.

Quanto a Veneza, pivô de tudo isso, os problemas na Itália fizeram-na perder controle sobre suas colônias mar afora. Rompendo com os turcos, os venezianos, incapazes de defender todas as suas cidades, acabariam perdendo o Chipre, sua principal base de operações com a Ásia. Atritos contínuos com o papado e com os otomanos, além da sua importância comercial reduzida pela sua insistência em manter um império naval numa região decadente, fizeram a república definhar. Quando Napoleão chegou à frente do exército revolucionário francês para combater os austríacos em 1796, Veneza tinha apenas 9 navios de guerra em sua frota; ela foi anexada e deixou de existir como entidade política independente (exceto como Estado-fantoche da Áustria, ou por 17 meses entre 1848 e 1849 como República de San Marco) e passou a integrar, alternadamente, a Áustria-Hungria e a Itália unificada.

Para a Itália, as constantes guerras só não foram mais catastróficas, do ponto de vista demográfico, porque a região vinha de um momento de prosperidade durante o Renascimento (o crescimento demográfico na Itália diminuiu até quase estabilizar na parte final do século XVI). O envolvimento ostensivo e direto do papado em questões territoriais e seculares influenciaram nas diferentes dissenções religiosas do período, principalmente na Reforma Protestante de Martinho Lutero, e na Reforma Anglicana, a resposta de Henrique VIII à recusa do Papa Leão X, sucessor de Júlio II, em ratificar o seu divórcio com Catarina de Aragão.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dois impérios, dois mundos

Em 8 de dezembro de 627, um exército bizantino esmagou outro bem menor do Império Sassânida, dando fim a mais de 650 anos de guerras entre os impérios Romano e Persa.

Os povos iranianos se estabeleceram como forças consideráveis no antigo Oriente Médio através do emergente reino Meda. Os persas propriamente ditos os sucederam como um poder central no Oriente Médio no século VI a.C. sob a dinastia Aquemênida, e assim prosseguiram até a sua conquista total pelos exércitos macedônios de Alexandre, O Grande, no século IV a.C.. Depois da sua morte prematura, seu vasto império foi repartido (não sem alguma violência) entre alguns dos seus principais generais. A maior parte da sua porção asiática, que correspondia ao território dominado anteriormente pelos persas, ficou nas mãos do general Seleuco, que fundaria sobre essas terras o Império Selêucida. Ali, os persas continuaram servindo como uma elite militar, administrativa e religiosa, conduzindo a predominante religião zoroastrista. Eventualmente, este novo império greco-asiático seria lentamente absorvido pelos partas (outra tribo iraniana, como os persas) no leste, e o emergente Império Romano no oeste. Durante o século I a.C., a tensão entre esses dois impérios iria crescer na região, com a instalação de Estados-satélites no Cáucaso e na Armênia, cujas lealdades flutuavam conforme a conveniência. Reis partas chegaram a tentar uma aliança com a República Romana, mas os romanos tinham suas pretensões. Roma invadiu a Armênia com auxílio dos partas, mas logo a fronteira ao longo do Eufrates se tornou uma zona de constante atrito. O controle sobre a Mesopotâmia - a região agrícola mais produtiva do mundo à época - era ambicionado por ambos os lados, e mudou de mãos com frequência.

Em 224 os persas recuperaram sua hegemonia sobre o mundo iraniano quando um persa, Ardashir I, depôs a dinastia parta, instituindo a dinastia Sassânida no poder. O Império Sassânida continuou a se opor ao Império Romano. Durante o século III, os romanos, em grave crise econômica e política, ainda entraram em uma guerra defensiva no oeste contra invasores germânicos, abrindo caminho para o avanço persa no oriente - em 260, os romanos foram derrotados em Edessa, e seu imperador, Valeriano, capturado, o que representou uma grande humilhação a Roma. Pouco mais de 20 anos depois, Roma chegou a saquear a capital Ctesifonte, mas seu imperador, Caro, morreu antes de dar prosseguimento à campanha. Em outra ofensiva romana em 363, o imperador Juliano chegou a bater os persas diante da sua capital novamente, mas não conseguiu capturá-la, e acabou emboscado e morto enquanto recuava.

A partir do final do século IV, tanto Roma como Pérsia tiveram problemas com invasores germânicos, iranianos e hunos (os hunos em especial, e seu ramo arianizado, os heftalitas, causaram considerável destruição no norte da Pérsia), o que diminuiu temporariamente as hostilidades entre os dois. Quando explodiu uma nova guerra, no começo do século VI, o Império Romano do Ocidente já não existia mais (esfacelado por invasores na Europa), e agora era o Império Bizantino, centrado em Constantinopla e construído sobre substrato helênico, quem antagonizava a Pérsia Sassânida. Novamente a região da Armênia e do Cáucaso eram os focos de disputa. Como ofensivas de ambos os lados eram constantemente repelidas, em 532 os dois impérios assinaram um "Tratado de Paz Eterna". Por alguns poucos anos, esse tratado permitiu aos bizantinos investirem na reconquista de antigos territórios romanos no ocidente, chegando a retomar grande parte da África, da Itália e da Espanha. Vendo o rival crescer, os persas logo violaram o tratado e retomaram a ofensiva na Síria. O competente general Belisário, sobrinho do imperador Juliano, responsável pela reconquista da Itália, deixou o front ocidental para lidar com os sassânidas, deixando o domínio bizantino no ocidente fatalmente mal consolidado.

As guerras continuaram de forma quase constante por todo o século VI e começo do século VII, sempre com avanços modestos, pontuais e efêmeros para um lado ou para o outro, tendo o rio Eufrates como a principal barreira geográfica impedindo a consolidação de poder de um lado sobre o outro. Uma crise política em 610 enfraqueceu a posição bizantina, e permitiu a conquista persa da Síria, da Palestina e do Egito, e ataques que arrasaram a Anatólia, a região economicamente mais importante para os bizantinos. Avaros e eslavos aproveitaram para invadir a Trácia e os Bálcãs, respectivamente, e em 626 os avaros, apoiados por forças persas, chegaram a cercar a capital bizantina. Enquanto isso, o imperador Heráclio (que tentara domar os eslavos pagãos enviando-lhes missionários ortodoxos) costurou uma aliança com as recém-chegadas tribos turcas, que arrasavam o Cáucaso e atacavam a Pérsia pelo norte (a tribo dos Khazares tinha estabelecido seu próprio império ao norte do Mar Cáspio, e aderiu à aliança). Tendo se livrado do cerco a Constantinopla graças à incapacidade dos invasores de romper as muralhas e impedir o abastecimento da cidade pelo mar, os bizantinos lançaram uma contra-ofensiva em pleno inverno, Mesopotâmia adentro (com apoio inicial dos turcos, que debandaram ao longo da expedição), chegando a Nínive, perto do coração do Império Sassânida.

As forças de Heráclio eram perseguidas pelo exército de Razates, um general armênio que decidira abandonar Tblisi, na Geórgia, no momento cercada por uma pequena força bizantina, para tentar impedir o avanço do exército principal do inimigo. No entanto, Razates só alcançou Heráclio quando se aproximavam de Nínive, já nas proximidades do Rio Tigre. Heráclio estava acampado junto às ruínas da antiga capital do Império Assírio. Seu exército constituía talvez o dobro do que dispunha o general armênio, mas haviam notícias de que pelo menos 3 mil persas estavam a caminho, e isso deve ter convencido o imperador a dar meia volta e oferecer combate.

O conhecimento superior do terreno de nada adiantou aos persas. Heráclio dispôs suas tropas em uma planície apropriada para seus lanceiros e cavaleiros pesados, e uma névoa que se erguia dos rios Tigre e Zab nas proximidades dificultava a ação dos exímios arqueiros persas. Razates, contudo, tentou um ataque massivo e decisivo. Após 8 horas de combate, as forças superiores dos bizantinos prevaleceram, e metade dos persas foram mortos, incluindo seu comandante: parece que Razates desafiou Heráclio para um combate mano-a-mano, e foi morto com apenas um golpe, a exemplo de outros dois ou três desafiantes. Triunfantes, os bizantinos continuaram a marchar, e tomaram o palácio de Dastagird, na atual Bagdá, residência favorita do imperador sassânida Cosroe II, que fugira dali. Diz-se que ali Heráclio recuperou a cruz original onde Jesus fora crucificado, capturada e mantida pelos persas como um tesouro, após uma negociação com o usurpador sassânida Cavades II, em troca da segurança de seu filho e herdeiro do trono, Ardashir. Impedido de prosseguir com a conquista da Pérsia por conta própria (as pontes sobre o canal de Haravan estavam destruídas, impedindo o avanço imediato do grosso do exército sobre o Tigre), Heráclio confirmou a aliança com o partido opositor de Cosroe, que seria assassinado logo depois. Os bizantinos retomaram o poder sobre a Síria, a Palestina e o Egito.

A guerra deixara ambos os impérios em frangalhos. A Anatólia arrasada representava um duro golpe na economia bizantina. A Pérsia mergulhou no caos político e não conseguiu reorganizar seus exércitos, nem a credibilidade de seus imperadores. A trégua após a Batalha de Nínive servia aos dois impérios. Mas enquanto ambas as potências se desgastavam infrutiferamente, um novo poder surgia ao sul: as tribos árabes estavam se unindo, pela persuasão ou pela força, em torno do profeta Maomé e sua nova fé e lei. Em 628, enquanto bizantinos e sassânidas lutavam no Rio Tigre, Maomé assegurava o domínio sobre Medina e começava a expandir em direção a Meca. A partir de 631, os muçulmanos avançariam com pouca resistência sobre a Palestina e a Mesopotâmia, conquistando vastos territórios tanto do Império Bizantino como do Sassânida. Enquanto os cristãos os freariam na Síria e resistiriam a dois novos cercos a Constantinopla (perdendo, porém, o controle sobre o Egito, o norte da África, a Espanha e algumas ilhas mediterrâneas), os sassânidas não teriam forças para impedir por muito tempo o avanço árabe e a queda de sua dinastia.

Para os bizantinos, os atritos com os persas custaram sua supremacia na Europa, e expuseram o império a sucessivas ondas de invasores, tanto árabes como turcos na Ásia, e búlgaros e húngaros na Europa, sujeitando-se também às novas potências católicas no ocidente, e dando início a um longo e agoniante declínio - de tudo que os representava, restou a ortodoxia cristã e a língua grega. Para os persas, as rachaduras deixadas pelos séculos de guerra contra o mundo romano abriram o caminho para a introdução da cultura árabe e da religião muçulmana no principal reduto do zoroastrismo, e novamente o fim do seu domínio sobre sua própria terra natal.

A perda da Palestina, tradicionalmente mantida sob domínio cristão, foi um golpe duro para a cristandade, e não demoraria muito até que esforços coordenados entre as potências cristãs na Europa (com participação restrita dos bizantinos) colocasse as duas religiões em oposição em sucessivas tentativas de retomar a Terra Santa. Os persas, por outro lado, assimilariam a cultura árabe, mas a transformariam em algo distinto - islamizado, mas não "arabificado", graças a um poderoso senso de identidade nacional e uma longuíssima e contínua tradição na língua (as línguas iranianas são indo-europeias, para quem o árabe semítico, mesmo considerado sagrado para a religião, é uma língua estranha), na escrita e no pensamento. De fato, à conquista árabe sucedeu a formação do Califado Abássida, centrado em Bagdá e administrado por califas árabes, mas baseando sua força em exércitos e comandantes iranianos, que garantiam para a Pérsia um status de semi-independência. Independente ou não, sob árabes, mongóis ou turcos, a Pérsia continuou a ser um centro de irradiação cultural do Oriente Médio, estendendo sua esfera de influência do oeste do Rio Indo até a Armênia, do Golfo Pérsico até o Mar de Aral (durante o domínio mongol na China, administradores persas eram recrutados em detrimento de chineses para exercer altos cargos administrativos da dinastia Yuan). O atual Irã, embora tenha uma participação modesta nas decisões globais, assume uma postura de contraponto às potências econômicas ocidentais, ao mesmo tempo em que, como principal centro da corrente xiita do Islã (ainda que minoritária), mantém uma posição proeminente no mundo islâmico e forte influência política no Oriente Médio.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Uma Rosa contra a segregação

Em 1 de dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Alabama, Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar num ônibus a um passageiro branco, e foi presa. Este evento deu início à escalada das lutas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos nas décadas seguintes:

Nos Estados Unidos, a abolição da escravatura em 1867 não garantiu imediatamente aos negros a igualdade de direitos conferidos aos brancos. Como um país com um alto grau de federalização, mesmo que a Constituição fosse emendada para deixar claro que os cidadãos "de cor" deveriam ter assegurados os mesmos direitos dos demais, os estados e municípios precisam ratificar, independentemente, essas emendas para que sejam adotadas em suas Constituições estaduais, e se criem leis nas esferas estaduais e municipais que as regularizem. É um processo que, dependendo da vontade política local, pode atrasar em mais de um século a implementação de determinações da legislatura federal. A história da segregação racial no país é longa e pautada por tumultos violentos e casos pontuais de confrontamento no âmbito legal que, com a força de uma opinião pública cada vez mais esclarecida (reforçada por canais de mídia de massa mais liberais), induziram lentamente aos ajustes legais que garantiram aos negros direitos como o de frequentar as mesmas calçadas e estabelecimentos comerciais de brancos, a estabelecer residência onde quiserem, a benefícios trabalhistas, ao casamento interracial, à reunião e manifestação, ao voto, etc.. Ainda hoje, mesmo com um presidente negro, existe um abismo social que compromete a ascensão do negro na sociedade americana e vestígios de racismo que afloram constantemente em explosões de violência (2015 tem sido um ano particularmente violento nesse aspecto nos Estados Unidos), que motivam a continuação das suas lutas.

O incidente em Montgomery não foi inédito. Nas cidades onde a segregação era permitida (na forma de proteção da lei ao cidadão branco que se sentisse ofendido em qualquer sentido pelo negro, ou explicitamente na legislação), negros e brancos até podiam compartilhar do mesmo transporte público, mas havia um acordo velado (às vezes, expresso também na lei) que determinava que cada um se sentasse em determinados assentos. Em Fort Hood, no Texas, os negros deviam ocupar os lugares ao fundo dos coletivos; se um branco entrasse no ônibus e solicitasse um lugar mais à frente ocupado por um negro, ou se o motorista o fizesse, mesmo que houvesse lugares vazios, este deveria ceder o assento. Fort Hood tinha uma base militar, e os soldados e oficiais negros que serviam ali se queixavam desta situação havia tempos (também havia queixas de racismo por parte dos próprios militares). Aconteceu, em 1944, de um oficial negro do exército, Jackie Robinson (que se tornaria o primeiro jogador negro num time de baseball em uma liga não exclusiva para "pessoas de cor"), se recusar a ir para o fundo do ônibus a pedido do motorista. A discussão continuou até que, ao parar num ponto, um fiscal da empresa se envolveu, e, entre alguns transeuntes brancos que gritavam ofensas, apareceram policiais militares para conduzir Robinson para prestar esclarecimentos. Todo o tratamento já no quartel fez o tenente Robinson explodir e ameaçar "quebrar ao meio" qualquer um que o chamasse de "crioulo" novamente (nigger, uma palavra usada com forte carga pejorativa nos Estados Unidos). O caso foi à corte marcial, e Robinson foi inocentado de qualquer acusação (injúria, desordem, insubordinação), abrindo um precedente jurídico para o julgamento de outros casos semelhantes.

No mesmo ano Irene Morgan foi presa na Virgínia ao se recusar a ceder seu assento em um ônibus interestadual; o transporte interestadual era regulado por leis federais, mas ao entrar na Virgínia, o motorista mandou que se sentasse no fundo do veículo, e chamou um xerife local que a prendeu segundo as leis do seu estado. O caso foi levado adiante, até chegar à Suprema Corte, pelos advogados militantes da Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), que encontraram uma brecha numa lei que regula o comércio interestadual para inocentar Morgan dois anos depois. Em novembro de 1955, após uma ação perpetrada pelo Corpo de Mulheres do Exército, a Suprema Corte "amarrou" as pontas ainda deixadas no caso Morgan e proibiu qualquer tipo de segregação imposta por motoristas ou proprietários de qualquer tipo de transporte em rotas interestaduais. Mas ainda deixou a critério dos estados adotarem ou não medidas semelhantes em viagens intermunicipais.

Mais cedo em Montgomery, em março de 1955, uma adolescente militante da ala jovem do NAACP, Claudette Colvin, de 15 anos, foi algemada e presa por se recusar a ceder seu lugar em um ônibus a um homem branco. Em Montgomery, a segregação nos ônibus, em vigor oficialmente desde 1900, se dava da seguinte maneira: passageiros brancos sentavam-se na parte da frente e preenchiam o ônibus em direção à traseira; passageiros negros faziam o contrário, e assim iam até encher o ônibus. As primeiras cinco fileiras eram exclusivas para os brancos, e negros não deveriam se sentar ali mesmo com o ônibus vazio. Se mais passageiros negros entrassem, eles deveriam ficar de pé; se mais passageiros brancos entrassem, não apenas um, mas todos os negros nos quatro assentos da fileira mais à frente deveriam ficar de pé, mesmo que apenas um branco fosse sentar ali. Quando o ônibus enchia, para que os negros não ficassem em pé perto dos brancos, eles entravam pela frente, pagavam a passagem ao motorista, desciam e entravam novamente por trás. Era comum os motoristas arrancarem com o veículo antes dos passageiros que pagaram subirem pela outra porta. Leve-se em consideração que cerca de 75% dos usuários de ônibus na cidade à época eram negros.

Rosa Parks era uma costureira por ofício que atuava na época como conselheira da ala jovem do movimento. Doze anos antes, ela mesma havia experimentado a indignidade de ter de entrar no ônibus novamente pela porta de trás para não passar pelos assentos ocupados por brancos, e ver o motorista partindo antes de subir (chovia na ocasião); ela marcou o motorista, James Blake, e decidiu nunca mais subir num ônibus dirigido por ele.

No dia 1 de dezembro, no fim do expediente, Rosa Parks embarcou num ônibus de volta para casa. Ela pagou sua passagem sentou-se num assento no corredor da sexta fileira. Os bancos à frente iam enchendo, e em determinado momento subiram mais passageiros brancos. O motorista (por pura coincidência, porque Parks não o reconhecera, o mesmo James Blake), vendo dois brancos em pé, ordenou aos quatro negros sentados mais à frente que cedessem seus lugares. Três deles se levantaram. Parks mudou de lugar, mas apenas para ocupar o assento deixado vago ao seu lado na janela. Mais tarde ela justificou que o fez não porque estava fisicamente cansada, ou mais cansada do que nos outros dias, mas estava cansada do status quo ao qual ela e todos os outros negros estavam submetidos. Blake insistiu que ela se levantasse, e ela respondeu apenas "eu não acho que deva me levantar". Um policial foi chamado, ela o esperou no seu lugar, e foi detida por violar a lei de segregação do município. A lei não previa especificamente que negros deveriam ceder lugar aos brancos em assentos reservados a negros, mas ela foi presa mesmo assim. A NAACP e um amigo pessoal de Parks pagaram a fiança e ela respondeu ao processo em liberdade. Ela se apresentaria para julgamento na semana seguinte.

Enquanto isso, a NAACP, sob a liderança de Edgar Nixon, se articulou com outros movimentos sociais e sindicatos em volta do caso Parks e decidiram convocar um boicote. Na visão da NAACP, Rosa Parks era a personagem perfeita para se tornar um símbolo popular de luta contra a desigualdade: mulher madura, casada, de temperamento suave, com emprego e boa reputação, tratada como criminosa por exigir um tratamento digno. Igrejas frequentadas por negros atuaram como veículos de divulgação em boca-a-boca do ato, e um jornal local reproduziu os folhetos impressos que eram distribuídos. A comunidade negra começou a se mobilizar, e no domingo seguinte, 4 de dezembro, em uma das igrejas, houve uma conferência onde, por unanimidade, os presentes se comprometeram com o boicote (mesmo que lhes custasse um dia de trabalho ou de aula), até que eles fossem tratados com o nível de cortesia que eles achavam devido, até que motoristas negros fossem empregados, e que os assentos fossem preenchidos por ordem de embarque. Aquela igreja era gerida por um pastor batista recém-chegado a Montgomery chamado Martin Luther King Jr..

Rosa Parks foi a julgamento numa corte local no dia seguinte por "conduta desordeira", julgada culpada e multada em 10 dólares, mais 4 em custos processuais. Uma multa irrisória, contra a qual Rosa Parks recorreu, desafiando formalmente a legalidade da segregação racial.

O boicote funcionou: apesar da chuva, nenhum morador negro em Montgomery usou o ônibus naquela segunda-feira. Alguns pegaram carona ou optaram por táxis dirigidos por negros (cobrando o valor da passagem de ônibus). Algumas mulheres brancas, sabendo o que acontecia, usaram seus carros para trazer e levar suas empregadas. A maioria foi ao trabalho ou à escola à pé. Alguns caminharam 32 quilômetros. O ato foi uma demonstração de que a comunidade estava disposta aos sacrifícios que fossem necessários dentro da lei para mudar o sistema. Desobediência civil e resistência pacífica em ação. À noite, ativistas dos movimentos envolvidos se reuniram, com a presença de Parks, para decidir pela continuação do boicote. Luther King foi nomeado para presidir a associação responsável pela organização do movimento. Quando Parks pediu a palavra, King pronunciou: "A senhora já nos falou o bastante." O boicote continuou.

A perda de 3/4 dos seus passageiros causou um impacto imediato nas operações da empresa de ônibus local. Seus advogados fizeram um acordo com a seguradora Lloyd's para anular o seguro dos carros usados no transporte de negros na cidade. Autoridades multaram taxistas que cobrassem passagem a menos de 45 cents (a passagem de ônibus era 10 cents). Chegou-se a cogitar uma reorganização nas linhas de ônibus de maneira a atender apenas os brancos (elas não passariam mais pelos distritos de maioria negra). O Conselho de Cidadãos Brancos da cidade (formado por supremacistas brancos em resposta à crescente articulação dos movimentos pelos direitos civis dos negros) dobrou de tamanho naquele mês. Alguns negros que caminhavam pelas calçadas (apinhadas de gente na hora do rush por causa do boicote) eram agredidos. A casa de Luther King, de outros líderes negros e igrejas foram atacadas com coquetéis molotov. Depois destes ataques, Martin Luther King discursou a 300 cidadãos negros enfurecidos, exortando-os a não responderem com violência, citando o verso bíblico: "Aquele que vive pela espada perecerá pela espada". Por causa da sua proeminência, Luther King também foi indiciado por interferir ativamente nos negócios da empresa de transporte (ele e outros indiciados se entregaram antes que oficiais de justiça viessem buscá-los em suas residências). Como Rosa Parks, ele optou por não pagar a multa imputada e ficou preso, atraindo atenção nacional ao movimento.

O boicote seguiu firme durante meses. Em novembro de 1956, uma ação de movimentos pelos direitos civis, que pedia a declaração de inconstitucionalidade da lei de segregação no estado do Alabama, subscrita por Claudette Corvin, pela dona de casa Aurelia Browder (cujo nome encabeçava a ação) e outras mulheres que passaram por situação semelhante à de Rosa Parks em Montgomery. chegou à esfera federal, que julgou a sua procedência. Em 20 de dezembro de 1956, 381 dias depois do início do boicote, o prefeito recebeu a notificação da Suprema Corte para anular a lei. Apesar de atos violentos em retaliação terem se seguido (atentados à vida de Luther King), a vitória em Montgomery foi a ignição de algo muito maior, protagonizado pelo recém-formado Movimento pelos Direitos Civis dos Afro-Americanos, que mobilizou o país nos anos 60 teve influência além da fronteira dos Estados Unidos (pela causa e pelo emprego de não-violência, Martin Luther King foi vigiado de perto pela CIA, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964 e foi assassinado em 1968).

Quanto a Rosa Parks, ela sofreu as sanções comuns aos demais ativistas políticos da época; ela e seu marido perderam o emprego e tiveram muita dificuldade em conseguir trabalho e em lidar com suas dívidas. Ela continuou se manifestando contra sinais de segregação racial, mesmo no norte do país, tido como progressista neste sentido (ela notou que Detroit, onde passou a viver, tinha distritos dominados por maiorias raciais, com os negros vivendo em piores condições que os brancos). Ela e Luther King ajudaram a eleger um deputado negro, John Conyers, pelo estado de Michigan, para quem trabalhou até se aposentar (Conyers cumpre hoje seu décimo terceiro mandato no Congresso). Com o passar dos anos, o reconhecimento do seu ato e de suas consequências lhe renderam diversas homenagens e convites para eventos comemorativos relacionados à igualdade racial (ela foi convocada para fazer parte do grupo que receberia Nelson Mandela na sua saída da prisão em 1990). Em 1995, a Ku Klux Klan, a mais notória organização supremacista branca dos Estados Unidos, resolveu patrocinar reformas na rodovia interestadual 55, no trecho do estado do Missouri, o que lhes dava o direito de exibir outdoors e placas informando que a rodovia era mantida pela organização. Como o estado não podia negar o patrocínio e suas consequências, a sua legislatura votou pela mudança de nome daquele trecho da rodovia para Autoestrada Rosa Parks. "É sempre bom ser lembrada". Quando morreu em 2005, a prefeitura de Montgomery decidiu marcar os assentos da frente dos ônibus municipais com uma tarja preta. Parks velada em Washington e Detroit com honras de um chefe de Estado.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Despedida de Portugal

Em 27 de novembro de 1807, a rainha de Portugal Maria I, o príncipe regente dom João, sua família, e toda a corte portuguesa, embarcaram no porto de Lisboa, de onde zarpariam dois dias depois em direção ao Brasil. A corte portuguesa fixaria residência no Rio de Janeiro até 1816.

A Revolução Francesa, que substituiu o Antigo Regime monárquico por algo semelhante a uma República burguesa, colocou a França no centro das atenções de todas as potências europeias. Todas monarquias mais ou menos absolutistas ou controladas por antigas oligarquias agrárias e mercantis, uma após a outra abriram hostilidades contra o movimento revolucionário no centro do continente (e vice-versa). Nesse rebuliço, Napoleão Bonaparte chegou ao comando da França Revolucionária, e iniciou um movimento expansionista em todas as direções.

A situação de Portugal no cenário pós-revolucionário já era delicada quando Napoleão entrou em cena. Sua relação com a França dependia da relação da França com a Inglaterra, de quem Portugal já era um antigo aliado. Portugal não abriria mão do poder inglês ao seu lado. Em 1801, a crise diplomática entre França e Inglaterra jogaram Portugal e Espanha (aliada da França) um contra o outro na atabalhoada Guerra das Laranjas, que resultou na incorporação da cidade portuguesa de Olivença pelos espanhóis, e ganhos significativos da colônia do Brasil sobre territórios da América Espanhola no Sul e no Mato Grosso.

João, que viria a ser coroado como rei João VI apenas em 1816, já era o regente desde 1799, devido à deterioração do estado mental de sua mãe. Ele manobrara rapidamente para evitar uma guerra destrutiva no episódio da Guerra das Laranjas (que durou apenas o tempo suficiente para um embaixador português sair de Lisboa e encontrar as autoridades espanholas e francesas para um acordo). Mas conforme os eventos na Europa central iam se desenvolvendo (Napoleão vencera em 1805 uma grande coalizão militar, conquistando os mais poderosos reinos da Itália, e causando a dissolução do Sacro Império Romano), estava ficando claro para Portugal que sua aliança com os ingleses, contra quem Napoleão se esforçava em subjugar no campo da economia com o Bloqueio Continental, iria lhe custar caro. Como Portugal não tinha poderio militar para fazer frente à França, João tentava ganhar tempo evitando enlaces diplomáticos que os colocassem em lados francamente opostos. Ele chegou mesmo a sugerir a George III da Inglaterra que os dois declarassem uma guerra fictícia. Mas como Portugal não obedecia ao Bloqueio Continental (a Inglaterra continuava exportando seus produtos para a Europa via Portugal), isso não adiantaria.

Em agosto Napoleão enviou uma carta com demandas a dom João, exigindo a adesão ao Bloqueio, a declaração de guerra à Inglaterra, a prisão de todos os ingleses no país e sequestro de seus bens. Às pressas reuniu-se o Conselho de Estado, cujos membros estavam divididos entre pró-ingleses e pró-franceses. Por um momento, esses últimos conseguiram formar uma maioria (com participação ativa do embaixador francês em Lisboa, general Jean Lannes), e apresentaram ao príncipe regente a carta aceitando parte dos termos exigidos, com exceção da prisão e sequestro de bens de cidadãos, por serem contra princípios cristãos (para os quais Napoleão e o que restava dos revolucionários franceses não davam a mínima). Porém, a decisão veio tarde demais.

Em meados de outubro de 1807, cerca de 28 mil soldados franceses sob o marechal Junot entraram na Espanha, ainda aliada da França. Este foi o sinal de alerta para dom João de que a guerra viria em sua direção. Antes de qualquer hostilidade, João acionou o embaixador português em Londres, Sousa Coutinho, para firmar um acordo secreto com a Coroa britânica para lhe fornecer proteção durante a transferência de Lisboa ao Rio de Janeiro, em caso de invasão estrangeira. O Conselho português já havia deliberado que, em caso de risco extremo, os filhos de João seriam transferidos para o Brasil. O novo acordo previa o transporte e a escolta para toda a família real e seus tesouros, o corpo de ministros, secretários, militares, religiosos, cortesões, suas respectivas famílias e serviçais. Para manter as aparências, no mesmo dia em que o tratado secreto era assinado em Londres, João ordenou o fechamento de seus portos aos ingleses, e o Conde da Barca, ministro da defesa, desviou parte do efetivo português para defender os portos contra uma invasão inglesa. Era a última cartada para testar a real intenção da aliança franco-espanhola.

A caricatura de dom João VI no Brasil é de um sujeito indolente e deselegante, mas quando exposto às adversidades, estava sempre um passo à frente: cinco dias depois da assinatura do tratado (esquivando-se da complacência do partido pró-francês, que ainda aguardava o desenrolar dos acontecimentos no país vizinho), França e Espanha assinaram um acordo de cooperação militar, cujo prêmio incluía a divisão do reino de Portugal entre seus signatários, prevendo, inclusive, a cessão do norte de Portugal ao extinto Reino da Etrúria, governado anteriormente pela filha do rei da Espanha e conquistado por Napoleão. João tomou conhecimento deste tratado através de um jornal francês que o publicara por ordem de Napoleão, expedido por Sousa Coutinho, de Londres (o imperador esperava que a publicação chegasse mais rápido ao marechal Junot, em marcha forçada, do que um decreto levado por um mensageiro). Ainda em outubro, a última esperança de resistência na Espanha, uma conspiração liberal arquitetada pelo príncipe Fernando (que mais tarde seria coroado Fernando VII) foi descoberta, e o príncipe preso. Era a guerra. Em meados de novembro, Junot estava cruzando a fronteira. Embora o exército português praticamente não tenha oferecido resistência, a marcha dos invasores não foi fácil: os camponeses e os proprietários de terras se retiraram com tudo que podiam carregar, deixando para trás suas terras queimadas, sua produção destruída, inclusive equipamentos e instalações, para que os franceses e espanhóis não pudessem tomar proveito de nada. Essa tática de terra arrasada seria repetida pelos russos em 1812.

No dia 23 de novembro chegou oficialmente a notícia da invasão francesa. O general Lecor, designado por João para observar o movimento do inimigo, mandava notícias alarmantes da velocidade de marcha de Junot. Imediatamente, o príncipe regente tomou as providências para a fuga de Lisboa. Nos três dias seguintes, a família real e seu séquito, somando cerca de 15 mil pessoas e seus pertences, embarcaram numa numerosa esquadra formada por grande parte da marinha portuguesa (16 navios de guerra no total, além de 21 navios mercantes com cargas e mantimentos). Um soturno dom João era visto subindo e descendo o porto com lágrimas nos olhos, evitando de falar ao povo que assistia à cena sobressaltado. No embarque, as pessoas aflitas se aproximavam tanto que o príncipe precisava afastá-los com as mãos; outros diziam que elas as beijavam. Dona Maria pediu ao cocheiro que a levasse calmamente até o porto, porque não estava fugindo.

Cinco nomes foram designados a permanecer no país e constituir uma Junta Governativa, a qual foi instruída a não oferecer resistência os franceses. Apenas alguns navios de linha (grandes embarcações armadas com canhões que recebiam este nome porque se destinavam a combater alinhadas paralelamente a outras embarcações ou alvos terrestres) foram mantidos ao largo da costa portuguesa e colocados, por força de tratado, à disposição da marinha inglesa. Uma flotilha de navios de guerra ingleses os escoltou até a Ilha da Madeira, passando com alguma dificuldade por uma tempestade que dispersou a frota, nas sem casualidades. De lá, uma parte das naus inglesas regressou, restando quatro navios para cruzar o oceano até Salvador.

A contrapartida portuguesa ao apoio inglês para a retirada da família real seria a abertura dos portos brasileiros ao comércio com os ingleses, privilégio até então exclusivo dos portugueses. João oficializou o acordo por um decreto assim que chegou ao porto de Salvador, em janeiro de 1808, abrindo os portos brasileiros "às nações amigas". Este detalhe, acertado em um anexo do acordo secreto (que também cedia aos ingleses o comando sobre os fortes portugueses ao longo do rio Tejo e da Ilha da Madeira), teria enorme impacto na história do Brasil dali para frente. O comércio com o Brasil era um canal de escoamento para os comerciantes ingleses, cuja entrada na Europa continental estava limitada pelo Bloqueio Continental (violado clandestinamente aqui ou ali), e se tornou mais importante ainda quando Inglaterra e Estados Unidos entraram em guerra em 1812. Para o Brasil, a movimentação de capital (agilizada com a fundação do Banco do Brasil) e intercâmbio técnico permitiu um rápido desenvolvimento da colônia a partir do Rio de Janeiro. A infraestrutura montada por dom João, com a instituição de correios, imprensa, instituições acadêmicas, academias militares, uma fábrica de pólvora (outra medida em que dom João se antecipava a Napoleão, tornando possível fabricar pólvora no Brasil sem depender do tráfego oceânico e de possíveis bloqueios franceses, além de armar a colônia contra uma possível invasão), etc., e uma relação comercial saudável com a Inglaterra, fez a colônia prosperar. Quando João retornou a Portugal em 1816 para enfrentar as crises políticas que ocorriam na metrópole após a morte da rainha Maria, deixou seu herdeiro Pedro de Alcântara no Rio de Janeiro, cercado por uma emergente elite liberal que o influenciaria a tomar para si as rédeas da parte economicamente mais importante do Império Português.

Quanto à campanha francesa na Península Ibérica, Junot chegou a Lisboa apenas 4 dias após o embarque da família real, dois após a sua partida. Ele ainda conseguia ver os últimos navios sumirem no horizonte. Com a rainha e seu príncipe regente governando o Império Português no Brasil (na única vez em que uma colônia sediou uma corte europeia), o plano de substituir a casa real portuguesa por monarcas títeres foi por água abaixo. Apesar do comando de João para não haver resistência por parte da administração deixada no país, os portugueses não se entregariam facilmente. De fato, Junot nem conseguiu efetivamente ocupar Portugal, restringindo sua presença a uma estreita faixa entre a fronteira e Lisboa. Enquanto isso, na Espanha, Napoleão foi além de mandar prender o príncipe Fernando; como suspeitasse de que o imperador francês planejava substituí-lo por algum parente seu (como vinha fazendo em outros lugares), um incidente que resultou na prisão do ministro pró-francês Manuel de Godoy resultou na abdicação do rei Carlos VII em favor de Fernando. Napoleão tentou resolver o assunto forçando a renúncia de ambos ao trono e a coroação de seu irmão José Bonaparte. A interferência direta na monarquia, além da própria invasão a Portugal, foram extremamente impopulares entre os espanhois. A tomada de Madri pelo general Murat foi a gota d'água para revoltas generalizadas estourarem por toda a Espanha, transformando uma campanha relativamente simples de tomada de Portugal numa longa e desgastante guerra de guerrilha por toda a península (a Guerra Peninsular, que se desenvolveria para uma guerra formal com a entrada da Inglaterra), que no final iria a custar a Napoleão sua própria coroa.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mensagem do espaço

No final da tarde de 26 de novembro de 1977, a transmissão do sinal da emissora britânica Southern Television, filiada à ITV, sofreu interferência durante um telejornal para uma mensagem de voz de seis minutos do representante do Comando Galático de Ashtar, chamado Vrillon (ou Ashteron, a voz estava abafada e misturada ao zumbido de estática). A parte inteligível da mensagem dizia:
"Esta é a voz de [Vrillon]. Eu sou um representante autorizado da Missão Intergalática, e tenho uma mensagem para o planeta Terra. Estamos começando a entrar no período de Aquário e existem muitas correção que precisam ser feitas pelo povo da Terra. Todas as suas armas do mal devem ser destruídas. Vocês tem pouco tempo para aprender a viver juntos em paz. Vocês devem viver em paz... ou deixar a galáxia."
Os tabloides no domingo seguinte cobriram o evento com algum destaque. O Daily Mail e o News of the World, dois dos mais notórios periódicos sensacionalistas, publicaram uma transcrição alternativa da mensagem, dizendo que "se as armas da Terra não forem destruídas, destruição vinda do espaço virá rapidamente."
Aparentemente, o sinal UHF, transmitido via aérea entre antenas, sofreu uma interferência junto a uma antena retransmissora perto de Hampshire, a partir de onde a mensagem de voz entrou na rede. A interferência terminou antes do fim de um desenho do Pernalonga. A emissora qualificou o incidente como um "problema de som". Diante da publicidade que se seguiu, o órgão regulador das transmissões de TV do Reino Unido se pronunciou qualificando a mensagem como uma "piada" produzida por alguém com considerável conhecimento técnico e equipamento sofisticado. 

Este foi o primeiro incidente deste tipo (o que deixou as autoridades desnorteadas), mas a ele se seguiram outras tentativas clandestinas de interferência de sinal de TV, com sons e/ou imagens, para a transmissão de alguma mensagem política ou de protesto, ou sem motivo claro. A HBO (um certo "Capitain Midnight" interrompeu o sinal de satélite com uma tela de teste de cores e uma mensagem questionando o valor da assinatura do canal), o Playboy Channel (interrompido de maneira semelhante por um funcionário de uma emissora cristã convocando todos a se arrependerem dos seus pecados), duas emissoras locais de Chicago (cujos sinais foram invadidos em sequência e substituídos pela filmagem de um homem de máscara gritando e arriando as calças). 

Na União Soviética, os sinais das emissoras estatais eram constantemente invadidos e substituídos por programações alternativas, a ponto de uma cidade, Arkhangelsk, disponibilizar um telefone exclusivamente para esse tipo de denúncia. Em 2006, em meio à guerra com o Líbano, um sinal de Israel afetou o satélite usado por uma emissora libanesa ligada ao grupo político Hezbollah e sobrepôs à sua programação uma série de mensagens anti-Hezbollah, incluindo ameaças ao seu líder Sayyid Hassan Nasrallah. 

Recentemente, sinais de TV transmitidos por fibra ótica e transmissões digitais também tem sido alvos de piratas, geralmente substituindo suas programações (ocasionalmente em canais infantis) por vídeos pornográficos. Em 2013, num intervalo de poucas horas, quatro emissoras americanas em estados diferentes tiveram seu sinal de emergência (que aqui reconhecemos como o "top de 5 segundos", o sinal para todas as emissoras para uma transmissão em rede) substituído por uma voz dizendo que os mortos estavam se levantando da terra e atacando os vivos. O perpetrador foi identificado e preso.

Embora expectadores tenham sido genuinamente surpreendidos, é possível que ninguém na época tenha levado a mensagem de Vrillon a sério. Sequer os veículos de comunicação especializadas em ufologia parecem ter dado muito crédito à identidade do mensageiro espacial. Embora exista todo um entusiasmado culto New Age desde os anos 1950 sobre um certo Ashtar Sheran, um alienígena, comandante de uma poderosa frota espacial, que operaria como "embaixador" de sua civilização na Terra e se comunicaria através de médiuns escolhidos entre os terráqueos.

A identidade de "Vrillon" nunca foi descoberta.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Etruscos

Em 25 de novembro de 571 a.C., o etrusco Sérvio Túlio, rei de Roma, desfilou em triunfo por sua vitória contra outros reis etruscos. Sérvio Túlio é um personagem basicamente mitológico, mas os elementos mitológicos incorporados pelos historiadores romanos como parte da sua História dão pistas da enorme influência da civilização etrusca sobre a formação de Roma.

O poema épico Eneida, de Virgílio, uma espécie de continuação do poema homérico Odisseia, trata dos primórdios da fundação de Roma. Boa parte da "História" da Roma pré-republicana deriva dos relatos de historiadores notáveis, como Tito Lívio e Plutarco, entre outros. Ambos nos fornecem retratos coloridos da vida e da política romana do seu tempo, mas quando se alongam acerca das origens da cidade-Estado e suas instituições, chegam no pantanoso terreno da "pré-história" romana, delineada por mitos e tradições, e confundem-se com a poesia. Tito Lívio, por exemplo, como patriota, teria deliberadamente selecionado determinadas versões desses mitos para compor uma narrativa heroica e coerente com as tradições cultivadas pela alta sociedade, seu público alvo. Portanto, toda a História de Roma antes da consolidação das instituições republicanas e os seus metódicos registros escritos é um misto de lendas e fatos que apenas a arqueologia hoje em dia pode dar alguma substância.

Todos os sete reis de Roma são, a princípio, legendários, embora os seus ciclos narrativos possam rememorar alguns fatos históricos. Sérvio Túlio é o sexto rei de Roma. Ele era etrusco, não latino, o segundo dos três reis etruscos da Roma monárquica. Ascendeu ao trono vindo do nada (o mito "historificado" lhe dava uma biografia semelhante à dos heróis gregos, que tinham um deus como pai e uma desterrada de origem nobre como mãe, e viveram na servidão antes de se tornarem reis), e teria comandado os exércitos romanos em campanha contra os próprios etruscos, vencendo-os pelo menos três vezes (o triunfo celebrado em novembro de 571 a.C. teria sido o primeiro). Ele casou uma de suas filhas com Lúcio Tarquínio, filho homônimo do seu antecessor no trono, que acabaria conspirando e assassinando Sérvio.

A existência de três reis etruscos nos anais de Roma, embora não seja comprovada historicamente, resgata o contexto político da cidade nos séculos VII e VI a.C..

Os etruscos eram um povo provavelmente autóctone do centro e norte da Itália, ocupando aquela região ou algo próximo desde o fim da última glaciação, ao contrário dos latinos, úmbrios, faliscos, volscos, samnitas, e outros povos itálicos de língua indo-européia que migraram para lá apenas na primeira metade do primeiro milênio a.C.. Os etruscos, por consequência, desenvolveram sua própria língua, religião e sociedade. O intenso contato via comércio com os povos da Grécia, que lhes chamavam "tirrenos" ou "tirsênios", lhes trouxe o alfabeto, e com sua própria versão dele nos deixaram milhares de documentos escritos. Apesar da escrita ser perfeitamente legível, a língua etrusca, por ter se desenvolvido localmente, não tem qualquer paralelo com outra língua conhecida, o que a torna basicamente ininteligível (apenas algumas dezenas de palavras foram conjecturalmente decifradas, mas algumas delas parecem empréstimos de outras línguas, como o próprio grego). Uma obra que possivelmente nos auxiliaria nessa questão seria o livro que o imperador romano Cláudio, que falava etrusco, escreveu sobre a sua história, mas este livro se perdeu no tempo.

Portanto, apesar de tanta evidência escrita, muito pouco se sabe sobre sua origem. Mas os historiadores gregos e romanos, e a arqueologia, nos mostram que esses etruscos viviam em confederações de cidades-estado concentradas em três regiões da Itália (no vale do Rio Pó, na região da Toscana, e ao longo do litoral até a Campânia) que expandiram sua esfera de influência, incluindo aí os povos que acabavam de migrar para a Itália. Porém, nunca configuraram um império propriamente dito, pois cada cidade-estado tinha seu próprio rei (que, não raro, estava em guerra um com outro).

Roma foi fundada por volta de 750 a.C. por Rômulo - personagem igualmente mitológico, segundo Virgílio, descendia de Enéas, o herói troiano, e fora amamentado por uma loba com seu irmão gêmeo Remo, o qual assassinou. O provável é que Roma tenha sido mais uma das cidades fundadas pelos novos habitantes indo-europeus da região do Lácio (de onde "latino" deriva seu nome). Havia, inclusive, outro mito fundador para o povo latino, também retratado em Virgílio e em fontes gregas, como Heródoto, em que um certo Latino (ou Lavínio), filho de deuses, era o senhor daquela região, e ofereceu asilo a Enéas e seus companheiros.

É justamente após a época da fundação que os etruscos expandiram sua influência sobre o Lácio. Em Roma, segundo o que os antigos historiadores comentam, a influência etrusca aparece impondo-se como uma elite que se infiltra na estrutura do governo local, como o senado (a assembléia de anciãos que representavam as famílias mais tradicionais da cidade). Em 616 a.C., finalmente um etrusco, Lúcio Tarquínio Prisco, assumiu o trono convencendo o senado a elegê-lo, quando da morte do rei latino Anco Márcio. Os etruscos em poder de Roma teriam usado a cidade para expandir seu poder sobre os outros latinos, e sobre os próprios etruscos das cidades rivais, até que o terceiro rei etrusco, Lúcio Tarquínio Superbo, foi expulso da cidade, e a República foi instaurada. Este último rei teria pedido auxílio a outro rei etrusco, Lars Porsena, da cidade de Clusium (onde está a atual Chiusi), que foi rechaçado pelas forças republicanas. A partir daí Roma começou a criar sua própria zona de influência, primeiro conquistando e assimilando as outras cidades latinas, depois os outros povos itálicos e os próprios etruscos, e mesmo as colônias gregas no litoral sul, até dominar a Itália.

Mesmo que o período da monarquia romana seja uma reconstrução da memória coletiva infundida com um sentimento de identidade nacional, e os seus personagens provavelmente mais fantásticos do que reais, ainda assim podemos identificar na Roma histórica elementos que remetem àqueles tempos. Além do vocabulário, onde o latim tomou emprestado algumas palavras etruscas (o que ajuda no limitadíssimo conhecimento dessa língua), e do alfabeto (o alfabeto latino que usamos hoje deriva mais diretamente do alfabeto etrusco do que do seu primo mais velho, o grego), os romanos parecem ter compartilhado alguma parte da sua religião original com eles. Em inscrições etruscas é possível identificar referências a deuses e heróis comuns à mitologia romana e grega, com as quais também tinham contato e em certo nível influenciou ambas: Hércules-Hercle, Saturno-Satre, Apolo-Aplu, Proserpina-Phersipnai, Perseu-Perse, Netuno-Nethuns; o deus meteorológico que os etruscos chamavam de apa, "pai", era Tinia, que os romanos posteriormente associaram a um demônio, Tigna, que causava tempestades e trovoadas. A toga, vestimenta típica da elite romana, inclusive a toga púrpura típica dos cônsules, e, depois, dos imperadores romanos, eram heranças da nobreza etrusca, que assim se vestia. Na própria cidade de Roma, obras fundamentais, como o Circo Máximo e o Templo de Júpiter, teriam sido construídas pelos reis etruscos. Várias famílias de origem etrusca (os Lárcios, os Cecina, os Ceiônios) permaneceram influentes em Roma, onde se juntaram às famílias locais mais tradicionais na classe superior dos patrícios.

Os romanos, curiosamente, parece que guardavam rancor contra aqueles que os desafiavam. Depois de serem vencidos pelos celtas no século IV a.C., expandiram seu território na Europa especificamente sobre território céltico, culminando com a conquista da Gália e a prisão do chefe gaulês Vercingetorix; desafiados pelos cartagineses pelo controle do comércio no Mediterrâneo, empreenderam três campanhas punitivas a Cartago, e na terceira (provocada por um pagamento atrasado de tributo, imposto a Cartago) fizeram questão de salgar a terra para que nada mais pudesse crescer ali; depois de uma derrota na Germania, em que três legiões foram derrotadas e as águias de bronze dos seus estandartes levadas como troféus, os romanos passaram os 50 anos seguintes fazendo incursões nas florestas alemãs até que a última águia fosse recuperada.

Da mesma forma, os romanos guardaram enorme ressentimento contra a instituição da monarquia. Assim que a República foi proclamada, o cargo de "rei" foi extinto, substituído por dois cônsules (porque um só tinha ares de monarquia), eleitos anualmente. Uma função do rei, a nomeação ou demissão de senadores, que seria dos cônsules, foi passada aos censores. Essa supressão à figura monárquica se estendeu ao rex sacrorum (o "rei sagrado", sumo-sacerdote da cidade), que passou a ser subordinado ao sacerdote que, originalmente, vigiava os rituais de sacrifício (o pontifex maximus, o sumo-pontífice, que tinha esse nome porque era responsável pelos auspícios para a construção e manutenção das pontes sobre o rio Tibre, que era considerado um deus; o arcebispo católico de Roma, o Papa, herdou este título). Até o Regia, ou palácio real, habitado pelo rex sacrorum, passou a ser morada do pontifex maximus. Com exceção dos senadores, que eram designados pelos censores, e do próprios "reis sagrados" (que, contudo, continuaram existindo até o advento do cristianismo) quase todos os cargos da estrutura administrativa e religiosa romana passaram a ser eletivos e temporários, e todo aquele que, por ambição ou aclamação, arrogou-se a sentar-se por tempo demais no banco do cônsul, foi removido pelo senado, pelo exército, ou por demanda popular. Até o advento de Otaviano, o primeiro Imperador de Roma.

Os etruscos deixaram de existir como identidade étnica ainda durante a República, e a língua deixou de ser usada em meados do século II. O romancista finlandês Mika Waltari escreve apaixonadamente sobre os etruscos (na verdade, sobre a "periferia" do mundo mediterrâneo antigo, centrado num fictício personagem etrusco) no ocaso da sua civilização em seu livro O Etrusco.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Nomes

O dia 23 de novembro coincide de ser o dia de nascimento dos reis Oto I do Sacro Império Romano (973) e Alfonso X de Castela (1221). Pela habilidade política na consolidação da sua posição, e pela força com que impôs uma unidade política ao seu reino e novos paradigmas às suas instituições, Oto é cognominado "O Grande". Já Alfonso, apaixonado por astronomia, literatura e línguas, dedicou grande parte do seu reinado à ciência e à formalização da língua castelhana, pelo que ficou conhecido como "O Sábio".

Cognomes são como apelidos adicionados ao nome, atribuídos a uma pessoa com base na percepção da opinião pública e/ou da História sobre a sua personalidade, as características físicas ou psíquicas, habilidade ou realizações. Principalmente quando o personagem em questão tem um nome muito comum (quase todos os 18 reis Luís e 10 reis Carlos da França têm um cognome que os diferencia um do outro). Boa parte desses apelidos foram "conquistados" com uma boa dose de propaganda pessoal, alguns também derivados de uma boa contra-propaganda derrogativa (Maria I, rainha de Portugal, era conhecida como "A Piedosa" na Terrinha por causa da sua boa relação com a Igreja, mas no Brasil ficou conhecida como "A Louca" por causa da deterioração do seu estado mental desde que chegou por aqui).

O uso de apelidos também era mais usual na Antiguidade, quando a estrutura atual de nome e sobrenome (que designa a família da qual viemos, voltaremos a isso adiante) não estava estabelecida. Na Grécia Clássica ou na Pérsia Aquemênida o cidadão tinha um nome apenas (não raro o nome era constituído por dois radicais que descreviam alguma característica do seu portador, como Demóstenes ou Aristóteles, o que permitia inúmeras combinações diferentes), e ele se diferenciava dos seus homônimos por um cognome qualquer, como acontecia com os 12 Ptolomeus e as 7 Cleópatras que governaram o Egito. Em Roma, onde a origem familiar se tornou importante, os patrícios e equestres (a classe intermediária, acima dos plebeus) batizavam seus filhos com um prenome e um sobrenome da sua família (gens), que era hereditário. Eventualmente, os cognomes que eram atribuídos a personagens notáveis dentro de cada família acabaram se tornando também hereditários, para que seus descendentes legais (filhos ou descendentes legais de qualquer tipo) fossem reconhecidos como tais. Por exemplo, o célebre advogado e orador Marco Túlio Cícero: Marco era seu prenome, Túlio o nome da sua família, e Cícero um apelido dado à linhagem do seu pai, algumas gerações antes, em referência à sua atividade como plantadores de ervilhas, cicer em latim (pelo qual Cícero era discriminado pelos círculos da alta sociedade romana na infância e início da carreira).

Os romanos mantiveram este sistema trinomial por bastante tempo mesmo depois do fim do Império do Ocidente. Os germanos que os sucederam mantinham o costume antigo de dar apenas um nome aos seus filhos (nomes que eram combinações de palavras com significados específicos, como os gregos), de maneira que os reis germânicos na Escandinávia, na Alemanha, na Inglaterra, e mesmo na França e na Itália frequentemente recebiam um cognome significativo em vida ou após a morte (mesmo um monge, como o anglo-saxão Bede, ficou para a posteridade como "O Venerável"). Com o tempo, o nomes pátrios passaram a ser usados como sobrenomes para designar dinastias locais, e os casamentos entre as casas reinantes geravam sobrenomes enormes (pois num universo político em que sua ascendência designava onde você poderia reinar, nenhum sobrenome nobre podia ser dispensado). Durante a Idade Média, as pessoas comuns seguiam um caminho paralelo, adotando para si os nomes dos seus ofícios ou das guildas profissionais a que se filiavam como cognomes, que acabariam se tornando sobrenomes familiares (por exemplo, Ferreira em Portugal, e seus correlatos em outras línguas, como Ferrer na Espanha, Smith em inglês, Schmidt em alemão, Kovac em eslovaco, Kuznets((ov)) em russo). Quando os judeus sefaraditas viram-se obrigados a adotar o cristianismo ou fugir da Península Ibérica, muitos substituíram seus sobrenomes hebraicos, geralmente compostos pelo prenome do pai (ou da cidade de origem da família) e um prefixo indicando posse ou origem (ab-, bar-, ben-, etc.) por nomes, preferencialmente, de árvores (Nogueira, Carvalho, Pereira, Figueira, etc.). O costume de usar o nome do pai como sobrenome para os filhos (e a esposa), comum também entre os árabes, persistiu na Espanha e nos primeiros séculos de Portugal, após a queda do Califado de Córdoba. Por exemplo, Fernandes significa "(filho ou esposa) de Fernando"; o primeiro rei de Portugal, Afonso I, é conhecido como Afonso Henriques, ou "filho de Henrique" ("ibn-Arrik" em árabe). Nos países escandinavos e em vários países eslavos, o nome do pai ou do patriarca da família ainda é usado como sobrenome. O sentido se perdeu, mas o costume permanece hoje na maioria dos países sob influência européia latina ou germânica. Derivado disso, escravos africanos na América costumavam ser registrados com sobrenomes dos seus senhores, indicando não uma adoção ou relação forjada de parentesco, mas sua propriedade.

O cognome "O Grande" sempre ficou reservado aos reis que realizaram feitos de grande relevo para seu país - alguém que consolide instituições eficientes e duradouras, alguém que consiga vitórias importantes na guerra, ou que expanda as fronteiras além dos seus limites históricos. Às vezes, a medida de grandeza era o favorecimento que o rei em questão dava à causa religiosa. Ciro II da Pérsia (fundador do Império Aquemênida), Alexandre III da Macedônia (o conquistador do maior império da Antiguidade), Assoka da Índia (ao contrário dos outros, um pacifista convicto que se recusaria a expandir o reino pela guerra mas que se tornaria propagador do budismo), Carlos I dos francos (Carlos Magno, cujo cognome é incorporado ao seu próprio nome em francês e inglês, "Charlemagne"), Alfredo de Wessex (rei anglo-saxão que foi o primeiro a ser coroado "rei dos ingleses"), Oto I do Sacro Império Romano (pelas razões acima), Pedro I da Rússia (que expandiu extraordinariamente o seu império em direção à Ásia para algo bem próximo do que é a Rússia hoje) são exemplos bem conhecidos.

No outro extremo do espectro temos cognomes nada elogiosos para monarcas que, por incompetência ou infelicidade, viram a ruína do seu país ou da sua dinastia; ou porque seus feitos foram tão inócuos ou nocivos que alguma característica física fosse ressaltada pejorativamente; ou porque simplesmente difamados pos morten por sucessores ou rivais. Clovis II dos francos ("O Preguiçoso", entronizado ainda criança, passou quase todo seu reinado sob influência de seus regentes), Luís II da Frância Ocidental ("O Gago", um pacifista que viu a França assolada por vikings e morreu em campanha), Carlos III da França ("O Gordo", considerado inapto para o cargo, incapaz de defender o país dos vikins, acabaria deposto), Etelredo da Inglaterra, ("O Despreparado", que abandonara o trono ainda jovem diante de uma esmagadora invasão dinamarquesa para retomá-lo depois da morte do rei dinamarquês Sven "Barba Bifurcada"), Afonso II de Portugal ("O Crasso", concentrou-se no desenvolvimento da administração interna num tempo em que as elites desejavam guerras expansionistas contra castelhanos e mouros), Carlos VI da França ("O Louco", devido aos contínuos surtos psicóticos que o impediam de tomar decisões objetivamente), Richard Cromwell, Lorde Protetor da Inglaterra ("Dick Arruinado", filho e sucessor do republicano Oliver Cromwell, muito mal quisto pelos monarquistas que o depuseram), Jaime II da Inglaterra ("O Cagado", derrotado e difamado após a Revolução Gloriosa). Por razões políticas, Guilherme da Normandia, conquistador da Inglaterra, é alternadamente referido como "O Conquistador" ou "O Bastardo".

No meio do caminho pode-se encontrar Wifredo I da Catalunha ("O Peludo"), Pepino III dos francos ("O Breve"), Ricardo I da Inglaterra ("Coração de Leão"), Luis III do Sacro Império Romano ("O Cego"), Ferdinando I da Áustria ("O Benigno"), Dinis I de Portugal ("O Lavrador"), Gjorgi Kastrioti da Albânia (conhecido como "Skanderbeg", ou "Lorde Alexandre" pelos turcos, que alegadamente o comparavam a Alexandre, "O Grande"), Carlos II de Navarra ("O Mal"), Selin II do Império Otomano ("O Loiro"), Frederico I do Sacro Império Romano ("Barba Vermelha", ou "Barbarossa" como era conhecido na Itália), Conan IV da Bretanha ("O Negro"), Ivailo da Bulgária ("O Repolho"), João I da Inglaterra ("O Sem-Terra"), Manuel I de Portugal ("O Venturoso"), Luis XIV da França ("O Rei-Sol"), Vlad III da Valáquia ("O Impalador", ou "Drácula", que significa algo como "filho do dragão" ou "do Diabo" em romeno), Mehmed I do Império Otomano ("O Executor"), e muitos outros "Justos", "Magníficos", "Belos", "Patriotas", etc.. O pai de Oto "O Grande" era Henrique "O Passarinheiro".

Mas em termos de criatividade, ninguém na Europa supera os germânicos dos séculos VIII a XI - francos, saxões e escandinavos. A tradição guerreira desses povos no momento da transição da sociedade tribal para a formação de Estados organizados se refletia nos apelidos dos seus reis-guerreiros, que serviam tanto para exaltar seus atributos e proezas, como para inspirar temor nos seus inimigos (e que fariam frente aos personagens de As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, embora seja possível que ele os tenha usado como inspiração para seus "selvagens" do Norte): além de um "O Grande" (Canuto, que tomaria um verdadeiro império que incluía quase toda a Escandinávia e a Inglaterra), havia Harald Hardrada ("Conselheiro Implacável"), Magnus "Pés Descalços", Eric "O Vermelho", Eric "Machado de Sangue", Harold "Dente Azul" (ou "Dente de Batalha", se traduzido literalmente do islandês "Hilditönn"), Carlos Martel ("O Martelo"), Edmundo Ironside (não há tradução direta, significaria algo como "muito forte", "com flancos de ferro"), Haakon "De Ombros Largos", Sverker "Perna de Pau", Harald "De Belos Cabelos", Roberto "O Forte", Etelstão "O Glorioso", Harald "Pele Cinzenta", Ragnar Lodbrok ("Brechas peludas", em alusão à barba que saía pelo seu elmo), Gudrod "O Caçador", Rolo "O Andarilho", Ivar "Braça Larga", Anund "Rastro de Fogo". Além desses, também havia guerreiros como Sigurd "Cobra-no-olho", Thorstein "Fazedor de Navios", Bjorn Ironside (literalmente "Urso Com Flancos de Ferro"), Thorgill "O Veloz", Ivar "Sem Ossos", Halfdan "Pernas Longas", Gunnlaugr "Língua de Serpente", Thorkell" O Alto",  Thorgills "Lábio Leporino", Ulv "O Lobo da Galícia" e Ragnvald "Alto Como a Montanha".

Devia ser embaraçoso ser Carlos "O Gordo" nesta era.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Phillibert e Jeanne

Em 18 de novembro de 1727 nasceu Phillibert Commerson (ou Commerçon) em Châtillon les Dombes, na França, na base dos Alpes. Ele seria um dos primeiros botânicos europeus a se aventurar numa viagem de volta ao mundo, e suas coletas no Brasil são alguns dos exemplares mais antigos da flora brasileira a serem amostrados e conservados em herbários até hoje.

Filho de um notário a serviço de um nobre local, seu pai esperava que ele aprendesse apenas a ler e escrever para seguir a sua profissão. Mas na escola, um professor o levou a um passeio no campo, despertando seu entusiasmo pela botânica. Estudou medicina e botânica (duas ciências que frequentemente andavam juntas, alternadamente com a farmácia e a química) em Montpellier, até hoje um dos principais centros universitários daquele país. Sua fixação por botânica o levava a coletar amostras clandestinamente no jardim botânico local, até o ponto de ser proibido de entrar nele. Entre 1754 e 1758 dedicou-se à coleta de plantas no Languedoc francês e à composição de jardins botânicos. Neste período conheceu o filósofo Voltaire, que, encantado com a acuidade do pensamento do jovem botânico, o convidou a ser seu assistente. Commerson recusou, alegando depois ter tido a impressão de que Voltaire era um velhaco, propenso a terrores noturnos (não obstante, sua carreira seria guiada pelos princípios do Iluminismo).

Nessa mesma época, Carl von Linnaeus estava trabalhando a pleno vapor nos seus novos sistemas de classificação dos seres vivos, e a ele interessava todo tipo de trabalho em ciências naturais que lhe fornecesse descrições precisas de espécies conhecidas com as quais pudesse posicionar os organismos em seus reinos, classes e ordens e formalizar seus nomes para uso de toda a comunidade científica. A Commerson ele encomendou uma monografia sobre peixes do Mediterrâneo. Commerson coletou e escreveu profusamente, mas nunca chegou a publicá-la (sua coleção de peixes ainda está preservada no Museu de Estocolmo).

Em 1760 ele se casou com Antoinette Beau e abriu um consultório médico numa aldeia. Sua vida parecia estabelecida, quando Antoinette faleceu enquanto dava à luz o filho do casal, François. Arrasado, Commerson caiu em depressão, e passou a se dedicar obcecadamente ao trabalho. Seu irmão, também François, dizia que Phillibert passara vários anos seguidos coletando plantas e insetos nos Alpes e nos Pirineus, subindo e descendo as mesmas montanhas várias vezes, vivendo de pão, leite e queijo que comprava de pastores locais e dormindo como hóspede em suas choupanas. Um amigo seu de infância, o astrônomo Jerôme Lalande, alertado pelo irmão de Phillibert, o convenceu a ir a Paris para expandir a mente, deixando o pequeno François aos cuidados de um tio, que era padre.

Em Paris, enquanto Commerson se entrosava com os principais nomes da botânica do seu tempo, como os irmãos Jussieu (Antoine, Bernard e Joseph) e Michel Adanson, quem tomava conta da sua casa era uma jovem órfã da Burgundia chamada Jeanne Barret (ou Baré). Com seus novos contatos, Commerson acabaria sendo recomendado ao almirante Louis Antoine de Boungainville como cirurgião-naturalista do seu navio, o Etoile, com o qual realizaria a primeira expedição francesa de circunavegação do globo, e a primeira expedição científica ultramarina da França.

Bougainville era um capitão experiente. Havia participado da Guerra Franco-Indígena na América do Norte. Em seguida, comandou o projeto colonial francês nas Ilhas Malvinas. O próprio Bougainville, às suas custas, levou colonos canadenses ao arquipélago para que a França o reclamasse formalmente à Espanha, que o deixara vago até então. Porém, por razões diplomáticas e econômicas, o rei Luis XV achou por bem devolver as Malvinas aos espanhóis (vendê-las, na verdade), ordenando a evacuação da colônia. Bougainville foi indenizado em 700 mil francos. Com esse dinheiro e a permissão do rei, ele armou dois navios, o Boudese e o Etoile, e contratou uma grande equipe de cientistas, entre geólogos, físicos, historiadores, cartógrafos, meteorologistas, botânicos, zoólogos e linguistas, que somavam, com a tripulação, 330 pessoas. Commerson estava entre eles, e fez questão de trazer a bordo Jeanne Barret, supostamente para auxiliá-lo com suas coletas. Porém, era comum que marinheiros se recusassem a trabalhar a bordo com uma mulher na tripulação. Na marinha francesa, o emprego de mulheres era expressamente proibido. Sabendo disso, Jeanne se apresentou ao capitão do Etoile como Jean, vestida como um rapaz. Commerson fez questão de viajar no Etoile, que era o menor dos navios, porque, com menos gente por perto, as chances de se descobrir o sexo de sua assistente seriam menores. O próprio comandante do navio, capitão Giraudais, cedeu sua cabine (que convenientemente tinha um banheiro exclusivo) para os dois acomodarem-se e a e seus equipamentos.

A missão de Bougainville zarpou de Nantes em novembro de 1766 e chegou ao Rio de Janeiro em 1767. Foi a primeira expedição científica européia a aportar na colônia portuguesa. Porém, o Rio não era a vistosa capital imperial inspirada em Lisboa ou Paris do século XIX, mas ainda uma cidade portuária provinciana e perigosa (o capelão do Etoile foi assassinado enquanto o navio esteve ancorado), então Commerson nunca se arriscou muito longe do porto, coletando espécimes na cidade e arredores, enquanto os seus colegas realizavam todo tipo de experimento científico. A taxonomia era uma ciência que ainda estava em seu período formativo (Linnaeus ainda era vivo), e como nada havia sido coletado ainda no Brasil com o objetivo de ser classificado e entrar na coleção de um herbário como testemunho, praticamente tudo era novidade. Commerson coletou e produziu descrições (nunca publicadas) de centenas de novas espécies. Uma planta ornamental, que já era muito conhecida e cultivada por aqui mas ainda era desconhecida da ciência européia, recebeu de Commerson o nome de Bougainvillea spectabilis Willd. (alguns a conhecerão como "primavera" ou "buganvílea"), em homenagem ao almirante, que também era fascinado pelas ciências naturais. As coletas de Commerson, que duraram até julho de 1767 (com uma pausa entre fevereiro e junho, quando Bougainville seguiu para as Malvinas para formalizar a entrega da colônia à Espanha), são as mais antigas que se tem notícia no Brasil, ainda preservadas em herbários europeus como o do Jardim Botânico Real, em Kew, e do Museu Nacional de História Natural, em Paris.

Commerson tinha uma ferida na perna, que nunca cicatrizava, adquiria possivelmente nas suas andanças pelas montanhas na Europa. A bordo, Jeanne cuidava dele, e em terra, o auxiliava em suas coletas (as coletas no Rio de Janeiro talvez tenham sido feitas quase todas por ela, e na Patagônia, seu vigor no campo foi elogiado pelo próprio Bougainville em seu diário). Sua proximidade era evidente. François Vives, cirurgião do Etoile que não gostava do colega, insinuava em seu diário que os dois eram gays, especulando que Barret era um eunuco. A expedição seguiu para Montevideo, descendo pela Patagônia, e, do Estreito de Magalhães, partiu para o Taiti. Bougainville acreditava ter descoberto aquele arquipélago (reclamando a ilha de Otaheite para a França), tendo notícia apenas mais tarde de que o inglês Samuel Wallis havia passado por ali meses antes. Apenas no Taiti, em abril de 1768, um ano e meio depois do início da viagem, o disfarce de Jeanne foi descoberto: aparentemente Jeanne teria sido apontada inequivocadamente por um taitiano trazido a bordo como uma mulher (ou um travesti). A história seria reproduzida pelos taitianos quando o capitão James Cook chegou nas ilhas no ano seguinte, dando a entender que eles sabiam do seu sexo, mas que os europeus ainda nem desconfiavam. Depois que a tripulação finalmente descobriu (aparentemente atacando e despindo-a à força), Jeanne foi levada à presença de Bougainville, que se divertiu com a história e decidiu não punir nem a ela, nem a Commerson.

A expedição foi atacada por nativos na ilha da Nova Irlanda, a nordeste da Nova Guiné, e fez uma parada na colônia holandesa da Batávia (atual Jacarta, na Indonésia) para reabastecer. De lá seguiu pelo Oceano Índico até as Ilhas Maurício. Commerson ficou surpreso e satisfeito ao saber que um amigo seu, o também botânico Pierre Poivre, servia como governador daquela colônia francesa. Como Poivre o convidou a se hospedar em sua casa (possivelmente, também, a conselho de Boungainville, para evitar complicações com a lei francesa), Commerson e Jeanne se despediram da expedição, que seguiu de volta para a França. Commerson usou Maurício como base para uma expedição em Madagascar, mas a sua saúde se deteriorava. Sua sorte também virou: Poivre foi chamado de volta à França em 1772, e o novo governador retirou os privilégios e a própria hospedagem da dupla, deixando Commerson e Jeanne em situação precária. Commerson faleceu em 13 de março de 1773. Sem suporte na ilha Maurício, Jeanne regressou à França (tornando-se a primeira mulher a circunavegar o planeta), onde reclamou uma modesta herança deixada pelo seu patrão (e possível amante), levando consigo todo o material coletado ao longo dos últimos anos, e que Commerson não tivera tempo de organizar. Coube a Jussieu (Antoine Laurent, sobrinho dos Jussieu que Commerson conheceu em Paris) e a Pierre Lamarck descrever e publicar formalmente as espécies descobertas pelo colega.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

A maldição do Diamante Hope

Em 10 de novembro de 1958, o carteiro James G. Todd entregou em mãos à direção do Instituto Smithsonian um pacote contendo o Diamante Hope, famoso pela sua reputação de trazer má sorte aos seus possuidores.

O Diamante Hope é uma pedra de 1,1 bilhão de anos, aproximadamente elíptica, de 9,1 gramas, tom distintamente azulado. Foi obtido de uma rocha de kimberlita extraída de uma mina em Andhra Pradesh, na Índia, no século XVIII, e trazido à França. Conhecido como "Azul Francês", pertenceu ao rei Luis XIV da França e seus sucessores, Luís XV e XVI. Durante a Revolução Francesa, enquanto Luis XVI estava sitiado no Palácio das Tulherias, o diamante foi roubado junto com grande parte das jóias da coroa. Ele teria sido partido em dois ou três (o maior fragmento se tornaria o atual Diamante Hope) e contrabandeado para a Inglaterra. Lá, teria sido passado de mão em mão até chegar a um banqueiro e romancista londrino chamado Thomas Hope (de onde a pedra deriva seu nome). Em 1902 deixou a família Hope e foi eventualmente adquirido pelo sultão otomano Abdul Hamid II, que o vendeu para cobrir dívidas pessoais. Passou pela socialite americana Evalyn Walsh McLean, cuja extravagância contribuiu para popularizar a fama do diamante (a pedra, já encrustada num medalhão rodeado por diamantes menores, era exibido em eventos públicos, e escondido em brincadeiras durante as festas da família, embora fosse mantido sob vigilância, com um segurança especialmente contratado para manter o olho na joia). Um colecionador de jóias, Harry Winston, o comprou após a morte da senhora McLean. Ele o doou ao Instituto Smithsonian, onde faz parte hoje da coleção mineralógica e está em exposição no seu museu, em Washington.

O diamante foi primeiro trazido à Europa por um comerciante francês chamado Jean-Baptiste Tavernier. Sua origem nunca ficou muito clara. No final do século XIX e início do século XX, o problema da origem do diamante, e rumores sobre o destino dos seus proprietários, alimentaram artigos de jornais, especialmente no Império Britânico (onde o público vitoriano era especialmente ávido consumidor de histórias sobre mistérios e exotismos), que reproduziam esses rumores como fatos, mas sem qualquer tipo de comprovação. A própria Evalyn McLean capitalizou sobre essas lendas urbanas para elevar o valor de venda da pedra, que ela legou aos seus netos (mas acabou vendida pelos seus tutores). As lendas se tornaram tão elaboradas que incluem entre as vítimas personagens cuja existência sequer pode ser atestada historicamente, quanto menos as suas mortes. No entanto, ajudam a despertar a curiosidade acerca do belo diamante.

Tavernier poderia tê-lo comprado, ou, como popularmente se difundiu, roubado-o de uma estátua da deusa Sita; diamante estaria encrustado em um dos seus olhos ou na sua testa. O diamante teria sido amaldiçoado pelos sacerdotes locais. O aventureiro o vendeu ao rei da França, e como parte do pagamento, recebeu um título nobiliárquico. Tavernier fez fortuna comprando pedras preciosas no oriente e negociando-as na Europa. Morreu em Moscou aos 84 anos. As lendas dizem, no entanto, que ele morreu retalhado por cães em Istambul, durante uma última viajem à Pérsia.

Embora Luis XIV tenha tido igualmente vida longa e um próspero reinado (morreu aos 76 de uma gangrena), sua amante, Madame de Montespan, foi acusada de assassinar uma concorrente e exilada. Seu ministro das finanças, Nicholas Fouquet, teria caído em desgraça depois de usar o diamante em uma festa (foi deposto, preso e executado por traição). Seu bisneto Luis XV envolveu-se na Guerra dos Sete Anos, em que a coalização de que a França participava foi derrotada, obrigando-o a ceder grandes territórios a Espanha e Inglaterra na América, e Bélgica e Luxemburgo aos Habsburgo, e morreu aos 64 de varíola (por medo de infecção, seu corpo não foi embalsamado, mas banhado em álcool e cal; seu funeral foi acompanhado por apenas um cortesão). E Luis XVI e Maria Antonieta foram presos e decapitados pelos revolucionários, que também estupraram e despedaçaram sua confidente, a Princesa de Lamballe (dizem que seu corpo ainda foi arrastado até um café, colocado sobre uma mesa, onde os presentes brindavam à sua morte).

Ao chegar à Inglaterra, o diamante teria ido para as mãos do joalheiro holandês Wilhelm Fals (cuja existência é meramente conjectural), que teria lapidado a pedra partida e lhe dado uma forma aproximada à que apresenta hoje. Seu filho Hendrick o teria matado e roubado a pedra. Hendrick a revendeu a Daniel Eliason (este sim um personagem histórico) e cometeu suicídio algum tempo depois.

O próximo dono notório do Diamante Hope foi o próprio Thomas Hope, que o comprou de Eliason. Hope era um romântico, artista de vanguarda que rivalizava com o próprio Lorde Byron, e logo depois de morto, sua viúva se casou com um nobre inglês, e os dois se desfizeram de quase todas as suas obras e celebrados trabalhos de decoração. A quarta geração da família vendeu o diamante para pagar suas dívidas em 1902 - o último Hope, Lorde Francis, foi traído pela esposa, que se apaixonou pelo capitão do navio em que viajavam no ano anterior. A moça em questão, a atriz May Yohe, se casou diversas vezes e morreu pobre. A própria Yohe procurou a imprensa algumas vezes e, nessas ocasiões, insinuou que devia seus repetidos infortúnios ao diamante.

O joalheiro Simon Frankel (que teria seu negócio arruinado durante a Grande Depressão) comprou a jóia e depois a vendeu a um Jacques Colet, que cometeu suicídio. O príncipe russo Ivan Kanitovski o comprou de Colet, e foi assassinado na Revolução Russa. Enquanto estava em sua posse, ele o emprestou à atriz Lorens Ledue, a quem teria matado com um tiro quando apareceu no palco usando o diamante.

Em 1908 o sultão otomano o comprou e o vendeu pouco tempo depois. Dois funcionários que teriam tomado o diamante em mãos tiveram mortes trágicas (um deles tentou roubar o diamante e foi enforcado). Abdul Hamid se tornou tão paranoico que cortou fundos do exército temendo que ele - ou qualquer outra organização - pudesse destroná-lo a qualquer momento, o que acabou causando revolta entre os militares e alimentando a Revolução dos Jovens Turcos, o embrião da Revolução Turca que aboliria a monarquia em 1922. Como consequência, foi deposto em favor do irmão, e viveu em cárcere privado de 1909 a 1918 (ele teria morrido esfaqueado por uma de suas concubinas).

O joalheiro grego Simon Montharides comprou em seguida e revendeu o diamante (não se tem documentação que prove a sua posse do diamante, e não se sabe se ele o comprou do sultão, ou se o vendeu a ele, ou se existiu realmente). Ele, sua esposa e seu filho teriam morrido quando sua carruagem caiu de um precipício.

Evalyn McLean comprou do famoso joalheiro Pierre Cartier, que compôs o medalhão atual onde a pedra está engastada atualmente, e fomentava os rumores sobre sua maldição. Após comprar a pedra, o filho mais velho dos McLean morreu atropelado em frente de casa. Outra filha, casada aos 19 anos com um velho senador, suicidou-se com uma overdose de soníferos. Nas ocasiões festivas em que exibia o medalhão aos convidados, o teria emprestado a Warren Harding e sua esposa Florence. Harding chegou à presidência dos Estados Unidos em 1921, e morreu de problemas cardiorrespiratórios no meio do seu mandato, enquanto parte do seu gabinete era investigada por corrupção. Florence morreu um ano depois de falência dos rins. Evalyn, que se viciara em morfina, se divorciou do marido Edward, dono do jornal Washington Post, em termos litigiosos em 1932. Edward começou a apresentar problemas psiquiátricos, teve que vender o jornal para saldar dívidas, morrendo em um asilo 9 anos depois.

Os herdeiros dos McLean, ainda lidando com as dívidas do casal, venderam a joia a Harry Winston, que foi convencido a doá-la ao Smithsonian (a família Winston não parece ter sofrido qualquer infortúnio extraordinário que pudessem atribuir ao diamante). O carteiro que entregou o pacote ao instituto, James Todd, sofreu dois acidentes graves, um em que um caminhão esmagou sua perna, e outro de carro em que feriu a cabeça. Sua esposa morreu de ataque cardíaco, seu cachorro morreu enforcado na própria coleira, e sua casa foi destruída em um incêndio. No entanto, ele não acreditava na maldição, e alegava ter tido sorte porque seus quatro filhos não estavam dentro de casa quando aconteceu.

Espero que escrever sobre o Diamante Hope não me inclua na maldição.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Inca ressurgido

Em 4 de novembro de 1780, Tupac Amaru II, clamando para si a descendência dos incas, lança sua declaração aos povos indígenas do Peru colonial a que se levantassem contra o domínio espanhol, dando início ao primeiro grande movimento indigenista da América do Sul.

Após quase 40 anos de resistência, os espanhóis subjugaram o último reduto inca em Vilcabamba, no Peru, e executaram seu último líder Túpac Amaru, em 1572. Durante esse longo período entre a conquista de Francisco Pizarro e a queda de Vilcabamba, os espanhóis empreenderam a aculturação e fragmentação das populações nativas com fins de usá-las como mão de obra e desestimular possíveis revoltas. As doenças trazidas da Europa serviram como espécies de armas biológicas passivas, dizimando talvez 2/3 da população nativa e desestruturando a sua sociedade, mas os conquistadores foram além. Seus símbolos, suas obras arquitetônicas, sua religião, e até mesmo seus sofisticados sistemas de agricultura em degraus foram sistematicamente destruídos. Os espanhóis ainda tiraram proveito do sistema de recrutamento de trabalhadores do Império Inca, que exigiam que cada família cedesse um membro para trabalhar em obras públicas, e demandavam um substituto em caso de morte ou invalidez, para manter as famílias e clãs sob controle e arregimentar mão de obra em regime semelhante à escravidão (chamado mita) para trabalhar nas minas de prata. A prata obtida pelo Vice-reinado do Peru (como se chamava a nova colônia espanhola no oeste da América do Sul, incluindo Peru, Equador, Bolívia e norte do Chile) alimentou a economia européia e elevou a Espanha ao status de superpotência.

Mais tarde, a relação de trabalho também se transformou numa relação de dependência entre o colonizador e o nativo, no sistema conhecido como Encomienda, em que um espanhol designado pelo rei ou autoridade em seu nome era encarregado da "segurança" da população, em troca dos seus serviços ou de tributação em espécie. O encomendero responsabilizava-se pela catequização, pelo ensino do castelhano, segurança, e manutenção e desenvolvimento da infra-estrutura (com mão de obra local). Criava-se automaticamente uma dívida que era impossível de ser paga. O sistema de Encomiendas derivou do modelo feudal da Europa Ocidental e foi aperfeiçoado na Espanha durante a Reconquista; espanhóis eram designados a cumprir as funções de encomendero sobre populações muçulmanas, com a diferença de que, na América do Sul, o encomendero não recebia posse da terra sob sua tutela (toda terra no Novo Mundo pertencia à instituição da Coroa, não uma posse pessoal dos seus monarcas). As Encomiendas contribuíram para o desmantelamento das identidades tribais graças a um dispositivo que impedia aos mestiços cristianizados de se submeterem a esse sistema, o que levou muitos nativos e mestiços integrantes de tribos locais a renegarem suas raízes ou buscarem casamento com espanhóis, e integrarem-se à sociedade colonial.

Eventualmente, as Encomiendas foram dando espaço para relações de trabalho mais eficientes, sendo abolidas em 1720. Mas a exploração da mão de obra nativa continuou opressiva em vários aspectos. Durante o século XVIII os reis espanhóis empreenderam várias reformas que pretendiam direcionar o desenvolvimento econômico das colônias para benefício direto da economia espanhola, que então perdia terreno para holandeses, ingleses e franceses no Velho Mundo. Essas reformas pretendiam restringir a autonomia dos criollos (espanhóis nascidos na colônia), recuperando o controle da Coroa sobre a atividade econômica. Por exemplo, os trabalhadores que não se empregavam em empreendimentos dirigidos ou supervisionados por espanhóis (os corregidores) eram taxados de forma a jamais conseguirem prosperar com seu próprio trabalho.

Neste contexto surge José Gabriel Condorcanqui, um mestiço nascido na província de Cuzco, filho de um cacique quéchua, Miguel Condorcanqui Usquiconsa, educado pelos jesuítas. Falava quéchua, castelhano e latim, o que lhe deu acesso à literatura. Seu livro de cabeceira era Comentarios Reales de los Incas, publicado no começo do século XVII pelo mestiço inca-espanhol Garcilaso de la Vega, que narrava, de maneira romântica e idealizada, sobre a sociedade inca pré-colonial e a sua resistência aos conquistadores. Ainda era leitor ávido da Bíblia, do Ollantay (poema dramático em quéchua que relata um romance proibido entre o general-plebeu Ollanta e uma princesa inca, Cosi Coyllur, no auge do império), e as obras de iluministas europeus como Voltaire. Se casou com Micaela Bastidas, descendente de incas e negros, mulher com forte senso de identidade cultural e nacional.

Como cacique, tinha influência sobre uma vasta área centrada em Cuzco e sua prosperidade econômica atraía a atenção da administração colonial. Era sua função como líder tribal mediar as relações entre o corregidor e os indígenas sob sua jurisdição. Isto o aproximava da realidade dos nativos sob o regime colonial, e seu contexto formativo colocava-o ideologicamente lado a lado com eles. Frequentemente se queixava às autoridades contra cobranças abusivas e tratamento desumano dos trabalhadores indígenas (muitos ainda submetidos à mita), mas sem retorno. Com o tempo, sobretudo após seu casamento e o nascimento dos filhos nos anos 1760, José Gabriel passou a fomentar um levante de criollos, nativos e mestiços contra a metrópole pela sua independência (de início, independência econômica, do ponto de vista meramente libertário). Micaela e seus parentes começaram a trabalhar às escondidas na divulgação das ideias e planos, recrutamento e recolhimento de recursos para o movimento. Vários caciques quéchua e aymara, suas tribos e muitos mestiços e escravos negros vieram a aderir à causa, chegando às dezenas de milhares homens e mulheres, do altiplano peruano, Bolívia, até o norte da Argentina, dispostos a lutar.

Em 4 de novembro de 1780, uma carta falsa atraiu Antonio Arriaga, corrigidor do distrito de Tinta, próximo a Cuzco, a uma emboscada. Ele foi preso e executado pelo seu próprio escravo negro, e com ele foram apreendidos boa quantidade de dinheiro, ouro e armas. Antes de morrer, foi obrigado a escrever cartas a espanhóis notáveis exigindo resgate, que foi pago quando Arriaga já era morto. José Gabriel viu que chegara num ponto se volta. Ele adotou para si o título de "Don José Primeiro, Senhor dos Césares e das Amazonas", adotando também para si o cognome Tupac Amaru II, alegando descendência matrilinear do último imperador inca. O chamado, agora pela independência política dos povos nativos do Vice-reinado do Peru, foi rapidamente divulgado. Enquanto Tupac Amaru II cuidava da parte política, Micaela coordenava a logística, a burocracia e a organização de pessoal do movimento. Sua influência até motivou a formação de um núcleo proto-feminista de ativistas quéchua e aymara pela afirmação da participação política e social da mulher indígena.

Os espanhóis mobilizaram tropas. Em 19 de novembro 900 soldados encontraram Tupac Amaru II e seus homens na aldeia de Sangarará, onde os nativos, em muito maior número, os esmagaram, capturando suas armas. Era fundamental a apreensão de qualquer tipo de armamento, pois os nativos eram proibidos de portar armas de fogo. Rapidamente, porém, apesar de um discurso integrador do seu líder, o movimento espiralizou em direção à violência racial: os assaltos, saques e assassinatos eram direcionados aos espanhóis, incluindo criollos (que em nada diferiam fisicamente de espanhóis europeus). De uma a duas mil pessoas foram massacradas em Chuquiasca por guerreiros de Tupac Amaru II.

A perda de apoio dos criollos se provaria fundamental na derrocada de Tupac Amaru. Foram os criollos legalistas que evitaram a conquista de Cuzco. Após uma série de derrotas e a deserção de grande parte dos seguidores, alguns aliados próximos entregaram às autoridades a localização do comando do movimento. Em maio de 1781, Tupac Amaru II, Micaela, seus filhos Hipólito e Fernando (este com 10 anos), vários dos seus familiares e colaboradores foram presos e condenados à morte em Cuzco. Tupac foi obrigado a assistir a execução de cada um deles (sua esposa teve a língua cortada, o pescoço amarrado e apertado por duas cordas como a um animal, e espancada até desfalecer asfixiada). Depois de tentarem desmembrá-lo atando braços e pernas a quatro cavalos, os executores decapitaram e esquartejaram o líder, e seus membros enviados a várias vilas na zona rebelde como aviso. A língua quéchua e vestimentas tipicamente indígenas, bem como celebrações tradicionais foram proibidas por decreto.

A resistência continuou com força no sul do Peru e Bolívia por mais um ano (cerca de 15 mil pessoas, a maioria aymaras, morreram num cerco de mais de 100 dias a La Paz). Seus líderes também assumiram o cognome Tupac Amaru, como se fosse uma espécie de título. Em março de 1782 o último líder, o mestiço Diego Cristóbal Tupac Amaru, foi preso e executado.

Embora tenha fracassado, a rebelião de Tupac Amaru II foi o maior movimento indigenista da América Espanhola até então, e inspirou diversos outros levantes indígenas pelo continente nas décadas seguintes. No século XX, movimentos armados no próprio Peru relembrariam Tupac Amaru II e se utilizariam da sua imagem: os militares no poder entre 1962 e 1980 se apropriavam da sua imagem para dar um rosto à sua "revolução", e depois o Movimiento Revolucionario Tupac Amaru, de orientação leninista, operaria ações de guerrilha e terrorismo contra os governos democraticamente eleitos. No Uruguai, Tupac Amaru II inspirou o Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros nas décadas de 1960 e 1970, de cunho anarco-socialista. Um dos seus membros, o anarquista José Mujica, viria a se tornar presidente do país. Outro movimento Tupamaro, na Venezuela, converteu-se em um partido político de esquerda de orientação leninista radical, acusado pela oposição de recorrer à violência armada contra manifestantes anti-governo em 2014.